quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Doria usa cinco softwares de 'big data' para aumentar seu alcance nas redes, BBC BR


  • 26 setembro 2017
Prefeito de São Paulo, João DoriaDireito de imagemAFP
Image captionA repercussão de tudo o que o prefeito de São Paulo fala nas redes é monitorado e usado em sua estratégia de comunicação
Enquanto a disputa interna no PSDB para concorrer à Presidência em 2018 se acirra, o prefeito de São Paulo, João Doria, usa as redes sociais para pavimentar seu caminho.
O crescimento vertiginoso de sua influência digital em menos de um ano de mandato é resultado de uma estratégia que começou a ser testada ainda nas prévias do partido, se profissionalizou e hoje combina cinco softwares que usam 'big data' para fazer monitoramento e uma equipe de análise que avalia o impacto nas redes sociais de tudo o que ele, que nega ser pré-candidato, fala.
"Nossa função é alinhar o discurso do João para ele ser bem entendido. Ele não vai mudar o que pensa, as propostas, mas vai falar da melhor forma", diz Daniel Braga, que acompanha Doria desde agosto de 2015.
Em janeiro deste ano, quando o núcleo de redes sociais de sua Promove Comunicação ganhou corpo, Braga criou com outros dois sócios a Social QI, empresa independente que, apesar da pouca idade, já chegou a cuidar do marketing digital do governo Temer - parceria encerrada em julho.
A assessoria de imprensa da Prefeitura de São Paulo confirma que Doria é cliente da empresa, mas esclarece que seu vínculo é como pessoa física, e não como prefeito.
A Social QI trabalha com uma integradora que reúne "entre quatro e cinco" softwares de monitoramento, cujos nomes mantém em segredo. Em paralelo, utiliza programas como o War Room, um serviço em português criado pela startup Stilingue, que há quatro anos desenvolve a ferramenta por meio do que a ciência da computação chama de "processamento de linguagem natural".

Varrer as redes

O time de 35 desenvolvedores da Stilingue, baseado em Ouro Preto (MG), alimenta o computador com textos em português para ensiná-lo a entender e interpretar a língua, identificando padrões comuns.
A tecnologia permite o escrutínio das redes sociais - Facebook, Twitter, Instagram -, de influenciadores e de tudo o que é publicado na imprensa. Um volume exponencial de informações que dificilmente seria administrável sem a ajuda de um software, conta o presidente da empresa, Rodrigo Helcer.
Image captionSoftwares de inteligência artificial são cada vez mais usados por políticos e empresas para fazer gestão de imagem
Para a política, as aplicações incluem, por exemplo, a gestão de imagem - além de capturar tudo o que é escrito sobre qualquer assunto, o software também faz reconhecimento facial para identificar memes - e a psicometria.
Termo que ficou mais conhecido depois da campanha de Donald Trump à Casa Branca, a piscometria faz uma espécie de análise de personalidade dos eleitores, útil na identificação de perfis que vão muito além de direita e esquerda e, por consequência, na formulação do discurso político.
A estratégia de comunicação do republicano se baseou na chamada "análise de sentimento" das redes sociais, que deu aos marqueteiros informações que até então não haviam sido usadas em disputas eleitorais, como os medos e anseios dos americanos.

De olho

"Tudo o que o João fala é monitorado", diz Braga. A ideia é avaliar como o discurso do prefeito é recebido para "reduzir os impactos negativos e potencializar os positivos".
"Se ele fala sobre desestatização, nós checamos o que as pessoas falam sobre isso para vermos qual a melhor forma de elas absorverem (o discurso no futuro)". Esse é um trabalho que envolve sensibilidade política, capacidade de interpretação e planejamento estratégico, afirma ele, que conversou com a reportagem na noite desta segunda, por volta de 21h, após acompanhar agenda do prefeito paulistano em Belo Horizonte.
Image captionSegundo Braga, 23,5% dos brasileiros que estão no Facebook já interagiram com a página de Doria
Depois de uma temporada em Brasília, Braga voltou a cuidar pessoalmente da conta de Doria recentemente, a pedido dele. O publicitário nega que a mudança tenha relação com a disputa eleitoral de 2018 e com o fato de que o prefeito é cotado como pré-candidato à Presidência.
"Tem a ver com a ferocidade da oposição nas redes sociais", explica. "A gente tem que entregar o 'João Trabalhador' que prometeu", acrescenta, referindo-se ao slogan da campanha de Doria.
Segundo ele, entre os 114 milhões de usuários únicos do Facebook no Brasil, 23,5% já interagiram com a página do prefeito, o maior percentual de uma lista de sete possíveis presidenciáveis. O segundo lugar é de Jair Bolsonaro (PSC-RJ), com 7,1%.
Ainda sobre as eleições do próximo ano, Braga ressalta que não presta serviços exclusivamente para o PSDB, afirma que a empresa tem sido "assediada por muita gente" e que está avaliando o mercado para 2018.

Entre o senso comum e a ciência: existe ‘cura gay’? Nexo Jornal (pauta)

Renan Quinalha e Roger Raupp Rios undefined undefined 26 A patologização da homossexualidade é um expediente que se alimenta da homofobia e que a reproduz. É uma tentativa de legitimar preconceitos e discriminação, de um modo pseudocientífico. Há mais de quarenta anos, uma pesquisa sobre sexualidade foi exibida no programa Fantástico, da Rede Globo. Era um domingo em junho de 1978, momento em que o Brasil ainda era governado pelo general Ernesto Geisel sob uma ditadura civil-militar fortemente preocupada com a “moral e os bons costumes”. Na ocasião, perguntou-se “o que o brasileiro pensa[va] sobre o homossexualismo, tanto do homem como da mulher?”. Aqui cabe um parêntese: o sufixo “ismo”, do ponto de vista etimológico, é utilizado geralmente para formar substantivos abstratos dos mais diversos tipos. Acoplado à palavra “homossexual”, ele assume o sentido de uma doença e, por essa razão, passou-se hoje a usar a homossexualidade (em contraposição à heterossexualidade) e não mais “homossexualismo”.  Pois bem. Na época, as respostas foram as seguintes: 25% consideravam uma doença, 19% culpa da falta de orientação dos pais, 18% um produto do desajuste do mundo de hoje e 11% uma falta de vergonha. Além disso, mais da metade dos entrevistados considerava o homossexualismo muito chocante, especialmente o masculino. João Antônio Mascarenhas, advogado e um dos ativistas pioneiros do movimento homossexual brasileiro, atribuiu à censura este resultado nada favorável aos homossexuais, uma vez que ela impedia uma discussão mais franca e serena sobre assuntos tidos como tabus. Ele afirmou, em texto publicado no jornal Lampião da Esquina, que “a culpa cab[ia] à rigorosíssima censura que pesa[va] sobre a rádio e a televisão”. Poucos anos depois, em 30 de abril de 1985, o Jornal do Brasil publicou declarações do chefe da Censura Federal, Coriolano Fagundes, em que este anunciava a liberalização da censura, mas não para todos. Ele declarou que tudo que fosse “obsceno” deveria ser combatido com rigor e, segundo sua visão, “obsceno é tudo aquilo que sai da normalidade. Por exemplo, o ato sexual entre dois homens ou duas mulheres não é uma coisa normal, embora não vá nisso uma crítica ao homossexualismo”. Com essa breve declaração, o censor dava um sinal claro de que os homossexuais ficariam de fora da agenda política da transição. No entanto, esse tipo de colocação já não passava mais em branco diante do surgimento de outros grupos organizados de homossexuais. Assim, o grupo Triângulo Rosa, representado por João Antônio Mascarenhas, enviou uma carta ao diretor da censura, qualificando-o de “preconceituoso” e destacando a orientação despatologizante então emanada pelo Conselho Federal de Medicina, que havia retirado a homossexualidade da lista de doenças justamente naquele mesmo ano de 1985. Pouco tempo depois, o jornal Folha de S.Paulo publicou declaração de Coriolano Fagundes sustentando a censura da música “Rubens”, do grupo paulistano “Premeditando o Breque”, em que ele, mais uma vez, afirmava que “não tenho dúvida que o homossexualismo é uma forma de perversão sexual. Não acho que o homossexualismo seja correto. É preciso ter uma postura de educação em relação ao sexo e não de permissividade”. Dessa vez, o Grupo Gay da Bahia enviou uma carta, na qual o ativista Luiz Mott informava que a ciência, especialmente a medicina, dentro e fora do Brasil, já estava despatologizando a homossexualidade e que propagar preconceitos dessa maneira era apenas uma reprodução do “machismo” e da “ignorância pré-científica”. A tônica das demandas do movimento LGBT daquela época passou a ser, assim, a supressão de leis discriminatórias, a inscrição da proteção legal no ordenamento jurídico, o abandono de um discurso médico de estigmatização pelas entidades da área da saúde, acolhimento para vítimas de violência e investigação dos responsáveis, além de uma disputa aberta na imprensa contra veiculação de notícias sensacionalistas e preconceituosas. Por conta dessas lutas, desde então, é verdade que muita coisa mudou no país. Nessa linha, desde 2011, pessoas do mesmo sexo podem formalizar uma união estável ou mesmo um casamento civil. Há políticas públicas específicas voltadas para a população LGBT em diferentes níveis de governo. Conselhos profissionais da área da medicina e da psicologia despatologizaram as homossexualidades. E, a despeito de não haver ainda a criminalização da violência contra LGBTs, há diversos entes federativos com legislação que pune a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Além disso tudo, no plano cultural, a mesma Rede Globo que apresentou aquela antiga pesquisa vem exibindo novelas e programas que tratam com maior naturalidade beijos entre pessoas do mesmo sexo e as pessoas trans, provocando grande impacto no debate público. No entanto, ainda hoje parece sobreviver e até crescer, em alguns setores da sociedade e do Estado, um discurso que classifica a homossexualidade como um misto de pecado, falta de vergonha e doença. Com efeito, a patologização da homossexualidade é um expediente que se alimenta da homofobia e que a reproduz. Ela expressa na linguagem da “medicina das perversões sexuais” a mudança do paradigma da homossexualidade de pecado para doença. Ela se revelou como tentativa de legitimar preconceitos e discriminação, de um modo pseudocientífico. Nessa trajetória, a homofobia desafia a psicologia e o direito. Nutrida por certas crenças religiosas ou pelo senso comum preconceituoso, ela deteriora as liberdades de profissão, de religião e de ciência, além de obscurecer o dever estatal de coibir a discriminação, com sérios danos à saúde e à democracia. Logo de início, é preciso salientar que a psicologia é um campo do conhecimento científico. Ela se desenvolve por argumentos, técnicas e categorias cuja verificação e discussão se orientam por um procedimento racional. Nela, a dúvida é o que impele a busca incessante da resposta mais correta acessível ao conhecimento humano. Daí que a ciência não compactua com o senso comum preconceituoso, que é inimigo da razão e berço de tanta discriminação. Não por acaso, quando a ciência livra-se dos preconceitos, atua como poderoso instrumento para o avanço da democracia, ao passo que quando se deixou instrumentalizar, acumpliciou-se ao totalitarismo, aos campos de concentração, às experiências com seres humanos, inclusive homossexuais. Após a Segunda Guerra Mundial, a bioética consolida-se, colocando princípios para a ciência e para a prática profissional de saúde, dentre os quais a beneficência e a justiça, radicados nos direitos humanos e na dignidade humana. Ao contraporem-se frontalmente a discriminações, esses princípios balizam o debate sobre a despatologização da homossexualidade e sobre o banimento de técnicas de “cura gay” ou de “reorientação da homossexualidade”. Sem contrapor-se como faz diante do senso comum preconceituoso, a ciência aparta-se da religião.  A experiência religiosa tem na fé, e não na razão, seu dado fundamental. Na sua fé, o crente não tem espaço para a dúvida metódica. Daí porque testemunhará sua crença em face de certas questões, ou no mínimo descartará potenciais resultados incompatíveis com ela. Nesse quadro, em regimes democráticos e pluralistas, a psicologia como ciência e sua prática profissional estão enlaçados à laicidade e à observância da ciência livre de preconceitos. Ambas funcionam para o convívio das liberdades num mundo plural. Sem serem antirreligiosas, afirmam esferas distintas. Para tanto, marcam fronteiras cuja ultrapassagem revela-se deletéria para a ciência, para a prática profissional e para a religião, pois confundiriam o cientista, o profissional e o crente. Essas relações são essenciais para entender as previsões constitucionais da liberdade de profissão e de sua necessária regulamentação ética, em especial quando sua prática pode provocar graves danos à saúde. Todo atendimento que contrariar conhecimentos consolidados, e mais grave ainda, causar malefícios, prometendo cura para o que não é doença ou seu equivalente ( “reorientação” para o que não é desorientado), não só será causa de sofrimento e morte, como prática ilegal da profissão, sujeito a responsabilidade penal, civil e administrativa. Assim como a vedação de experimento científico violador da dignidade humana é um mandamento bioético, a proibição de “reorientação homossexual” como prática psicológica, longe de ser violação da liberdade de profissão, é um imperativo constitucional. Como mundo afora já estampam ​tratados internacionais, constituições e legislação, como já decidiram supremas cortes (inclusive o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade), a homofobia é uma discriminação odiosa e ilegítima, venha ela de convicções religiosas ou do senso comum preconceituoso. Renan Quinalha é professor de direito da Unifesp e doutor pela USP. Roger Raupp Rios é desembargador federal do TRF-4, doutor em direito pela UFRGS e professor de direitos humanos do UniRitter.

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/Entre-o-senso-comum-e-a-ci%C3%AAncia-existe-%E2%80%98cura-gay%E2%80%99

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terça-feira, 26 de setembro de 2017

"Ninguém quer sair na foto com o Brasil", diz Ricupero, que lança livro


Diplomacia não faz milagre. Hoje em dia, a imagem que o Brasil tem no exterior corresponde à realidade: um país com uma corrupção terrível, um presidente com uma segunda denúncia e a crise mais grave da história.
"Ninguém quer sair na foto com o Brasil", diz o embaixador Rubens Ricupero, 80, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, que lança na semana que vem "A diplomacia na construção do Brasil - 1750-2016", uma abrangente história da política externa brasileira.
Marlene Bergamo/Folhapress
O ex-ministro e ex-embaixador Rubens Ricupero é entrevistado pela *Folha" em seu apartamento
O ex-ministro e ex-embaixador Rubens Ricupero é entrevistado pela *Folha" em seu apartamento
Na obra, Ricupero, que foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), retrata como a diplomacia, e não o poder militar ou econômico, asseguraram ao Brasil suas fronteiras atuais.
Ele analisa a influência dos EUA na política externa brasileira —"Eles não executaram (o golpe militar), mas foram os mandantes". Reserva críticas para a política externa "ideologizada" do PT, mas também faz elogios.
"Por que todo mundo queria estar com o Lula? O Lula era um vitorioso. Além do sucesso econômico e político, ele tinha o êxito moral, o combate à miséria e à injustiça. Hoje, deve ter muito pouca gente querendo sair na foto com o Temer. Ninguém pode imaginar que o Itamaraty vai alavancar o Brasil se o país não acabar com a corrupção, voltar a crescer e combater a miséria."
Abaixo, trechos da entrevista que ele concedeu à Folha.
*
Folha - O senhor testemunhou vários momentos importantes da história brasileira, relatados no seu livro. Pode contar algum?
Rubens Ricupero - Tem o encontro do Robert Kennedy com o ex-presidente João Goulart, em 1962. Era 17 de dezembro e eu era terceiro-secretário, um cargo bem baixo no Itamaraty. Brasília estava vazia e eu era o único diplomata respondendo pelo Itamaraty. O Robert Kennedy ia chegar e pediram para recebê-lo, em nome do governo brasileiro.
Podia parecer até uma ofensa, o terceiro secretário recebendo, e eu expliquei ao Lincoln Gordon (embaixador dos EUA na época) que eu era o único ali. Eu apertei a mão do Robert Kennedy.
No dia seguinte, às 11h, ele foi recebido pelo Goulart, no Alvorada. Eu fui, mas não entrei. Na sala estavam apenas Goulart, um intérprete do departamento de Estado, Kennedy e Lincoln Gordon.
Goulart não quis testemunhas porque provavelmente antecipava que ia ser uma conversa muito forte e não queria que ninguém ouvisse o que ele ia dizer.
Em 2014, foi revelado um memorando sobre o encontro, escrito por Gordon. Kennedy teria dito a Goulart: "Não temos problemas com independência na política brasileira, mas de fato objetamos a que essa independência se torne sistematicamente antiamericana, opondo-se a políticas e interesses americanos de modo regular".
Mais assombroso ainda, na primeira conversa que John Kennedy gravou no Salão Oval da Casa Branca, em julho de 1962, Goulart só estava no poder há 9 meses e os americanos já estavam convencidos de que era preciso levar os militares a dar um golpe no Brasil.
Eles reconheciam que os militares não queriam fazer isso, tanto que Gordon diz ser preciso "reforçar a espinha dorsal dos militares". Ainda falta escrever o livro sobre o papel dos americanos no golpe.
Não acho que eles deram o golpe, mas não tenho dúvida de que eles induziram e foram os primeiros a organizar. É como num homicídio, que tem o mandante e o executante. Os americanos não executaram (o golpe), mas foram os mandantes. Mesmo assim, estou convencido de que o Goulart caiu por culpa dele, quando ele recuperou os poderes e apostou na radicalização. Não havia ambiente para isso.
Por que?
Ele radicalizou em um momento de aguda Guerra Fria em que isso era inconcebível. Do Jacobo Arbenz em 54, na Guatemala, até o Salvador Allende em 73, no Chile, nenhum governo de esquerda na América Latina sobreviveu. O Lula só chegou ao poder porque a Guerra Fria tinha terminado.
Hoje em dia qual é o tom do relacionamento entre Brasil e EUA?
Os EUA, depois do fim da Guerra Fria e após os ataques de 11 de setembro de 2001, passaram a ter uma agenda internacional em que não há mais espaço para América Latina.
A pauta americana é dominada hoje por grandes temas de superpotência, como problemas no mar do sul da China e rivalidade estratégica com a Rússia, ou pela islamização da agenda internacional, por conflitos vinculados à radicalização de um de islamismo extremista.
Uma vez que desapareceu a ameaça comunista, para os americanos, o que se passa aqui pode incomodar um pouco, mas não muito. Até mesmo a Venezuela —eles prefeririam que fosse um país a favor dos EUA, mas podem conviver com isso perfeitamente.
Hoje em dia, na grande estratégia americana, não há espaço para o Brasil. O Trump até hoje não fez um tuíte especificamente sobre o Brasil —essa é a maior prova da insignificância do Brasil para o governo americano. Aliás, ainda bem, porque em geral, quando Trump põe alguém no Twitter, é para dar uma porrada.
Hoje nossa política externa para os EUA está mais para política externa independente, dos anos Jânio-João Goulart, ou alinhamento automático?
Hoje temos uma política independente. No discursodo Temer na ONU, que é o do Itamaraty, há defesa do Acordo de Paris e do multilateralismo, dois temas a que Trump se opõe. O Brasil tem o que dizer nessas duas questões.
O Brasil não é potência nuclear, nem militar convencional, nem econômico-comercial. A única área em que o país é potência é no meio ambiente, porque tem a maior floresta tropical do mundo, se o Temer e a bancada ruralista não destruírem.
Também na área de negociação agrícola comercial não se pode chegar a um acordo sem o Brasil. A última vez em que quase se chegou a um acordo, em 2008, foi um grande trabalho do (então chanceler) Celso Amorim, com apoio do Lula, um entendimento entre Brasil e UE para resolver um impasse. Mas aí os americanos e indianos torpedearam o acordo.
O Brasil nessas áreas é incontornável, mas com o Trump, como você pode ter um diálogo sobre o acordo de Paris, sobre a retomada da negociação multilateral de comércio agrícola, que é o que interessa ao Brasil?
Sergio Lima - 27.mai.2010/Folhapress
O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o hoje presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan
O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o hoje presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan
Um dos momentos em que a política externa brasileira esteve mais em evidência foi em 2010, quando o Brasil, ao lado da Turquia, propôs um acordo resolver a questão nuclear do Irã...
Eu nunca fui um crítico do esforço que o Lula e o Celso (Amorim) fizeram. Há derrotas que honram mais que certas vitórias, essa é uma delas. Foi uma iniciativa inédita para um país latino-americano tentar chegar a um acordo numa área em que normalmente é privativa das grandes potências.
Quando se falava em multipolarismo, acreditava-se que as grandes potências nucleares e militares tinham finalmente aceitado que havia espaço para países intermediários como o Brasil, a Turquia, o México, a Índia.
Que esses países poderiam tentar solucionar um caso como o do Irã. Equivaleria hoje em dia ao caso da Coreia do Norte, se nós tivéssemos alguma influência sobre o governo de lá. O próprio Obama chegou a encorajar o esforço brasileiro por cartas.
Mas a Hillary (então secretária de Estado Hillary Clinton) era contrária e tanto o Brasil como a Turquia sobrestimaram sua influência sobre os iranianos. Conseguiram que os iranianos mostrassem alguma flexibilidade, mas não o bastante para permitir acordo naquele momento. E os Brics decepcionaram.
Se é verdade que os Brics constituem um agrupamento importante, como é que se explica que a Rússia e a China tenham se aliado aos americanos votando sanções adicionais ao Irã e arrancando o tapete debaixo dos pés do Brasil e da Turquia.
Meu livro mostra bem que era prematura essa percepção de que havia espaço para o multipolarismo. Na hora em que houve a prova de fogo, viu-se que as grandes potências não delegavam para ninguém.
Foi uma tentativa meritória, audaciosa, que longe de desonrar, deu prestígio para o país, que foi aplaudido no mundo inteiro. Perceba que eu não sou sectário. Discordo da política externa dessa época para América Latina, a política paralela do PT, feita por inspiração da ideologia, não pelos interesses do Brasil.
O senhor critica a ideologização do Itamaraty durante o comando de Celso Amorim, e o fato de ele e o então secretário-geral Samuel Pinheiro Guimarães terem se filiado ao PT...
Sim, eu sou uma espécie em extinção, da época em que o diplomata era um servidor que deveria servir imparcialmente o Estado. Fui treinado dessa maneira, hoje o pessoal novo não concorda.
Será que agora não está em curso uma ideologização, só que do lado oposto, contra a ideologia do PT?
Eu espero que não, me dizem que não houve expurgos. O embaixador do Brasil em Paris, Paulo Cesar de Oliveira Campos, foi indicado pelo Lula e não mexeram nele.
Eles, ao contrário, perseguiram muita gente, embaixadores de grande valor como o Marcos Caramuru, maior expert que tínhamos na China, o Gelson Fonseca Jr, intelectual mais brilhante do Itamaraty, foi embaixador na ONU e terminou a carreira como cônsul-geral no Porto. Como se explica isso, a não ser como perseguição ideológica?
O Brasil deveria romper com a tradição diplomática brasileira e impor sanções econômicas contra a Venezuela?
Eu não sou favorável às sanções, porque elas normalmente atingem o povo mais sofredor. O que o Brasil deveria fazer, e não está, é ser modelar no acolhimento dos refugiados venezuelanos. Deveria ser um exemplo para o mundo, e está sendo o contrário, os venezuelanos estão aí abandonados, e tem gente propondo que não deem refúgio. A melhor forma de o Brasil atuar seria dar acolhimento a esses refugiados.
O Brasil pode ser uma potência com relevância internacional?
A política externa é indissociável daquilo que nós somos em política interna e em economia. Tivemos nosso momento mais alto de prestígio na época do Lula, 2009, quando o Brasil conquistou o grau de investimento, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
No entanto, houve uma percepção externa de que aquilo era irreversível. O próprio Lula semeou a destruição de suas conquistas, ao começar a arruinar as contas públicas, ao aceitar a corrupção —ele não a inventou, mas aceitou e levou a extremos. Ele e a Dilma, no fundo, foram autores de suas próprias ruínas e carregaram o Brasil junto.
Jim Young - 14.nov.2008/Reuters
Lula participa de brinde com o então presidente dos EUA George W. Bush e o líder chinês Hu Jintao
Lula participa de brinde com o então presidente dos EUA George W. Bush e o líder chinês Hu Jintao
Qual é a imagem do Brasil no exterior hoje?
Hoje a imagem do Brasil não é nem pessimista, nem otimista, corresponde à realidade: trata-se de um país com uma corrupção terrível, um presidente com uma segunda denúncia, ministros sendo investigados, uma crise que é a mais grave da história.
As pessoas dizem —por que a diplomacia brasileira não faz isso ou aquilo? Mas como, ninguém quer sair na foto com o Brasil. (Binyamin) Netanyahu veio para região e não se encontrou com o Temer, o vice-presidente americano, Mike Pence, também.
Por que todo mundo queria estar com o Lula? O Lula era um vitorioso. Além do sucesso econômico e político, ele tinha o êxito moral, o combate à miséria e à injustiça. Quem não queria ficar ao lado do Mandela? Hoje, deve ter muito pouca gente querendo sair na foto com o Temer. Ninguém pode imaginar que o Itamaraty vai alavancar o Brasil se o país não acabar com a corrupção, não voltar a crescer, não combater a miséria.
A certa altura do livro, o senhor diz que a "Dilma escondia debaixo da autossuficiência e da aspereza no trato com os diplomatas, insegurança nascida da falta de sensibilidade para relacionamento interpessoal."
Ela não tinha autoconfiança. Eu fiquei 10 anos na ONU. Em 2012, na reunião do G8 em Evian, o (então secretário-geral da ONU) Kofi Annan me levou como seu principal auxiliar. Nessa reunião, o (então presidente francês Jacques) Chirac tinha convidado o Lula, o líder chinês e o indiano, mas para uma reunião à parte.
Eu estava lá quando o Lula chegou, e pensei comigo: acho que o Lula vai ficar muito intimidado. Estavam presentes o Chirac, o (ex-presidente americano) George W. Bush, primeiro-ministro inglês Tony Blair, o (ex-chanceler alemão) Gerhard Schroder, (o ex-primeiro ministro italiano Silvio) Berlusconi e (o presidente russo Vladimir) Putin. Todos os grandes do mundo.
Houve uma sessão em que estavam falando sobre o problema da fome, e o Bush, que é evangélico, fez uma intervenção dizendo que tinha muito a ver com a Bíblia. O Chirac, com aquela arrogância francesa, disse: não tem nada a ver com religião ou a Bíblia.
Aí o Lula assumiu a defesa do Bush, disse —não senhor, tem tudo a ver, porque a Bíblia isso e aquilo. Ele estava com aquela cara de bravo, falando alto, e todo mundo afinou. Aí eu percebi: para o Lula, aquele pessoal eram os patrões da Fiesp, o líder metalúrgico não pode se intimidar com os patrões da Fiesp. A Dilma não é assim.
O senhor diz no livro que Dilma foi uma das piores presidentes em termos de vocação para política externa.
Eu não conheço nenhum outro que tenha deixado 40 embaixadores esperando, sem apresentar credenciais. São coisas elementares. Ela não tinha interesse, não valorizava, não se sentia bem. E tinha uma mentalidade de tecnocrata no sentido limitado, a ideia de que as únicas coisas que fazem diferença são as concretas.
Então tudo o que o Itamaraty fazia, ela mandava rasgar aqueles papéis. O Itamaraty, a não ser que você esteja negociando o fim de uma guerra ou uma fronteira, só lida com o longuíssimo prazo. Por que que o (ex-chanceler José) Serra saiu? Ele é engenheiro, gosta de fazer coisas.
No Itamaraty, você lida com conceitos. O Lula, que é muito inteligente, percebeu que a política externa era uma tremenda alavanca, inclusive interna, e usou muito. Ela não soube usar. Diplomacia e política são a mesma coisa, Lula era um grande diplomata.
Como o senhor avalia a política externa hoje?
Estamos em um momento de gradual recuperação, tanto da política e da economia, quanto a política externa. Só vamos ter algo mais determinado depois das eleições. Isto é, se a eleição não "der ruim". Se tivermos um Bolsonaro da vida, é hora de fechar a butique mesmo.
Há muita tensão entre o ditador norte-coreano Kim Jong Un e o presidente americano, Donald Trump. O mundo pode estar próximo de uma guerra nuclear?
Não. Nós estamos há 72 anos sem uma guerra nuclear, em parte por conta do poder destrutivo das armas nucleares, que atua como deterrence, mas em parte porque a ONU, com todos os defeitos, mostrou que era maleável o bastante para acomodar grandes mudanças.
O norte-coreano não é louco. Ele conduz uma política muito lógica e racional, pois viu o que aconteceu com o (ex-ditador iraquiano) Saddam Hussein e o (ex-presidente líbio) Muammar Gaddafi, que não tinham armas nucleares. E ele não vai acreditar nos americanos, no que ele tem absoluta razão.
Mas mesmo se considerarmos que o Kim Jong-un não é maluco, está desenvolvendo instrumento de dissuasão, do outro lado há um ator não necessariamente racional, o Donald Trump...
Trump é autor de "The Art of the Deal", diz que é preciso desestabilizar o adversário e nunca deixar o oponente saber o que a pessoa vai fazer. Os dois são negociadores se ameaçando mutuamente. Não vai acontecer nada.
O planeta não vai acabar com um apocalipse nuclear, mas pode acabar como diz o verso do TS Eliot "not with a bang, with a whimper" (não com um estrondo, com um suspiro). O maior perigo que nós enfrentamos hoje é o aquecimento global. Mas as pessoas não percebem, porque a explosão nuclear é um perigo imediato, enquanto o aquecimento leva 30, 40 anos. Mas já está chegando.
Sergio Lima - 1º.jul.1994/Folhapress
Rubens Ricupero posa ao lado do então presidente Itamar Franco com as novas notas do real, em 1994
Rubens Ricupero posa ao lado do então presidente Itamar Franco com as novas notas do real, em 1994
O senhor conta no livro que, ao ser convidado para o ministério, disse ao presidente Itamar Franco não ser a pessoa mais adequada...
Eu disse a ele: não sou economista profissional, conheço muito pouco do plano, apenas o que a imprensa publicou. Disse que ele deveria convidar alguém que conhecesse profundamente o plano, até sugeri dois nomes, Edmar Bacha e Pedro Malan.
Ele me respondeu: nós já examinamos todas as opções e o senhor é a única alternativa. Embora a frase fosse um pouco críptica, uma frase em mineirês, eu entendi. Eu trabalhei a vida toda com mineiros, com Afonso Arinos, San Tiago Dantas, Tancredo Neves. O Tancredo dizia que eu era o mais mineiro dos paulistas. Percebi que o Itamar queria dizer que ele queria alguém fora da equipe, que devesse o cargo a ele, e não ao FHC.
O Itamar costumava dizer muito que eu era o sacerdote do real, em parte porque eu cumpria a função de pregar, na televisão, em parte era para chatear o Fernando Henrique, que ficou mais glorificado pelo real. Não deram muito crédito para o Itamar e ele deveria ter recebido, sem ele, o real não teria existido. Eu disse que era funcionário público, e aceitava.