sexta-feira, 3 de abril de 2020

Como é que os chineses aguentaram?, FSP

Confiança em líderes e senso de lealdade ao país ajudaram implementação de medidas contra coronavírus

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Com cerca de duas semanas de isolamento social, os brasileiros começam a entender melhor o drama de boa parte dos chineses. Depois de mais de dois meses praticamente sem sair de casa, apenas agora vão retomando a vida, numa transição controlada.
Ainda que as regras sejam diferentes, tenho a impressão de que os chineses observam com mais rigor o autoisolamento e lidam melhor com as restrições que vieram com a Covid-19. Reconheço ser impossível medir essas questões com precisão, inclusive porque é mais difícil reclamar na China. Mesmo assim, pergunto-me os porquês da atitude dos chineses.
Há obviamente o controle do Estado e o receio da punição. O monitoramento dos indivíduos foi ampliado. Além do uso de tecnologias para o rastreamento das pessoas, ressurgiram os comitês de vizinhança, com voluntários que ajudam no controle em edifícios e nas ruas.
dois chineses vestindo máscaras olham para o lado direito; atrás deles, uma bandeira do partido comunista chinês
Chineses em rua de Wuhan, cidade onde o surto do novo coronavírus se originou, na província de Hubei, China - Noel Celis/AFP
Mas se engana quem pensa que isso apenas explica por que mais de 1 bilhão de pessoas incorporaram as novas restrições ao seu dia a dia. Há mais.
Para começar, os chineses confiam que a liderança do país fará o melhor possível diante da crise. A confiança não é infinita, naturalmente. Determinados episódios geram comoção nas mídias sociais, evidenciando não ser absoluta a satisfação com o governo. O mais emblemático deles foi a morte do médico de Wuhan que tentou cedo alertar para o risco do vírus.
Ainda assim, a confiança dos chineses no governo é muito maior que em outras partes do mundo. Decerto, o respeito à autoridade, de raiz confucionista, precede ao início do comunismo no país. Há uma predisposição a favor da aceitação. E o Partido Comunista agradece.
Além disso, o governo chinês tem a capacidade de mobilizar as massas, de imbuí-las do espírito de que estão travando uma guerra do povo, como chamou Xi Jinping. Muitos slogans que aos ouvidos estrangeiros soam pura propaganda têm o poder de alimentar o patriotismo, incutir nos chineses o sentido de missão e motivá-los nos momentos difíceis.
Há na China a ideia de que a nação é a família ampliada à qual se deve lealdade. Não por acaso que, em mandarim, país (guojia) contém a palavra família (jia).

Claro, há a preocupação com a saúde —mas, nesse quesito, chineses e não chineses se assemelham. O que há entre os chineses é um grau de disciplina e determinação que não se vê em todo o lugar. Parte dos que estão saindo do isolamento social passaram por grandes privações e provações, inclusive durante a Revolução Cultural, o que os terá feito mais resistentes.
O mais importante talvez: chineses veem a relação entre o indivíduo e o coletivo de forma diferente dos ocidentais. Liberdades individuais têm menor peso relativo na sociedade chinesa (sobretudo em situações como esta). A importância do interesse coletivo influencia a forma como os chineses encaram as restrições. Cumprir as regras é sinal de respeito pela saúde dos demais, pelo bem-estar e pela segurança da comunidade.
Finalmente, a experiência dos chineses com a epidemia do Sars em 2002-2003 ajuda nesta crise. Além de terem incorporado novos hábitos, tornaram-se mais preparados psicologicamente para lidar com este período longo de restrições.
Ainda assim, são altos os custos humanos e sociais do isolamento para os chineses. Aumentam os pedidos de divórcio, os casos de violência doméstica e os problemas de saúde mental na China.
Apesar disso, a imensa maioria dos chineses observa as restrições com espírito público, orgulhando-se de fazer sua parte em prol do conjunto nesta guerra do povo. À medida que outros países enfrentam dificuldades para conter o problema, sairão da crise mais confiantes de que estavam certos.
Tatiana Prazeres
Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior do diretor-geral da OMC.

Chegou a hora de o andar de cima colaborar OPINIÃO AULO FELDMANN, FSP

Imposto emergencial de 4% para o 1% mais rico da população seria decisivo

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Claro que o problema mais sério decorrente da pandemia são os doentes e as vidas que estão indo embora —e que, infelizmente, vai aumentar. Mas o país precisa derrotar o vírus da Covid-19 com todas as suas forças, inclusive econômicas. E as projeções sobre a necessidade de recursos ultrapassam os R$ 300 bilhões.
Uma quantia gigantesca, mas fundamental para melhor equipar nossos hospitais públicos, o SUS e dotar os mais necessitados e desempregados de alguma renda básica para sua sobrevivência durante os meses de crise mais aguda. Como resolver essa questão? Sem esses gastos 2020 já fecharia no vermelho, com um déficit fiscal previsto em R$ 150 bilhões. Agora, com esse montante adicional, o governo federal terá um rombo da ordem de meio trilhão de reais. Para resolver o colapso econômico pós-vírus, teremos que enfrentar alguns anos de recessão.
O economista e professor da USP Paulo Feldmann - Reinaldo Canato - 30.nov.18/Folhapress
A solução existe e está em se fazer algo que nunca fizemos: taxar a riqueza. Dados recentemente divulgados pela Receita Federal e Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital) mostram que a riqueza total do país —ou seja, patrimônio, imóveis, propriedades, aplicações financeiras e ações em poder das famílias brasileiras— atinge R$ 16,3 trilhões, sendo que 49% deste valor (R$ 8 trilhões) estão na mão de apenas 1% das famílias. Um imposto emergencial de 4%, aplicável apenas a essas famílias super-ricas, conseguiria eliminar todo o rombo acima mencionado.
Alternativa mais branda seria taxar apenas as aplicações financeiras. Nesse caso, segundo dado de 2019 divulgado pelo respeitado banco Credit Suisse, existem no Brasil 259 mil famílias com aplicações superiores a R$ 5 milhões. São chamadas pelos bancos de famílias milionárias ou super-ricas. Mas, em média, cada uma dessas famílias possui o dobro deste valor. Se resolvêssemos taxar apenas essa categoria, e com a mesma alíquota de 4% acima exemplificada para o patrimônio total, então conseguiríamos arrecadar cerca de R$ 100 bilhões; ou seja, um terço do que o país vai precisar. Claro, já seria uma ajuda considerável na guerra contra o vírus.
Taxar a riqueza é algo trivial nos países mais desenvolvidos, e precisamos caminhar para isso, pois estamos entre as nações mais desiguais do mundo. Da lista divulgada no último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, estamos entre os dez piores, ao lado de países africanos muito pobres. Aliás, entre esses países paupérrimos, somos o único que tem alguma importância na economia mundial.
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A proposta de taxar a riqueza é necessária apesar de a desigualdade nos países ser medida mais pela renda e menos por propriedade e patrimônio. Mas, quando consideramos a renda, a situação também é calamitosa: o 1% mais rico da população possui 28% da renda total. Só existe um outro país no mundo com tamanha aberração. É o Qatar, uma nação pequena de xeiques e emires.
A verdade é que o Brasil não possui um sistema tributário adequado. Aliás, não fosse o coronavírus, a discussão da reforma tributária estaria efervescente no Congresso neste exato momento. Entre as mudanças necessárias está a necessidade de fazer com que pessoas físicas que possuem lucros em suas empresas ou ganhos em aplicações financeiras e ações voltem a pagar impostos. Como era antes de 1996.
Ao taxarmos os ricos e as grandes fortunas vamos não apenas vencer a guerra contra o novo coronavírus, mas também evitar o colapso econômico iminente. Chegou a hora de o andar de cima colaborar.
Paulo Feldmann
Professor de economia da USP e ex-presidente da Eletropaulo (1995-96, governo Covas)