domingo, 6 de outubro de 2013

Constituição cidadã

Cidadã é o adjetivo que, com simplicidade e realismo, define a Constituição promulgada há 25 anos, em 5 de outubro de 1988. Comandada por Ulysses Guimarães, o político que ganhou a alcunha de “tetrapresidente”, a Assembleia Nacional Constituinte, formada por 559 membros (72 senadores e 487 deputados), foi o marco da transição democrática.
Nesse quarto de século, as mudanças de governo ocorreram todas sob normalidade institucional, mesmo quando um presidente foi afastado. 
O Brasil de 2013 foi às ruas usando as redes sociais como instrumento de mobilização por mais cidadania, e a liberdade de expressão se consolidou como regra do regime democrático. Esse direito, garantido em cláusula pétrea da Carta - não pode ser alterada nem por emenda -, acabou por se transformar em um dos principais valores para uma convivência harmoniosa no País.
Se a Constituição é cidadã, a Nação ainda é claudicante no quesito cidadania. Poucas iniciativas populares, como a Ficha Limpa, se transformaram em lei. Ao mesmo tempo, a Carta está pronta para enfrentar os desafios digitais que surgiram nos últimos 25 anos. 
Promulgada com 250 artigos no texto-base (e mais 97 disposições transitórias), a Constituição teve, ao longo de duas décadas e meia, 48% de seus artigos alterados por emendas. Os três últimos presidentes - FHC, Lula e Dilma - editaram e editam, em média, mais de três medidas provisórias por mês. O polêmico debate das MPs durante a Constituinte assegurou, no sistema presidencialista, excesso de poder ao Executivo e acaba por gerar desarmonia entre os Poderes. 
Fruto de uma construção coletiva, a Carta de 1988, ao idealizar o Estado de bem-estar social, serviu de justificativa para a elevação dos impostos. Municípios e Estados receberam mais recursos do bolo tributário, mas a descentralização dos serviços públicos não tira a discussão sobre o pacto federativo da pauta. 
O adjetivo dado por Ulysses não dá conta, porém, de toda a polêmica sobre o excesso de detalhes do texto. Ainda assim, esses 25 anos não apagaram o mantra do “Sr. Diretas”, morto em 1992: “Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.”
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Declínio do império antiamericano


29 de setembro de 2013 | 2h 18

DAWISSON BELÉM LOPES, DAWISSON BELÉM LOPES É PROFESSOR DE , POLÍTICA INTERNACIONAL, COMPARADA , NA UFMG, AUTOR DE POLÍTICA EXTERNA , E DEMOCRACIA NO BRASIL: ENSAIO DE , INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA (UNESP) - O Estado de S.Paulo
Como não acontece usualmente, o discurso feito pela presidente Dilma Rousseff na terça-feira, por ocasião da abertura da 68ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, chamou atenção. Não tanto pelo conteúdo, já sabido de antemão, e sim pela forma, contundente e frontal, de interpelação ao governo dos Estados Unidos - acusado de praticar espionagem eletrônica e, portanto, de violar os direitos humanos dos indivíduos e as leis internacionais que regem o relacionamento dos Estados.
Foi o suficiente, também, para desencavar velhos adjetivos que, com facilidade, têm sido pespegados na política externa do atual governo brasileiro, liderado pelo Partido dos Trabalhadores. Seria, segundo seus críticos mais contumazes, uma condução "ideológica", "terceiro-mundista" e "bolivariana" - logo, "antiamericanista" - dos assuntos internacionais do País. A versão, de tantas vezes repetida, ganhou o status de premissa, de ponto de partida para as análises mais respeitáveis.
Mas essa não foi a primeira vez que o Brasil pôs o dedo em riste e divergiu, abertamente, de seu coirmão do norte. E, dificilmente, terá sido a última. A rigor, desde o Barão do Rio Branco, considerado pela literatura o artífice da nossa "opção americanista" (em detrimento da histórica proximidade que mantínhamos com o continente europeu no século 19), colecionam-se momentos em que os interesses dos dois países - Brasil e Estados Unidos - não coincidiram.
Já no longínquo ano de 1907 o jurista Rui Barbosa, designado plenipotenciário brasileiro para uma grande conferência multilateral na Holanda, fez-se notar por sua postura altiva e, sobretudo, combativa das propostas então defendidas pela delegação estadunidense - daí se originando o apelido "Águia de Haia". Durante os primeiros anos da 2ª Guerra Mundial, entre 1939 e 1942, a política externa brasileira, sob a presidência de Getúlio Vargas, acomodou flertes explícitos com a Alemanha nazista - o que poderia nos levar ao confronto armado com os EUA. A declaração de guerra ao Eixo, contudo, sepultou dúvidas sobre a nossa lealdade hemisférica. Significava a volta ao velho ninho do americanismo.
Eurico Gaspar Dutra foi, provavelmente, ao longo de toda a história republicana da política exterior, o presidente que mais resolutamente alinhou o Brasil às posições estadunidenses. Mais até do que o marechal Castelo Branco (cuja diplomacia americanista foi chamada, didaticamente, de "a correção de rumos"). O mandato de Dutra (1946-1951) correspondeu ao que o historiador Gerson Moura batizou de "o alinhamento sem recompensa", uma vez que, embora o Brasil tivesse apoiado os Estados Unidos na guerra (a partir de 1942) e seguisse associado àquele país, pouco recebeu de concreto em contrapartida: não veio o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, tampouco um Plano Marshall para a América Latina.
Dessa maneira, era natural que todos os sucessores de Dutra se afastassem de seu padrão de americanismo, percebido como extremado e objetivamente malsucedido. Na exposição dos motivos para o aumento das divergências entre Brasil e EUA, a partir da segunda metade do século 20, ganhou força a narrativa de que o crescimento econômico e demográfico brasileiro, associado à urbanização e aos investimentos militares, teria tornado o País mais confiante para, gradualmente, distanciar-se do gigante do norte.
Todavia, não foi o mero acúmulo de recursos de poder que levou ao distanciamento brasileiro das posições estadunidenses. Deu-se, concomitantemente, o incremento de nossa capacidade de formular a própria norma de conduta para a política internacional. Ou, em chave diplomática, o País "autonomizou-se", progressivamente, em relação ao resto do mundo.
Senão, vejamos: em trabalho acadêmico recente, o cientista político Octavio Amorim Neto identificou, a partir da observação das votações na ONU, que as políticas externas de dois reputados americanistas da Nova República - FHC e Collor de Mello - eram consistentemente menos alinhadas às dos governos estadunidenses do que aquelas conduzidas por outros dois presidentes, abertamente comprometidos com ideais de esquerda na política externa e, alegadamente, "antiamericanistas" - Jânio Quadros e João Goulart.
A conclusão que se segue é imediata. O alinhamento diplomático aos Estados Unidos há que ser compreendido não como essência ou ideologia perene da diplomacia nacional, mas como uma escolha pragmática dos formuladores da inserção internacional brasileira, passível de reavaliação contínua, conforme o cálculo estratégico dos homens de Estado de um determinado momento histórico. É por isso que, à medida que passamos a caminhar com as próprias pernas, a tendência é convergir menos, em questões substantivas, com este ou aquele país em específico.
Assim, o processo de autoafirmação do Brasil no cenário internacional, transformado em orientação de política externa, guarda pouca conexão direta com o antiamericanismo. O discurso de Dilma, pronunciado há pouco e já tão repercutido, é antes a indicação de uma mudança qualitativa profunda em nossas relações bilaterais e multilaterais. Em suma: o fenômeno que está em discussão é mais estrutural do que conjuntural.

sábado, 5 de outubro de 2013

A dor dos outros, artigo Cacá Diegues, no Globo


  • Devemos prestar atenção à dor dos outros, para tentarmos atenuar a nossa
ARTIGO - CACÁ DIEGUES
Publicado:
Semana passada, andei uns dias por Marechal Deodoro, cidade histórica de Alagoas, antiga capital do estado, acompanhando a IV Flimar (Festa Literária de Marechal Deodoro), organizada pelo prefeito Cristiano Matheus e por seu secretário de cultura Carlito Lima, meu amigo de infância. Dias de reencontro com tanta coisa.
Durante a Flimar, redescobri, graças a Ricardo Ramos Filho, seu neto, a extraordinária carta de Graciliano Ramos a Cândido Portinari, publicada em 1946. Um verdadeiro manifesto que, em nossa juventude de esquerda, líamos como amargo chiste do velho Graça, ao qual não tínhamos que dar tanta atenção. E no entanto devíamos ter levado mais a sério o que nosso escritor dizia ao pintor seu amigo, para o bem de sua geração e das gerações de artistas que os sucederam.
“Caríssimo Portinari”, escreve Graciliano, “(...) receio que esta resposta já não o ache fixando na tela a nossa pobre gente da roça. Não há trabalho mais digno, penso eu. Dizem que somos pessimistas e exibimos deformações; contudo as deformações e miséria existem fora da arte e são cultivadas pelos que nos censuram. (...) se elas desaparecessem, poderíamos continuar a trabalhar? Desejamos realmente que elas desapareçam ou seremos também uns exploradores, tão perversos como os outros, quando expomos desgraças? Dos quadros que você mostrou (...), o que mais me comoveu foi aquela mãe com a criança morta. Saí de sua casa com um pensamento horrível: numa sociedade sem classes e sem miséria seria possível fazer-se aquilo? Numa vida tranquila e feliz que espécie de arte surgiria? Chego a pensar que faríamos cromos, anjinhos cor de rosa, e isto me horroriza. Felizmente a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a suprimirá. E seríamos ingratos se desejássemos a supressão dela (...).”
Gostaria muito de pensar, e faço sempre um grande esforço para isso, como Bachelard, filósofo francês: “O mundo é belo antes de ser verdadeiro, o mundo é admirado antes de ser verificado.” O que significa que descobrir e se encantar com o que está à nossa volta deve ter primazia sobre ouvir o que se diz sobre o que está à nossa volta. Esse talvez seja o principal conflito da inteligência humana, a disputa eterna entre cultura e conhecimento. Os artistas sofrem com isso.
De que dor e de que mundo devemos falar quando nos deparamos com um desastre como esse de Lampedusa? Mais de 300 imigrantes ilegais, fugindo pelo Mediterrâneo de países africanos em crise, tentam chegar ao sul da Itália e morrem no naufrágio previsível de um barco sem condições de fazer os 350km da viagem, controlado por gerentes da miséria humana que cobravam mais de 1.500 dólares por cada um dos 500 passageiros, número impossível de caber em seus poucos 20 metros de extensão.
Eu sei que isso não é novo, nem raro. Eu sei que já aconteceu com albaneses que tentavam chegar ao norte da Itália, com mexicanos que atravessavam a fronteira para os Estados Unidos, com cubanos que remavam em direção à Flórida. Eu sei que isso não deixará de acontecer enquanto houver fome, miséria, opressão e guerra por aí afora, enquanto houver seres humanos desejando com desespero viver outra vida. Mas não quero me acostumar a isso, não vou me acostumar a isso.
A dor a que Graciliano se refere e não deseja suprimir faz parte da natureza humana, está sempre dentro de nós e no mundo ao nosso redor, temos que contar com ela. Nascemos para parir e parimos com dor. Os animais, as plantas, a terra toda, tudo à nossa volta vive fugindo dela, viver é tentar escapar da dor. Mas a dor de Lampedusa, dos que morreram sem conhecer a felicidade, dos que sobreviveram inutilmente e dos que, como nós, assistem perplexos a esse espetáculo brutal, essa é uma vergonha e pode muito bem ser suprimida. Como disse Francisco, acertando mais uma vez, ela é o resultado da “globalização da indiferença”.
Devemos prestar atenção à dor dos outros, para tentarmos atenuar a nossa. Vejo o desastre de Lampedusa e penso, por exemplo, nessa irracional reação corporativista aos médicos estrangeiros que querem trabalhar no Brasil. Nossas corporações são mais importantes do que o bem-estar e a saúde dos outros, num país miserável como esse? Como penso também em nossos professores em greve. Destruir equipamentos públicos, como estação de metrô, transportes coletivos, pontos de ônibus, placas de sinalização, cabines de telefone, equipamentos que servem ao resto da população, sobretudo aos mais pobres que não têm nada a ver com isso, faz parte de suas reivindicações corporativas?
Nesse e em outros exemplos mais e menos modestos, que se dane o resto, aquele que não sou eu, o outro?


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/a-dor-dos-outros-10259153#ixzz2gu1K9BKF 
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