segunda-feira, 14 de agosto de 2017

O que acontece com os europeus, que não toleram as hordas de refugiados? - CONTARDO CALLIGARIS

O que acontece com os europeus, que não toleram as hordas de refugiados? - CONTARDO CALLIGARIS

FOLHA DE SP - 10/08

Passei o mês de julho na Europa, visitando lugares do meu passado.

Cheguei no aeroporto de Veneza e de lá fui direto para Pádua. Fiquei no hotel Donatello, cujos quartos da frente têm uma vista impagável para a basílica de Santo Antônio.

Deixei o carro e fui caminhando pela via del Santo. Não passei de cem metros, e um homem de 50 anos me importunou (eu estava a fim de ficar na minha, só pensando): "Io sono di Aleppo" (eu sou de Aleppo), ele disse em italiano, numa entonação quase perfeita.

Antes que ele formulasse o previsível pedido de ajuda, passaram pela minha cabeça ideias e visões, que vou tentar enumerar, embora não sejam todas lisonjeiras para mim. Talvez o exercício me ajude a compreender o que acontece hoje com parentes, amigos e conhecidos europeus, que são generosos por princípio, mas não aguentam mais as "hordas" dos refugiados.

Conheço mal Aleppo, mas não esqueci o charme do hotel Baron, famoso por ser o lugar onde Agatha Christie escreveu "Crime no Expresso do Oriente". Para desmascarar um eventual impostor, disse que conhecia Aleppo e comecei a descrever a esquina da Baron com a Zaki al-Arsuzi, como era 50 anos atrás.

O sujeito ou era um impostor mesmo e fugiu ou então era um aleppino que me achou bizarro demais para continuar a conversa.

Antes que meus bons sentimentos tomassem conta de mim, tive tempo para pensar: se for um aleppino, por que esse cara presume que a gente lhe deva assistência e ajuda?

Lembrei-me de conversas com meus sobrinhos milaneses: o desastre da Síria, por exemplo, será que é consequência hodierna da colonização? Então os problemas da Itália do Norte são consequência da ocupação austríaca? Ou da espanhola, que foi antes?

De qualquer forma, por que ele foi embora de Aleppo? É um refugiado econômico ou político? Ou seja, está tentando se dar bem ou lutou contra o desastre de seu país? E subentende-se que o refugiado econômico seria um aproveitador sem moral e sem caráter.

Engraçado, pensei mais tarde, nas grandes migrações do fim do século 19 e começo do 20, os italianos, alemães, escandinavos, irlandeses etc. que emigravam para os EUA, o Canadá ou a Austrália eram imigrantes econômicos, que iam "fazer América". Ninguém queria barrar os "imigrantes econômicos"; ao contrário: ao enriquecerem-se a si mesmos, eles enriqueceriam ao país que os acolhia.

A distinção entre econômicos e políticos parece também supor que os imigrantes econômicos não tenham nenhuma simpatia cultural pelo país ocidental que os acolhe e só estejam atrás de uma vida mais confortável. Ouvido em Turim: "Eles não querem renunciar à cultura deles, só querem uma grana".

A distância cultural é um preconceito dos europeus? Ou é um preconceito dos imigrantes, que desprezariam a cultura à qual pedem assistência?

Nas praças de Bassano, Milão, Turim e Munique, em italiano e em alemão, fui interpelado por refugiados que, para introduzir seu pedido, me chamaram quase sempre de "irmão" ou de "chefe".

"Irmão", aprendido, imagino, nas igrejas que assistem refugiados, me irritava pela chantagem: você acredita em fraternidade, e não vai me ajudar? "Chefe" me irritava porque supunha que eu seria seduzido por eles reconhecerem minha "superioridade" hierárquica.

Participei de intermináveis conversas com conhecidos incomodados pelo valor dos subsídios alocados aos refugiados (junto com celular para chamadas internacionais, comida etc).

Mas, para mim, se não para todos, a dificuldade maior talvez seja a aparição (nova na Europa) de um exército de pedintes e a consequente impossibilidade de ser deixado em paz.

Feliz de estar sozinho, sentei num restaurante de via Lagrange, em Turim. O terceiro refugiado do dia se aproximou, e eu antecipei a sua fala de um jeito que me envergonha um pouco: "Per favore, non mi rompere", por favor, não me encha É impossível dizer qual será o destino e o efeito desse cansaço.

Neste mês, Matteo Renzi, o antigo primeiro-ministro italiano, escreveu que temos, sim, o dever moral de ajudar os refugiados, mas na casa deles.

Nota. Vários leitores estranharam uma frase quase final da coluna da semana passada: "Numa cultura e numa época tão oposta ao prazer quanto a nossa". Como assim? Não somos monstros de hedonismo, todos em busca de prazeres imediatos?

Faz tempo que penso e constato o contrário. Uma coluna do ano passado: folha.com/no1813289.

São Paulo precisa redescobrir a relação com seus rios, Jornal da USP




Pesquisa analisa o processo histórico que tornou os rios da capital paulista símbolos de descaso e degradação
Por  - Editorias: Ciências Humanas

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Na escala de urgência das agendas políticas, rios estão listados como uma prioridade menor – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

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“Hoje a gente só percebe o rio quando ele transborda ou cheira mal. Ou seja, só de uma forma negativa. Apesar de a água refletir a luz do sol e render uma paisagem bonita, só percebemos o rio quando ele paralisa automóveis.” A melancólica constatação é do arquiteto José Paulo Neves Gouvêa, pesquisador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
Segundo dados do Instituto Trata Brasil, apenas 47% dos dejetos recebem tratamento atualmente na região Sudeste do País – os que não recebem vão parar em rios e represas, corroborando o diagnóstico de Gouvêa. Não por acaso, nomes como Tietê e Pinheiros se tornaram símbolos do descaso com o qual o governo trata seus rios.
Com o objetivo de compreender como os rios da capital paulista chegaram a esse estado de degradação, o arquiteto realizou uma pesquisa que culminou em tese de doutorado defendida na FAU. “Eu queria entender qual foi o processo histórico que levou os rios a ocuparem uma posição tão desprivilegiada na cidade como hoje”, revela. Seu trabalho analisa como se deu a apropriação privada dos rios de São Paulo e sua participação na produção do espaço da cidade, aprofundando aspectos relativos ao desenvolvimento social, político e econômico, desde sua fundação no século 16 até o início do século 20.
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Para pesquisador, é necessário criar estratégias mais radicais de reaproximação da população com os rios, superando ações de “embelezamento”. Na imagem, o Rio Tiête – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

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Partindo das obras de canalização dos rios Tamanduateí, Tietê e Pinheiros, a pesquisa traçou um recuo histórico até o momento em que os rios e córregos de São Paulo se constituíam como um bem comum e sua principal característica era o uso de suas águas e terras.

Mapeando a história

Filho de geógrafos, Gouvêa trabalhou sua pesquisa intercalando resgate histórico, estudo e elaboração de mapas. “No meu mestrado eu estudei cartografia histórica em São Paulo para entender a relação da cartografia com o desenvolvimento da cidade, e a pesquisa coincidiu com o doutorado”, afirma ele. Os mapas foram então utilizados para que o arquiteto pudesse formar uma ideia ampla sobre como os rios influenciaram a cidade e como a cidade influencia o estado atual dos rios.
Margeando a pesquisa pelos rumos do desenvolvimento paulistano, o arquiteto pontuou os principais rios da cidade, inicialmente, como fontes de subsistência. “Por vários séculos a cidade usava esse bem comum, as pessoas subsistiam a partir dele. Paulatinamente, começou a nascer uma relação com a água e com o rio que já intermediava trabalho”, conta ele, ao lembrar de funções que não mais existem como a de aguadeiro, um grupo de profissionais constituído geralmente de imigrantes portugueses que pegavam a água do rio e a vendiam fora. “Era um verdadeiro serviço de distribuição de água em tonéis”, diz.
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De 1850 até o começo do século 20, com o desenvolvimento da propriedade privada como a conhecemos hoje e, em especial, da apropriação privada da natureza, a realidade urbana interferiu na relação dos paulistanos com os rios e eles deixaram de ser uma fonte de subsistência. “Primeiro, porque foram poluídos e, segundo, porque todas as margens já estavam ocupadas por lotes que foram fundamentais para o crescimento da cidade”, descreve o autor do estudo ao destacar que esse crescimento foi baseado no que chamou de uma “expropriação de um bem comum”. “E isso é uma condição do crescimento de quase todas as cidades”, reitera.
Com a meta de empregar imigrantes e ex-escravos, o governo e a iniciativa privada instauraram uma lógica moderna de mão de obra que não mais podia permitir que a população encarasse os espaços dos rios como bens comuns. “É o princípio da propriedade privada que acabou engendrando o espaço”, sumariza ele.
Somando movimentos migratórios à chegada de novos serviços urbanos, providos por companhias estrangeiras, o final do século 19 se configurou em uma transformação radical para a cidade de São Paulo. Um processo tão extremo que, de acordo com o arquiteto, é distinto tanto de cidades europeias quando de capitais sul-americanas.
Nas primeiras décadas do século 20, São Paulo enfrentou uma série de enchentes que atingiu seu ápice em 1929. Para sanar a subida dos rios, empresas como a Light & Power, de capital canadense e responsável pela formação da Represa de Guarapiranga, em 1907, obteve a concessão do governo federal para retificar, canalizar e inverter o curso do Rio Pinheiros. Paralelamente, a prefeitura municipal se responsabilizou por obras no Rio Tietê e São Paulo sofreu o que Gouvêa classificou como “um ponto de inflexão”.
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“Os rios foram retificados, as várzeas foram saneadas. A cidade pôde ocupar espaços e eles sumiram. Rodovias foram instaladas e isso praticamente consolidou o tipo de relação que a cidade tem com os rios até hoje”, explica o arquiteto.
Para ele, é fundamental compreender como, em uma esfera tanto simbólica quanto factual, terra e água foram separados.
“Terra virou lote e a água virou algo para se obter energia e servir de destino ao esgoto.”
Na visão do pesquisador, em 30 anos, São Paulo migrou de uma cidade pequena para uma cidade grande e isso ainda reverbera na identidade da capital. “Até hoje, nós não temos nenhum espaço dela que possamos considerar um bem comum”, reflete.

Um novo entendimento sobre rios

Não são poucos os projetos e pesquisas que almejam a despoluição dos rios paulistanos, entretanto, Gouvêa não acredita que exista uma solução direta para um problema que está encalacrado nas políticas que formaram São Paulo.
“O rio hoje é a manifestação da forma como a gente vive”, reflete ele. “O agravante é que a gente não vê o rio e o fato de termos rodovias instaladas ao lado dos rios impossibilita qualquer tipo de identificação e ação”, lamenta.
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Na opinião do urbanista, o rio foi separado entre terra e água, sendo preciso articular um pensamento que torne o rio de novo uma unidade. Na imagem, o Rio Pinheiros – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

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Com canais administrados pelo governo do Estado e as margens pela prefeitura municipal, os rios da capital paulista enfrentam uma série de entraves políticos que dificultam sua gestão conjunta. “O rio foi separado entre terra e água, e nós teríamos que articular um pensamento que tornasse o rio de novo uma unidade”, argumenta o especialista ao apontar que, na escala de urgência das agendas políticas, os rios estão listados como uma prioridade menor.
Para Gouvêa, a melhor alternativa seria criar estratégias mais radicais de reaproximação da população com os rios, num esforço que superasse ações de embelezamento e que, verdadeiramente, educasse gerações futuras.
A tese A presença e a ausência dos rios de São Paulo: acumulação primitiva e valorização da água foi orientada pela professora Angela Maria Rocha, da FAU, e pode ser acessada neste link.
Mais informações: e-mail paulogou@uol.com.br, com José Paulo Neves Gouvêa

sábado, 12 de agosto de 2017

Pedro Abramovay, diretor para a América Latina da Open Society Foundations, fala sobre o campo social em transformação, Mobiliza



Pedro Abramovay, diretor da Open Society Foundations

A Mobiliza conversou com Pedro Abramovay, advogado, professor de Direito e diretor para a América Latina da Open Society Foundations, sobre quem são e quais os maiores desafios para as organizações sociais dos dias de hoje. Entre diversas pautas importantes no campo social atual, Pedro chama a atenção para a governança das organizações e para as dificuldades para captar recursos no país. Confira:
Mobiliza – Qual a razão social da organização social do século XXI? São associações, cooperativas, cole­tivos, laboratórios, todos estes? Ela tem uma razão social em particular?
Pedro Abramovay – Não existe um modelo único. Por um bom tempo vivemos um modelo muito tradicional de organização social. Acho que nos últimos 10 anos começamos a questionar a própria ideia de organização muito hierarquizada. O sentido de intermediador também começou a ser questionado – assim como nos mercados de música, táxi, etc. A internet possibilitou relações entre pares. Isso sem dúvida teve um grande impacto no movi­mento social como um todo. O discurso dos movimentos de hoje está muito na linha de não ter hierarquia, de horizontalidade. Tudo isso, claro, reflete na maneira das organizações da sociedade civil funcionarem.
Mobiliza – E a tecnologia tem acelerado e dado po­tência a estas transformações?
Pedro Abramovay – Exato. Ao mesmo tempo em que a internet traz uma força nova, essa ideia de conexão, de rede, percebo que essa potência é muito mais no sentido de colocar coisas abaixo, do que de constru­ção. Junho de 2013 foi o retrato disso. Muita coisa foi colocada abaixo. Mas qual construção tivemos a partir daí? Que agenda concreta nasceu? O debate atual é en­tender como essas organizações e movimentos menos hierarquizados são capazes de propor, de avançar e de construir agendas.
Mobiliza – E o que essas organizações e movimentos menos hierarquizados têm em comum?
Pedro Abramovay – Tem um ponto importante aí que é a questão geracional. Os mais jovens têm mais dificulda­de de se estruturarem em organizações de perfil muito tradicional. E, naturalmente, os temas que sensibilizam essa geração acabam entrando na agenda destas novas organizações. Mas acho que o debate mesmo é como a gente concilia essas coisas. Temos muitas organizações mais tradicionais que são extremamente eficientes.
Mobiliza – Comparando, então, esses modelos mais tradicionais com os contemporâneos, o que pode­mos falar sobre as estratégias de comunicação? Como essas organizações falam com seus públicos?
Pedro Abramovay – Tem um debate muito relevante hoje em dia sobre a nossa relação com as redes sociais. Vejo ainda muitas organizações que atuam na chave ‘vamos fazer nosso trabalho e depois vemos como a gente comunica’. Isso é uma coisa que não funciona. A comunicação tem que ser um elemento tão importante quanto a própria política, a forma de atuação da organi­zação. Ela deve estar na concepção do projeto. Comu­nicação deve ser um tema completamente integrado à lógica inicial, à estratégia da organização. Outro tema ligado à comunicação que acho bastante atual é o uso de dados [de usuários de redes sociais, por exemplo] em campanhas e uso de inteligência artificial, como robôs, em determinadas ações. Tivemos recentemente o caso da campanha do [Donald] Trump. É um dilema ético que precisa ser discutido. E esse debate precisa ser ocupado pelas agendas progressistas.
Mobiliza – E como você enxerga o cenário brasileiro quando o assunto é mobilização de recursos e sus­tentabilidade institucional de organizações sociais?
Pedro Abramovay – Não dá pra pensar captação de recursos se você não tiver uma estrutura para gerir tudo isso. Também é preciso pensar o planejamento no longo prazo, e não tudo para o mês que vem. Ou seja, uma organização sustentável precisa de um bom modelo de governança. E esse é um ponto importante: algumas pessoas da nova geração são muito inovadoras, mas têm preguiça de pensar a governança. Do ponto de vista do financiamento, é preciso salientar que a cultura de filantropia no Brasil é muito diferente dos modelos norte-americano e europeu. As fundações são, sobretu­do, de caráter corporativo, ligadas a grandes empresas. Em alguns casos isso significa uma aversão a correr riscos, e um tipo de investimento voltado para projetos próprios e não para o repasse de recursos para outras organizações que estão testando ideias diferentes. O que eu quero dizer é que não é um ambiente fácil, no caso do Brasil, para pensar a sustentabilidade institucio­nal. Ao mesmo tempo ainda não temos uma cultura de doações individuais estabelecida no país. E tudo isso em um cenário de desconfiança para com as instituições no Brasil. Logo, fica muito mais difícil para as organizações serem criativas e inovadoras.
Mobiliza – A Open Society Foundations financiou um estudo chamado “Organizações Sólidas em um Mundo Líquido”, da pesquisadora Lucia Nader. Que reflexões essa experiência provocou?
Pedro Abramovay – O que eu destacaria é essa ideia de que as organizações eram pensadas como representantes de alguma coisa. Quando nossa capacidade de articula­ção era menor, quando não existia internet, nós precisá­vamos de organizações que funcionassem como a voz de um grupo, de uma causa. Era uma ideia de representação. Hoje vemos um movimento que vem da ação em rede, com novas agendas, maneiras de interação, de inovar.
Mobiliza – De novo: a tecnologia ajudou a transfor­mar o campo social.
Pedro Abramovay – Sim. O papel das organizações mu­dou. Não dá pra falar por cima do ruído das redes. Hoje, elas precisam aprender a se apropriar dos debates para propor agendas interessantes.
(*) A entrevista é parte do primeiro fascículo da Coleção Mobiliza, que teve como tema: “Organizações Sociais Conectadas – tendências e desafios para o século XXI”. Clique aqui para baixar a publicação completa.