Renan Quinalha e Roger Raupp Rios undefined undefined 26 A patologização da homossexualidade é um expediente que se alimenta da homofobia e que a reproduz. É uma tentativa de legitimar preconceitos e discriminação, de um modo pseudocientífico. Há mais de quarenta anos, uma pesquisa sobre sexualidade foi exibida no programa Fantástico, da Rede Globo. Era um domingo em junho de 1978, momento em que o Brasil ainda era governado pelo general Ernesto Geisel sob uma ditadura civil-militar fortemente preocupada com a “moral e os bons costumes”. Na ocasião, perguntou-se “o que o brasileiro pensa[va] sobre o homossexualismo, tanto do homem como da mulher?”. Aqui cabe um parêntese: o sufixo “ismo”, do ponto de vista etimológico, é utilizado geralmente para formar substantivos abstratos dos mais diversos tipos. Acoplado à palavra “homossexual”, ele assume o sentido de uma doença e, por essa razão, passou-se hoje a usar a homossexualidade (em contraposição à heterossexualidade) e não mais “homossexualismo”. Pois bem. Na época, as respostas foram as seguintes: 25% consideravam uma doença, 19% culpa da falta de orientação dos pais, 18% um produto do desajuste do mundo de hoje e 11% uma falta de vergonha. Além disso, mais da metade dos entrevistados considerava o homossexualismo muito chocante, especialmente o masculino. João Antônio Mascarenhas, advogado e um dos ativistas pioneiros do movimento homossexual brasileiro, atribuiu à censura este resultado nada favorável aos homossexuais, uma vez que ela impedia uma discussão mais franca e serena sobre assuntos tidos como tabus. Ele afirmou, em texto publicado no jornal Lampião da Esquina, que “a culpa cab[ia] à rigorosíssima censura que pesa[va] sobre a rádio e a televisão”. Poucos anos depois, em 30 de abril de 1985, o Jornal do Brasil publicou declarações do chefe da Censura Federal, Coriolano Fagundes, em que este anunciava a liberalização da censura, mas não para todos. Ele declarou que tudo que fosse “obsceno” deveria ser combatido com rigor e, segundo sua visão, “obsceno é tudo aquilo que sai da normalidade. Por exemplo, o ato sexual entre dois homens ou duas mulheres não é uma coisa normal, embora não vá nisso uma crítica ao homossexualismo”. Com essa breve declaração, o censor dava um sinal claro de que os homossexuais ficariam de fora da agenda política da transição. No entanto, esse tipo de colocação já não passava mais em branco diante do surgimento de outros grupos organizados de homossexuais. Assim, o grupo Triângulo Rosa, representado por João Antônio Mascarenhas, enviou uma carta ao diretor da censura, qualificando-o de “preconceituoso” e destacando a orientação despatologizante então emanada pelo Conselho Federal de Medicina, que havia retirado a homossexualidade da lista de doenças justamente naquele mesmo ano de 1985. Pouco tempo depois, o jornal Folha de S.Paulo publicou declaração de Coriolano Fagundes sustentando a censura da música “Rubens”, do grupo paulistano “Premeditando o Breque”, em que ele, mais uma vez, afirmava que “não tenho dúvida que o homossexualismo é uma forma de perversão sexual. Não acho que o homossexualismo seja correto. É preciso ter uma postura de educação em relação ao sexo e não de permissividade”. Dessa vez, o Grupo Gay da Bahia enviou uma carta, na qual o ativista Luiz Mott informava que a ciência, especialmente a medicina, dentro e fora do Brasil, já estava despatologizando a homossexualidade e que propagar preconceitos dessa maneira era apenas uma reprodução do “machismo” e da “ignorância pré-científica”. A tônica das demandas do movimento LGBT daquela época passou a ser, assim, a supressão de leis discriminatórias, a inscrição da proteção legal no ordenamento jurídico, o abandono de um discurso médico de estigmatização pelas entidades da área da saúde, acolhimento para vítimas de violência e investigação dos responsáveis, além de uma disputa aberta na imprensa contra veiculação de notícias sensacionalistas e preconceituosas. Por conta dessas lutas, desde então, é verdade que muita coisa mudou no país. Nessa linha, desde 2011, pessoas do mesmo sexo podem formalizar uma união estável ou mesmo um casamento civil. Há políticas públicas específicas voltadas para a população LGBT em diferentes níveis de governo. Conselhos profissionais da área da medicina e da psicologia despatologizaram as homossexualidades. E, a despeito de não haver ainda a criminalização da violência contra LGBTs, há diversos entes federativos com legislação que pune a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Além disso tudo, no plano cultural, a mesma Rede Globo que apresentou aquela antiga pesquisa vem exibindo novelas e programas que tratam com maior naturalidade beijos entre pessoas do mesmo sexo e as pessoas trans, provocando grande impacto no debate público. No entanto, ainda hoje parece sobreviver e até crescer, em alguns setores da sociedade e do Estado, um discurso que classifica a homossexualidade como um misto de pecado, falta de vergonha e doença. Com efeito, a patologização da homossexualidade é um expediente que se alimenta da homofobia e que a reproduz. Ela expressa na linguagem da “medicina das perversões sexuais” a mudança do paradigma da homossexualidade de pecado para doença. Ela se revelou como tentativa de legitimar preconceitos e discriminação, de um modo pseudocientífico. Nessa trajetória, a homofobia desafia a psicologia e o direito. Nutrida por certas crenças religiosas ou pelo senso comum preconceituoso, ela deteriora as liberdades de profissão, de religião e de ciência, além de obscurecer o dever estatal de coibir a discriminação, com sérios danos à saúde e à democracia. Logo de início, é preciso salientar que a psicologia é um campo do conhecimento científico. Ela se desenvolve por argumentos, técnicas e categorias cuja verificação e discussão se orientam por um procedimento racional. Nela, a dúvida é o que impele a busca incessante da resposta mais correta acessível ao conhecimento humano. Daí que a ciência não compactua com o senso comum preconceituoso, que é inimigo da razão e berço de tanta discriminação. Não por acaso, quando a ciência livra-se dos preconceitos, atua como poderoso instrumento para o avanço da democracia, ao passo que quando se deixou instrumentalizar, acumpliciou-se ao totalitarismo, aos campos de concentração, às experiências com seres humanos, inclusive homossexuais. Após a Segunda Guerra Mundial, a bioética consolida-se, colocando princípios para a ciência e para a prática profissional de saúde, dentre os quais a beneficência e a justiça, radicados nos direitos humanos e na dignidade humana. Ao contraporem-se frontalmente a discriminações, esses princípios balizam o debate sobre a despatologização da homossexualidade e sobre o banimento de técnicas de “cura gay” ou de “reorientação da homossexualidade”. Sem contrapor-se como faz diante do senso comum preconceituoso, a ciência aparta-se da religião. A experiência religiosa tem na fé, e não na razão, seu dado fundamental. Na sua fé, o crente não tem espaço para a dúvida metódica. Daí porque testemunhará sua crença em face de certas questões, ou no mínimo descartará potenciais resultados incompatíveis com ela. Nesse quadro, em regimes democráticos e pluralistas, a psicologia como ciência e sua prática profissional estão enlaçados à laicidade e à observância da ciência livre de preconceitos. Ambas funcionam para o convívio das liberdades num mundo plural. Sem serem antirreligiosas, afirmam esferas distintas. Para tanto, marcam fronteiras cuja ultrapassagem revela-se deletéria para a ciência, para a prática profissional e para a religião, pois confundiriam o cientista, o profissional e o crente. Essas relações são essenciais para entender as previsões constitucionais da liberdade de profissão e de sua necessária regulamentação ética, em especial quando sua prática pode provocar graves danos à saúde. Todo atendimento que contrariar conhecimentos consolidados, e mais grave ainda, causar malefícios, prometendo cura para o que não é doença ou seu equivalente ( “reorientação” para o que não é desorientado), não só será causa de sofrimento e morte, como prática ilegal da profissão, sujeito a responsabilidade penal, civil e administrativa. Assim como a vedação de experimento científico violador da dignidade humana é um mandamento bioético, a proibição de “reorientação homossexual” como prática psicológica, longe de ser violação da liberdade de profissão, é um imperativo constitucional. Como mundo afora já estampam tratados internacionais, constituições e legislação, como já decidiram supremas cortes (inclusive o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade), a homofobia é uma discriminação odiosa e ilegítima, venha ela de convicções religiosas ou do senso comum preconceituoso. Renan Quinalha é professor de direito da Unifesp e doutor pela USP. Roger Raupp Rios é desembargador federal do TRF-4, doutor em direito pela UFRGS e professor de direitos humanos do UniRitter.
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