Juliana Sayuri - O Estado de S. Paulo
Enquanto São Paulo festeja seus 460 anos, o poeta Antonio Risério escreve em Salvador. Desta vez, não um verso ou uma música, mas uma crítica atilada sobre os retratos deste Brasil. "As cidades brasileiras estão vivendo dias especialmente difíceis, de uma ponta a outra do País. Estão maltratadas, sujas, agressivas", descreve o antropólogo e autor de A Cidade no Brasil e A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros (ambos publicados pela Editora 34).
Atravessamos a maior crise urbana da história brasileira, define o escritor, enquanto "nossos governantes, numa verdadeira marcha da insensatez, abrem mão da reforma urbana". Que fazer? "Para enfrentar a crise atual, precisaríamos de um verdadeiro Ministério das Cidades, de prefeitos que não se comportassem como agentes da especulação imobiliária, de uma vontade coletiva de sair do buraco."
Nesta entrevista ao Aliás, feita na quinta-feira, Antonio Risério discute as configurações urbanas brasileiras - especialmente dos pontos de vista histórico e antropológico - encravadas entre Copa e Olimpíada, MTST e MPL, passando por um rolezinho no shopping e um jogo no Paris Saint-Germain. Sua Salvador? "Uma mistura de cantora de axé, prostituta decadente e capoeirista bêbado, um vilarejo com elefantíase." Rio vitrine olímpica? "Tende a ser o paraíso do autoengano. O País não está nadando em dinheiro. A prioridade deveria ser a luta contra a favelização." São Paulo aniversariante? "Diz muito de nossa força e de nossa miséria. Mas a cidade é bem maior que seus governantes. Em termos banais, mas sinceros, acredito que essa força vá vencer a miséria física e reinstaurar a urbanidade perdida."
De volta às ruas, manifestantes do MTST protestaram por mais moradia em São Paulo. Diante da cidade atual, fragmentada em diversos problemas (violência, trânsito, moradia, mobilidade, cracolândia, etc.), o caos de São Paulo é irreversível?
É reversível, desde que não sejamos irresponsáveis. Atravessamos a maior crise urbana da história brasileira. E nossos governantes, numa verdadeira marcha da insensatez, abrem mão da reforma urbana. Ninguém ouve mais falar da grande reforma urbana nacional que a presidente Dilma Rousseff se comprometeu a fazer. As promessas não se traduziram em práticas. O programa Minha Casa, Minha Vida constrói hoje as favelas do futuro. Em São Paulo, Fernando Haddad lançou o projeto Arco do Futuro, mas logo o jogou no lixo. O Brasil é um país que, por flexibilidade ou por hipocrisia, chega muito fácil a certos consensos, mas não realiza as coisas. É por isso que podemos falar de consensos subversivos - consensos que, se levados à prática, transformariam espetacularmente a vida brasileira. Por exemplo: todo mundo concorda que todos precisamos de um lugar onde morar. Mas por que até hoje isso não aconteceu? Milhões de brasileiros, depois de 20 anos de governos social-democratas, continuam amontoados em alojamentos deprimentes. Em nenhum outro lugar a desigualdade social se expressa de forma tão clara e brutal quanto na moradia. No entanto, a carência habitacional seria superada se os donos do poder e do dinheiro conjuntamente o quisessem. Para enfrentar a crise atual, precisaríamos de um governo que levasse o assunto a sério, de um verdadeiro Ministério das Cidades, de prefeitos que não se comportassem como agentes da especulação imobiliária, de uma verdadeira vontade coletiva de sair do buraco. De uma verdadeira reforma urbana.
Estima-se que cerca de 400 mil pessoas serão afetadas pela realização da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016, no Rio. Ainda nessa semana, Estocolmo desistiu da disputa para sediar os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, argumentando que a capital sueca tem outras prioridades - e a conta para organizar os jogos seria alta demais. O argumento sueco convence?
Quando promoveu a Olimpíada de Barcelona, a Espanha andava rica. A China também tinha como gastar e gastou, ainda que ferindo a paisagem urbana tradicional de Pequim. Então, o argumento convence. Mas o Brasil tende a ser o paraíso do autoengano. O país não está nadando em dinheiro. Depois de Antonio Palocci, a política econômica do governo meteu os pés pelas mãos. Estamos combinando crescimento medíocre e inflação controlada artificialmente. A prioridade deveria ser a luta contra a favelização do país, por casas decentes e serviços públicos de qualidade, contra a violência e o narcotráfico, contra a podridão do sistema político e pelo direito de todos à cidade. Como foi dito nas ruas durante as manifestações de junho. Mas os governantes querem manipular as coisas. Dizem que o Brasil avançou tanto nos últimos dez anos que agora vai às ruas dizer que quer mais. Até as manifestações de junho passam a ser vistas como subproduto da excelência dos governos do PT. Mas o Brasil não foi às ruas dizer que "quer mais". O Brasil quer diferente. Quer um governo cujo compromisso maior não seja com o mercado e o consumo, mas com a melhoria das condições de vida das pessoas. Além disso, o que Fernando Henrique e o PT não querem reconhecer é que eles atiraram fora a oportunidade histórica de renovar a política no Brasil. As pessoas foram para as ruas dizer que é necessário revitalizar a democracia brasileira, hoje degradada. A sociedade quer ser ouvida, manifesta anseios de democracia direta, etc., e exige hospitais "padrão Fifa". Ok. A prioridade do Brasil tem de ser investir na população brasileira.
Estão previstos para esse sábado 36 protestos contra a Copa - marcados em todos os Estados e no DF com o slogan #nãovaitercopa. Curitiba, antes considerada exemplo de urbanismo e mobilidade, periga ficar de fora do mundial devido a atrasos nas obras. Queremos a Copa? Por quê?
Queremos a Copa porque, como a Inglaterra e a Argentina, pensamos que isso aqui é o país do futebol. Entendo que o povo brasileiro queira ver partidas espetaculares, diferentes do futebolzinho de nossos campeonatos. Confesso que acompanho mais o campeonato espanhol do que o brasileiro. Prefiro ver nossos craques no Paris Saint-Germain, no Chelsea, no Milan, etc., a perder meu tempo com os pernas de pau do Botafogo ou do Palmeiras. Dá vontade de ir ao estádio da Fonte Nova apreciar uma partida entre Portugal e Alemanha. De outra parte, é significativo que manifestações anti-Copa aconteçam no Brasil, país pentacampeão do mundo. Todos já viram a faixa "da Copa eu abro mão - queremos dinheiro para saúde, segurança e educação". Em vez de estabelecer um compromisso prévio com a iniciativa privada para viabilizar a Copa, nossos políticos e governantes preferiram o lance de marketing, faturando com o fato de trazer o grande evento para o Brasil. Mas a população vê a saúde e a educação públicas caindo aos pedaços. E paciência tem limite. Mesmo dentro dos estádios. A presidente foi vaiada na Copa das Confederações. E a cena vai se repetir na Copa do Mundo, se ela pisar no Maracanã. Ou seja: queremos a Copa, mas queremos também escolas e hospitais. O governo não pode gastar fortunas na Copa e migalhas com as pessoas que são e fazem o País.
Questão especialmente urbana, os ‘rolezinhos’ dominaram as páginas da imprensa nas últimas semanas. Em certo trecho do livro A Cidade no Brasil, o sr. discute os shoppings, citando Susan Sontag e Bauman. Diante dessas novas polêmicas, o que um shopping representa numa cidade?
Shoppings são espaços de consumo seguro e socialmente segregador. Prédios com uma arquitetura hostil à rua, aos acasos da cidade, ao ar livre, diversamente do que se pode ver num terreiro de candomblé. Mas não é só. Os shoppings não apenas contribuíram para destronar os antigos centros das cidades, como se dispuseram a substituí-los, convertendo-se em neocentros urbanos. Uma "cidade" dentro da cidade, triunfo radical e caricatural do "higienismo". O shopping é ainda um espaço interpessoal e intersemiótico. Os jovens sempre foram a face mais visível de seus frequentadores, embora seu público consumidor seja tradicional e predominantemente feminino, de diversas gradações etárias. E é claro que o shopping é, também, uma espécie de clube, com sua forma de sociabilidade. Anos atrás, Witold Rybczynski, um urbanista polonês-escocês, escrevia que o shopping era um lugar "com um nível razoável de ordem, com a garantia de que o consumidor não será importunado por atos bizarros de comportamento, nem abordado ou intimidado por adolescentes mal-educados, bêbados barulhentos e mendigos agressivos". É essa estufa de flores sociais variavelmente privilegiadas que se vê ameaçada pelo rolezinho. A ralé resolveu usar o clube para fazer sua festa. Para participar da grande festa do consumo, para a qual é seduzida diariamente pela publicidade, por telenovelas e outras vitrines do mundo rico. Por isso mesmo, é bom sublinhar que o rolezinho não é filho da pobreza, mas produto da desigualdade. E é uma bobagem a ideia de que tudo se resolverá com a construção de "rolezódromos". Longe disso.
Outra questão essencial para a cidade: é possível imaginar a despoluição do Rio Tietê?
Quase toda cidade que conheço, na vastidão territorial brasileira, nasceu na beira da água. Com a expansão urbana, esses rios, riachos e lagoas foram poluídos, transformados em esgotos, aterrados. Manaus é um exemplo terrível: avenidas e ruas construídas sobre o aterro dos igarapés. São Paulo, por sua vez, nasceu debruçada sobre rios e tratou de tentar matá-los. Mas ainda é possível recuperar muitas coisas. Hoje, uma dimensão importante e sedutora do discurso ambiental, em São Paulo, diz respeito à necessidade de recuperação dos córregos e rios da cidade. São muitos os estudos sobre esses fluxos fluviais que foram condenados à imundície ou a se mover nos subterrâneos da cidade. Arquitetos e urbanistas, como Alexandre Delijaicov com seu anel hidroviário, têm projetos para recuperar e reativar as coisas, planejando fazer novamente de São Paulo um lugar de portos, circulação de barcos e até de canoas. Vemos também essa preocupação em trabalhos recentes de alunos da Escola da Cidade. Mas também no discurso de artistas, como a cineasta Tata Amaral. A mensagem disso tudo é que uma nova São Paulo pode nascer a partir da transfiguração contemporânea de sua própria origem, isto é, recuperando e reincorporando seus rios ao movimento dinâmico da vida, reestruturando suas relações com as águas.
O MP foi à Justiça contra a Prefeitura de São Paulo para obrigá-la a resolver o problema das enchentes e indenizar vítimas de alagamentos. Mas, todo verão, cidades brasileiras são castigadas por chuvas e alagamentos. Se é assim uma ‘tragédia anunciada’, que medidas devem ser tomadas para evitá-la? E por que não as tomamos?
Nossos governantes sabem o que precisa ser feito - e não é de hoje. São Paulo não está condenada a sofrer todo ano com enchentes. Foi a urbanização das várzeas que transformou as cheias naturais em enchentes crônicas. Com o tempo, e como os governos não se empenhavam com seus recursos e energia para resolver o problema, a questão foi se agravando: os rios de São Paulo, antes objeto de lazer e contemplação, viraram fonte de problemas. Tecnicamente, é possível resolver isso. Basta perguntar a qualquer bom técnico da gestão de Kassab ou de Haddad que ele explica direitinho o que tem de ser feito. O problema é que ninguém faz. Mas talvez isso mude, em consequência da expansão da consciência socioecológica na sociedade - e porque tudo indica que aquela conversa de que saneamento não dá voto vai ser cada vez mais coisa do passado. O que acho inaceitável é ouvir um Sérgio Cabral dizer, a cada enchente que devasta casas e vidas no Rio, que a situação é essa porque nunca os governos tentaram modificar as coisas. Isso é cara de pau. Quem está há dez anos no poder não tem o direito de usar essa desculpa esfarrapada.
A questão do transporte público ganhou força desde junho, com o MPL. A discussão sobre o transporte público é página virada?
A luta pelo transporte público bom e gratuito é fundamental. Insisto na gratuidade porque, conforme o IBGE, 37,3% dos brasileiros andam a pé por falta de dinheiro. É mais gente a pé do que de transporte coletivo (29,1%) ou de carro particular (30,4%). E acho ridículo quando dizem que a moçada que luta contra o aumento da tarifa não precisa pagar ônibus. Se é verdade, a garotada de classe média está recuperando uma noção de solidariedade que parecia ter perdido. É maravilhoso que jovens privilegiados lutem pelo direito de todos se moverem gratuitamente nos espaços urbanos. Agora, a gente sabe que não houve nenhum avanço realmente significativo na matéria, em termos nacionais. Ainda há uma grande batalha. De Juscelino Kubitschek até hoje, a opção dos governos foi pelo carro individual. Kubitschek queria industrializar rapidamente o País e apertou o acelerador. Mas, mesmo recentemente, Lula e Dilma, com sua ênfase consumista, privilegiaram o comércio de automóveis, dando uma contribuição imensa para encalacrar de vez nossas cidades. Além de não atender a maioria da população, o carro individual sai caro demais para o governo. André Lara Resende chamou a atenção para isso: a indústria automobilística é a que mais gera gasto público. Carro novo na rua obriga o governo a usar recursos para fazer ruas, pontes, viadutos, etc. É um gasto absurdo, que poderia se concentrar no transporte público e melhorar a vida das pessoas e das cidades.
No livro, o sr. diz que, apesar dos diversos problemas das cidades, é intrigante que um tema grave quase nunca seja destacado: a segregação socioespacial ou socioterritorial. Que seria essa segregação?
A segregação socioespacial acontece quando as pessoas deixam de viver misturadas e o território é repartido em função da estratificação econômica, com os mais ricos se concentrando em determinada área citadina e os mais pobres obrigados a procurar outros cantos para morar. O problema não é exclusivamente brasileiro, mas nosso processo tem sua especificidade. Na América espanhola, por exemplo, as cidades já nasceram segregadas. Eram cidades geometrizadas, com as classes e etnias distribuídas de forma compartimentada ao longo da grelha. No Brasil, não. Senhores e escravos viviam próximos uns dos outros. A segregação só se impôs com os processos de modernização urbana. O Rio, por exemplo, era uma cidade apertada, onde todos eram vizinhos. A separação começou com a expansão rica tomando a direção do subúrbio, como vemos no romance de Machado de Assis, com seus casarões em lugares então distantes como Botafogo ou Flamengo. Com Brás Cubas caçando de espingarda na Tijuca. E essa segregação se acentuou de Mauá a Pereira Passos, com a modernização do centro. Os pobres foram quase todos enxotados das áreas centrais e subiram os morros ou foram para espaços afastados. Não foi diferente o que aconteceu em São Paulo e Salvador. Mais recentemente, essa separação espacial segundo linhas de classe e cor se tornou menos geográfica do que pontual. A população não é mais necessariamente segmentada em bairros diferentes. O que segrega é o caráter de enclave que as residências dos mais ricos assumem, com cercas elétricas e sistemas de vigilância. Na antiguidade clássica, as cidades se cercavam de muros a fim de se proteger de inimigos externos. Hoje, os muros são internos, separando concidadãos. E esses muros precisam ser derrubados, tornar-se desimportantes, para que as nossas cidades, com todos seus inevitáveis conflitos, sejam socialmente saudáveis.
Agora no 460° aniversário da cidade, o que São Paulo diz sobre nós? O que Salvador diz sobre o sr.? E, por fim, o que as cidades brasileiras dizem sobre o Brasil?
As cidades brasileiras estão vivendo hoje dias especialmente difíceis, de uma ponta a outra do País. Estão maltratadas, sujas, agressivas. Salvador parece uma mistura de cantora de axé, prostituta decadente e capoeirista bêbado, um vilarejo com elefantíase, com uma classe rica incomparavelmente grosseira e governantes que não têm ideia do que seja uma cidade. Às vezes, chego a pensar que a população atual de Salvador não está à altura da cidade que herdou, porque, se estivesse, não avacalharia tanto o lugar. Mas não penso que seja o fim do mundo. São Paulo também atravessa tempos muito conturbados, mas acho que está melhor do que Salvador. Prefiro mil vezes andar pelas ruas paulistanas do que pelas baianas. Para usar um clichê, São Paulo diz muito de nossa força e de nossa miséria. A cidade é bem maior do que seus governantes. E - ainda em termos banais, mas sinceros - acredito que, mais cedo ou mais tarde, essa força (humana, social, cultural) vá vencer a miséria física e reinstaurar a urbanidade perdida.