quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

O mundo irreal de Doria e Guedes, Elio Gaspari, FSP

Exatamente uma semana depois de a PM de Wilson Witzel ter sujado a festa do Flamengo, o governador João Doria disse no domingo (1º) que “São Paulo tem uma polícia preparada, equipada e bem informada.” Naquela hora, os corpos de nove jovens estavam no necrotériopisoteados depois de uma entrada truculenta de sua PM num pancadão de Paraisópolis. Nas bancas e na rede, nesse mesmo domingo, estava também a entrevista do ministro Paulo Guedes à repórter Ana Clara Costa, na qual ele explicava o “timing” de suas reformas:
“Você dá pretexto para os outros fazerem bagunça. (...)  Chamar pra rua manifestação ordeira e pacífica, como a que fazem quase todo fim de semana, problema nenhum. Agora, chamar para a rua para fazer igual no Chile e quebrar tudo foi uma insanidade, irresponsabilidade.” 
Há algumas semanas o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, acompanhando uma ameaça vinda de um filho do presidente, havia cantado a pedra do perigo chileno como justificativa para um surto ditatorial: “Acho que, se houver uma coisa no padrão do Chile, é lógico que tem de fazer alguma coisa para conter.”
 
É irresponsabilidade (ou desejo) trazer o espantalho chileno para a situação brasileira, e a tragédia de Paraisópolis, bem como a pancadaria da festa do Flamengo, mostram que nos dois casos a insanidade saiu da PM. Não é de hoje que isso acontece.
Em outubro do ano passado, durante a gestão do governador Márcio França, a PM entrou num pancadão de Guarulhos e três pessoas morreram em situação semelhante à de Paraisópolis. Doutor Doria poderia examinar a investigação do episódio de Guarulhos. Com uma polícia “preparada, equipada e bem informada”, deu em nada. 
Um morador de Paraisópolis contou que a PM “chegou jogando bombas de efeito moral”. Pode ser que não tenha sido assim, mas na noite de 13 de junho de 2 013 a PM paulista bloqueou uma passeata que protestava contra o reajuste dos ônibus na esquina da rua da Consolação com a Maria Antonia. Quem estava lá viu que uns vinte policiais vieram do nada, jogando bombas de efeito moral. Aquela passeata era ordeira, convocada pelo Movimento Passe Livre e povoada por gente de tênis baratos e camisetas.
Começavam as jornadas de 2013. Anos depois, as manifestações transmutaram-se e a presidente Dilma Rousseff foi deposta. (Vale lembrar que o governador tucano Geraldo Alckmin e o prefeito petista Fernando Haddad, do PT, que haviam reajustado as tarifas, estavam num evento em Paris, onde cantaram “Trem das Onze” durante um jantar.)
Guedes teme que apareça gente “quebrando tudo”, mas, até agora, quem apareceu quebrando os outros foram policiais, em São Paulo e no Rio. Esse comportamento persiste pela garantia da impunidade.
Nas divagações chilenas de Guedes e do general Heleno insinuam-se paralelos de incitação política. Já que é assim, pode-se temer também que a incitação política venha de outro lado. Em 1968, ela vinha de um maluco chamado Aladino Félix. Antes que terroristas de esquerda começassem a assaltar bancos e a matar gente (naquele ano), ele roubava dinamite e armas. Assaltou pelo menos um banco, explodiu uma bomba na Bolsa e outra num oleoduto. Como era doido, não se pode acreditar na sua palavra quando dizia que estava ligado a um general da reserva que, por sua vez, teria conexões com o governo. Uma coisa é certa: no seu grupo estavam 14 soldados e sargentos da Força Pública de São Paulo, mais tarde transformada numa Polícia Militar.
Naqueles dias o governador de São Paulo, Abreu Sodré, denunciava uma conspiração nos “subúrbios do poder”.


Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Jogo arriscado, Delfim Netto, FSP

Segundo lenda urbana, sucesso da reeleição depende dos bons resultados na economia.

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Há alguns ministros da área "sombria" do governo Bolsonaro que exemplificam a descrição do gênio Millôr Fernandes: "Sua excelência chegou ao limite da ignorância e, no entanto, prosseguiu". Ela detém controle do poder palaciano e, com razão, assusta toda a "intelligentsia" acadêmica e boa parte da burguesia esclarecida, que estão convencidas de que a reeleição de Bolsonaro será o caminho livre para a construção de um oximoro: a democracia iliberal.
Qual é a principal consequência dessa racionalização do futuro? Tentar diminuir de todas as formas, mas com sutilezas que as escondam, a probabilidade de sua reeleição. Mas é preciso fazê-lo aumentando a probabilidade de eleger o candidato do "meio", um ectoplasma do "progressismo neoliberal" gestado em reuniões acadêmicas literomusicais com partidos que, por sua dimensão atual, precisariam de uma dezena para se organizarem num governo majoritário.
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O ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente Jair Bolsonaro - Pedro Ladeira - 15.nov.2019/Folhapress
Estão fortíssimos (os gigantes fundos públicos mais as emendas parlamentares), têm donos e controlam o Congresso, mas estão desconectados tecnologicamente da grande massa eleitoral. Nenhum deles, até agora, parece ter musculatura para chegar ao segundo turno.
Então, o que fazer, como diria o companheiro Ulyanov?
Se acreditarem na lenda urbana de que o sucesso da reeleição depende dos bons resultados na economia, a solução é complicar a vida de Guedes reafirmando, cinicamente, todo o apoio ao seu programa.
O conhecimento dessa operação poderá ter consequências político-eleitorais devastadoras para quem deixar sua digital comprometida com um projeto que, para tentar voltar ao poder, propõe o sacrifício de todos os brasileiros.
À lenda urbana há pelo menos uma exceção. Dilma se reelegeu depois da maior destruição da economia produzida de 2012 a 2014, cumprindo o seu programa anunciado no longínquo 2005, quando disse: "Essa história de que investimento é bom e despesa corrente é má é outra simplificação grotesca. Despesa corrente é vida: ou você proíbe o povo de nascer, de comer ou de adoecer, ou vai ter despesa corrente".
Bingo! Deixou uma queda de 9% do PIB per capita, 14 milhões de desempregados e pelo menos 40 milhões de famílias comendo menos. E se reelegeu!
Esse é um jogo arriscado que precisa ser jogado abertamente sob as regras do Estado democrático de Direito, sob pena de a sociedade se voltar contra o Legislativo se lhe for atribuída a responsabilidade de continuar a proteger a "casta corporativista" porque seu desejo é "redistribuir entre seus membros" o excedente produtivo de que ela se apropriou, com direitos "mal adquiridos", desde a Constituição de 88.
Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.