quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Fake news tiram sua força do entretenimento, Renato Janine Ribeiro FSP (definitivo)

O mundo real e a verdade podem ser enfadonhos

Fake news é uma expressão charmosa para o que sempre foi chamado de mentira. Só que há algo mais aqui. Podemos mentir mil vezes em coisas pontuais, mas as fake news fazem parte de um sistema, de uma estratégia. Uma mentira sozinha não é fake news. Só é fake news quando integra um sistema de mentiras, organizado para obter vantagens políticas e/ou econômicas.
Uma andorinha só não faz verão; nem fake news. Precisa haver organizações ou grupos, que podem ser visíveis (como um partido em campanha); escondidos, mas que depois são denunciados (a agora célebre Cambridge Analytica ou as equipes que, segundo ex-bolsonaristas, teriam atuado na eleição passada); ou ainda, e talvez para sempre, bem ocultos.
O professor Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação - Mathilde Missioneiro - 5.nov.19/Folhapress
Fazer fake news é um empreendimento, é coisa de quem se organiza como empresa. Não é para amadores. Mas não sei se um dia sairá um manual para ensinar “engane bem com fake news”. O sucesso delas está em passar por verdade. A mentira só dá certo quando acreditam nela, quando pensam que não é o que é, e sim que é verdadeira. 
Tudo indica que o paraíso das fake news é o WhatsApp. Por que ele, e não as outras redes sociais? Porque o Facebook, embora você possa configurá-lo para apenas poucas pessoas verem suas postagens, é, em princípio, público.
Já o WhatsApp se dirige estritamente a grupos fechados e, segundo alega, suas mensagens são protegidas de qualquer olhar, até de seu dono, Mark Zuckerberg, ou do governo americano. Não há como quebrar o sigilo do “zap”, submetê-lo às leis de proteção da honra, exigir direito de resposta. Não há contraditório, não há escrutínio público —elementos essenciais da informação veraz e da disputa democrática.
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Mas a grande pergunta é: por que as fake news têm tanto sucesso? Por que seus conteúdos fascinam? Sustento que o maior sucesso no WhatsApp é quando se recorre ao entretenimento, em particular ao audiovisual. A assustadora reportagem do The New York Times sobre a campanha antivacina mostra que ela emplacou no Brasil graças a vídeos difundidos em grupos do aplicativo.
As imagens seduzem. Mais que isso, imagens dão uma impressão (um especialista diria talvez um efeito) de verdade, com o qual palavras não podem competir. Sabemos da facilidade de criar imagens ou mesmo filmes fakes. Há aplicativos que fazem isso. E o espectador acredita. Mais que isso, tem prazer.
Difícil competir com o prazer, com o entretenimento, quando ele toma o lugar da notícia, da análise. O mundo real e sua cobertura, jornalística ou acadêmica, são prosaicos. Podem ser enfadonhos. O Jornal Nacional só tem grande audiência, e mesmo assim abaixo da novela, porque trata o espectador como um Homer Simpson (na frase atribuída a William Bonner). Entretém.
Como enfrentar essa orgia de mentiras, que entre outros promoveu o sucesso do Brexit e de Trump? Como fazer a prosa jornalística e acadêmica vencer o entretenimento fantasiado de informação? Como fazer a palavra racional refutar imagens que mentem direto à emoção? A pergunta não é nova; o assunto já foi discutido por Platão, em “Banquete”, mais de 2.000 anos atrás; mas é o grande desafio hoje, sobretudo para a imprensa e para a democracia.
Renato Janine Ribeiro
Ex-ministro da Educação (2015, governo Dilma), professor de filosofia (USP e Unifesp) e autor de 'A Pátria Educadora em Colapso' (ed. Três Estrelas)
TENDÊNCIAS / DEBATES
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O dilema Bishop, Ruy Castro ,FSP

Talvez o Brasil ganhasse mais com uma homenagem na Flip a Cecília Meirelles

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Quem me falou primeiro de Elizabeth Bishop foi Paulo Francis, em 1968, na Redação da revista Diners, que ele dirigia e onde eu escrevia. Três anos antes, Francis subira até Petrópolis a fim de conhecer Bishop e sua companheira, Lotta de Macedo Soares, criadora do parque do Flamengo e com quem a poeta americana morava na serra. O encontro não rendeu muito. "As duas estavam quase em coma alcoólico", ele contou, rindo.
Beber demais ainda era praticamente obrigatório entre os escritores dos anos 60, e o porre não alterou a admiração de Francis por Bishop. Ao declamar alguns de seus versos na Redação, ele acendeu minha curiosidade por ela. Não posso jurar, mas acho que era aquele poema sobre os amantes que dormem abraçados, "como duas páginas de um livro/ que se leem uma à outra no escuro". É difícil não ser fisgado por quem escreveu isso. 
A escolha de Elizabeth Bishop como homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em 2020 está gerando dissensões. A mim, as principais acusações que lhe imputam --ter "apoiado" o golpe militar em 1964 e esnobar a poesia brasileira-- não dizem nada. Lotta, seu canal com o Brasil e com quem viveu por 14 anos, era íntima de Carlos Lacerda, principal artífice do golpe. Queriam que Bishop torcesse por Leonel Brizola, arqui-inimigo de Lacerda? E seu domínio da língua portuguesa lhe permitiria avaliar nossa poesia? Seja como for, em que isso altera sua grandeza como poeta --como grande poeta americana?
Minha objeção é a de que teríamos mais a ganhar homenageando, digamos, Cecília Meirelles. Não duvido que Bishop fosse mais poeta. Mas Cecilia, além de poeta, foi também fundamental nos nossos anos 20 e 30 por sua independência como mulher e seu trabalho como educadora e folclorista. O Brasil lhe deve muito e está passando da hora de pagar.
E, ah, sim, ela também deve ter apoiado o golpe em 64.
Poema de Elizabeth Bishop, na casa de Ruy Castro
Poema de Elizabeth Bishop em quadro que Ruy Castro tem em sua casa - Heloisa Seixas/Arquivo Pessoal