sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Exoneração não encerra debate sobre influência da política no Judiciário, FSP

Eloísa Machado de Almeida
A indicação de Sergio Moro como ministro da Justiça no governo do presidente Jair Bolsonaro suscita uma relevante questão constitucional: há limites para a participação de juízes em governos?
A Constituição Federal de 1988 estabelece um amplo sistema de garantias ao exercício da função jurisdicional. Ao Poder Judiciário, como um todo, é garantida a autonomia administrativa e financeira. Aos juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores, por sua vez, são garantidas a inamovibilidade, a vitaliciedade e a irredutibilidade de subsídios.
Todas estas garantias institucionais e funcionais existem para preservar o Judiciário e os juízes de sofrerem ingerência indevida em sua atuação. Mas, sozinhas, não são capazes de atingir seu objetivo.
É por isso que a própria Constituição traz vedações aos juízes: eles não podem exercer atividade político-partidária; não podem receber custas em processos nem auxílios ou contribuições (quer de pessoas físicas ou empresas); precisam aguardar quarentena de três anos para advogar no mesmo juízo ou tribunal e, por fim, não podem “exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério”, como previsto no artigo 95 da Constituição.
Analisadas conjuntamente, as garantias buscam preservar a independência, ao passo que as vedações exigem imparcialidade.
É por este motivo que quando um juiz decide assumir um cargo político deve se exonerar, ou seja, sair definitivamente do Poder Judiciário. Essa questão já foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 388, que tratava da indicação de membros do Ministério Público a cargos em governo. Mesmo tratando de carreira distinta, os ministros consideraram também ser o caso de juízes. Afinal, as vedações para promotores e juízes são análogas e ambas proíbem a atuação em outra função, mesmo em disponibilidade.
Quem melhor explicou as perniciosas relações na indicação de promotores e juízes a cargos políticos foi o ministro [Luís Roberto] Barroso, ao alertar que poderia se criar “um incentivo para agirem politicamente, para agirem com considerações políticas na sua função de proteção do interesse público, inclusive, eventualmente, para conquistar a simpatia do chefe do Executivo e obter determinado cargo público”. O pior, prossegue o ministro, seria supor que promotores possam estar “tendo qualquer tipo de atuação, inclusive e sobretudo em matéria criminal, que possa estar conectada a qualquer tipo de interesse político”. Se a decisão do Supremo, como afirmado pelos próprios ministros, trata das mesmas vedações impostas a juízes, é preciso ter as mesmas cautelas.
A simples exoneração, assim, parece não colocar ponto final da questão. O problema é mais amplo, já que a atuação quer de promotores ou juízes pode ter sido influenciada pela possibilidade de integrar um governo. Está em questão se os atos judiciais praticados pelo Sergio Moro juiz serviram, de alguma forma, para agradar a um determinado projeto político e tornar Sergio Moro ministro.
Advogados de réus da Operação Lava Jato foram os primeiros a alegar suspeição do juiz Moro, por agir indevidamente em desfavor de alguma parte. Afinal, Sergio Moro, enquanto juiz, atuou para a prisão do rival político de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, que pretende lhe fazer ministro. A pecha de juiz político ronda Moro há anos e agora se intensifica.






 
Eloísa Machado de Almeida
Professora e coordenadora do Supremo em Pauta da FGV Direito SP

Ministro Moro é um exemplo assombroso de Judiciário com partido, Reinaldo Azevedo, FSP


Os protagonistas da Lava Jato estavam e estão envolvidos em um projeto político


“Consummatum est”! Sergio Moro fulminou a classe política e sai como um dos dois grandes beneficiários da razia que promoveu. Já é o primeiro na fila de sucessão —quando Jair Bolsonaro quiser, bem entendido.
Não é “fake news”. O futuro superministro da Justiça e agora ex-juiz encontrou-se com Paulo Guedes durante a campanha e recebeu o convite para chefiar um troço que faz o antigo SNI, mesmo em seus dias de esplendor, parecer brincadeira de criança. A conversa desta quinta com o presidente eleito foi uma formalidade. Alguém poderia objetar: “Não compare ditadura com democracia”. Claro que não! Se, no entanto, num regime democrático, as leis são submetidas por togados a uma leitura de exceção, depois referendada por colegiados, cumpre que se questione qual é a diferença entre uma ditadura genuína e uma democracia degradada. Certamente as há. Mas nem um regime nem outro conduzem os países a um bom lugar.
Leitores desta coluna e do meu blog e os que me acompanham no rádio e na TV sabem que não tardou para que eu percebesse e apontasse que a Lava Jato era muito pouco reverente à Constituição e ao Código de Processo Penal. E isso para começo de conversa. Liberal, alinhado com o que entendo ser a direita democrática —ainda que seja esta, hoje, uma das vastas solidões do Brasil—, crítico severo das esquerdas e particularmente do petismo, passei a sofrer primeiro as restrições e depois o assédio moral daqueles que me viam como uma peça de propaganda de seus delírios autoritários.
Fazer o quê? Minhas convicções liberais me impõem o necessário formalismo no trato das questões de direito. Nego-me a transferir para demiurgos ou entes a arbitragem sobre a minha liberdade e a de meus adversários intelectuais. Meu herói nada secreto é o intelectual francês Raymond Aron. Submeteu o marxismo universitário a uma das mais impiedosas desconstruções de que se tem notícia e foi um duro oponente das esquerdas. Mesmo no tempo das ilusões armadas, Aron debatia com livros, retórica esclarecida e fatos. Não com pistolas, algemas e correntes.
Ocorre que o combate à corrupção —quem há de ser contra, exceção feita a seus beneficiários?— logo degenerou em ataque aos próprios fundamentos do estado de direito. Infelizmente, o enredo macabro se desenvolveu sob a vigilância rebaixada da imprensa. Passou a vigorar um certo “Padrão Witzel” de combate a criminosos do colarinho branco, reais ou supostos. Se é para pegar bandidos, procuradores e juízes podem atuar como “snipers”, recebendo, por princípio, o que Bolsonaro chama “excludente de ilicitude”.  E os que se atreviam a apontar as ilegalidades eram logo tachados de lenientes com a corrupção. E a destruição se deu. Hoje, como resta evidente, a própria liberdade de imprensa virou matéria barata. A tentação da guilhotina sempre supõe que só a cabeça dos maus está em perigo. Errado. Desrespeitar a ordem legal para pegar criminosos é, desde sempre, uma advertência aos não criminosos.
O “Moro político”, que falou com Guedes antes da eleição sobre a possibilidade de integrar o governo, também é o “Moro juiz”, que resolveu liberar trechos da delação de Antonio Palocci. E o fez uma semana antes do primeiro turno. Atribuir a isso a vitória de Bolsonaro é bobagem —esta se deve a muitos outros fatores, incluindo as escolhas do PT, mas não cuido disso agora. O fato é um emblema do que não pode fazer um juiz. O que sempre me pareceu claro, embora fosse constatação quase solitária, revela-se agora de maneira escancarada: protagonistas da Lava Jato estavam e estão empenhados também em um projeto político. Sim, a maquinaria toda tem de funcionar, e as dificuldades são muitas. De toda sorte, o representante máximo do Partido da Polícia, já candidato à sucessão de Bolsonaro, terá nas mãos a ficha dos Três Poderes da República. E ele sabe como exercer o direito criativo.
Não há debates nos cemitérios. Mas os há nas universidades e escolas. Um lugar é, literalmente, a terra dos mortos. O outro é a vereda em que transitam os vivos. O Supremo deu uma resposta maiúscula àqueles que pretenderam usar a Lei Eleitoral, a 9.504, para rasgar os artigos 5º e 220 da Constituição, que garantem a liberdade de expressão, e o 207, que assegura a autonomia universitária. Ainda há juízes em Brasília. Tomara que resistam ao assédio daqueles que nos prometem um pouco mais de eficiência em troca de um pouco menos de liberdade.
Por uma Justiça Sem Partido!
Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.