terça-feira, 7 de agosto de 2012

Sem lixo debaixo do tapete, do Página 22


Foto do Blog do Mílton Yung via Flickr
Foto do Blog do Mílton Yung via Flickr
A partir de hoje, o governo federal exige que os municípios apresentem um plano de gestão sobre o tratamento de lixo e resíduos industriais para que recebam recursos da União. O prazo foi estipulado há dois anos, mas mesmo assim, mais de 90% dos municípios não produziram o documento ou o têm incompleto.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, por enquanto, das 5.565 prefeituras do Brasil apenas 488 podem receber o dinheiro do governo para gestar o lixo que produzem. Outro levantamento, da Confederação Nacional de Municípios, estima que 49% das cidades não iniciaram o plano e 42% não o finalizaram.
Ontem, uma matéria do jornal  Estado de S. Paulo mostrou que São Paulo têm um plano, porém incompleto. Apesar de mostrar um diagnóstico da situação atual do setor e prometer ampliar os programas de coleta, o documento da prefeitura não explica como colocar as medidas em prática, quanto vai custar e de onde virão os recursos.
O orçamento anual do Brasil para tratamento dos resíduos é de  R$ 21 bilhões. Para Ricardo Valente, diretor da Keyassociados e especialista em resíduos sólidos, esse valor precisa ser revertido para uma gestão eficiente. Os municípios tiveram tempo suficiente para fazer os planos, mas faltou mais atenção ao assunto por parte das prefeituras e buscar soluções mais audaciosas, diz.
Leia a seguir a entrevista que Valente concedeu por e-mail a Página22 sobre a gestão do lixo no Brasil e a entrega dos planos de gestão.
Qual a importância dos planos de metas que os municípios e estados devem entregar para o governo federal?
Fazer esses planos – e cumpri-los! – é extremamente importante porque com isso elaborado, saberemos onde estão os problemas em relação à gestão do lixo, como resolvê-los, quanto vai custar e quanto tempo precisamos. E também porque agora a população e o Ministério Público poderão acompanhar a evolução dos projetos. Pode haver atraso ou dificuldades na implantação, mas chegaremos, pelo menos, a uma solução mínima.
O Brasil gasta R$ 21 bilhões por ano com coleta e destinação dos resíduos sólidos. E esse cenário deve ser revertido com a gestão eficiente do lixo. Pesquisas indicam que cerca de 58% do lixo do País não é tratado adequadamente. Os lixões são espaços com inúmeros riscos do ponto de vista social, ambiental, econômico e de saúde. Há a possibilidade eminente de contaminação do solo, lençóis freáticos, rios e córregos com o chorume. Sem falar na presença de catadores, geralmente sem proteção, manuseando o lixo em busca de produtos recicláveis e se expondo ao risco de infecções e outros sérios problemas de saúde.

Levantamentos mostraram que a maioria das cidades não entregaram os planos mesmo depois de dois anos de prazo. São Paulo é uma dessas cidades. Por que isso aconteceu?
Entendemos que os municípios tiveram tempo adequado para elaborar os planos com todo o detalhamento necessário. É lamentável que muito poucos tenham conseguido apresentá-los nas condições previstas. As particularidades da capital paulista tornam a situação muito mais complexa. Estamos falando em 10 mil toneladas de lixo por dia. Justamente pelo tamanho do problema era necessário que a prefeitura tivesse dedicado mais atenção para o assunto. Faltaram soluções mais audaciosas. Esse é um início. Os planos devem agora ser revisados e melhorados. No caso de São Paulo, é preciso investir mais e buscar soluções mais próximas ao tamanho da cidade e suas complexidades para as próximas revisões.
O que os municípios poderiam fazer de forma alinhada para melhorar a gestão do lixo?
É possível formar consórcios entre as cidades para gestão de atividades específicas e execução de objetivos de interesse comum.  Um exemplo bem-sucedido é o Consórcio Público de Saneamento Básico da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos (Pró-Sinos), que abarca 26 cidades na região do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. Nesta quinta, eles entregam o Plano Regional e os Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos.
O desenvolvimento do projeto envolveu implementação de estratégias de gerenciamento integrado dos resíduos nos municípios da bacia integrantes do consórcio. As estratégias foram apresentadas em audiências públicas, com envolvimento da comunidade local, agentes técnicos e interlocutores das municipalidades consorciadas. As questões políticas e as diferenças de estilo de administração de cada município não foram afetadas e não interferiram na condução do projeto.
Com o prazo encerrado e as defasagens de entrega em planos, qual o próximo passo para que as  ações em relação aos resíduos sólidos  não recebam pouco investimento ou atenção dos governos?
Embora os números ainda não sejam os mais satisfatórios, já que a maioria dos municípios não conseguiram entregar a tempo seus planos de gestão de resíduos sólidos,  o fato de esse tema ter sido colocado em discussão já pode ser considerado um grande avanço. Neste momento, além de uma cobrança firme do governo federal e Ministério Público, é importante que eleitores cobrem de seus candidatos uma postura em relação ao problema, para que os municípios efetivamente busquem solução para viabilizar o tratamento adequado dos resíduos sólidos. Não dá mais para continuar escondendo o lixo embaixo do tapete.
Como o senhor vê o engajamento ou o conhecimento da população em relação ao descarte de resíduos sólidos e à reciclagem?
A população em geral mostra-se muito bem intencionada, mas na maioria dos casos, tem dificuldade para agir por falta de apoio para gestão adequada do lixo. São raros os sistemas de coleta seletiva, por exemplo. Mesmo assim, há famílias que separam lixo em suas casas, cooperativas de catadores, coleta organizada por prefeituras e até concessão de benefícios para cidadãos que entregarem voluntariamente as embalagens para reciclagem em locais determinados. A população deve participar deste processo e cobrar mais dos políticos.
Como melhorar esse engajamento se o próprio plano pode deixar a desejar?
A participação e a cobrança da população e do Ministério Público podem fazer a diferença. É preciso correr contra o atraso: se realmente queremos ser um país sério, nos próximos cinco anos temos que avançar de dez a quinze anos na questão do lixo. A Política Nacional de Resíduos Sólidos é um ótimo guia para tanto. Basta colocá-la em prática.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Política é o fim


José Roberto de Toledo - O Estado de S.Paulo
As eleições municipais demoram mais e mais para fisgar o eleitor. A dois meses de irem às urnas, só 27% dos paulistanos têm o nome de um candidato a prefeito de São Paulo na ponta da língua, segundo o Ibope. Os últimos três meses de campanha não somaram nem 10 pontos a esse mínimo grau de interesse. Ficou tudo para os 45 dias da propaganda de TV. Salvem os santos marqueteiros. Fim à mobilização política e partidária.
O repórter Daniel Bramatti publicou uma descoberta assombrosa no Estado de ontem: os candidatos a prefeito de capital com mais de 100 inserções semanais de 30 segundos na TV em 2008 tiveram 69 vezes mais sucesso - se elegeram de cara ou chegaram ao segundo turno - do que um adversário com menos de 50 inserções por semana. Repare: 69 vezes. Vivam os deuses marqueteiros. Morte à mobilização política.
A eleição não se resume a uma simples correlação estatística, mas o palanque eletrônico é uma variável cada vez mais importante. A despolitização se espalha a cada pleito, e nada é capaz de promover tanta desigualdade entre candidatos quanto a propaganda eleitoral compulsória no rádio e na TV. Nem a militância partidária, nem a internet (por ora), muito menos recursos paleozoicos como comícios e corpo a corpo com o eleitor.
É um processo que, além de não ter volta, tende a se agravar. Que fazer? Criar ainda mais regras, juízos e arbítrios? Ressuscitar a Lei Falcão e seus enfadonhos currículos lidos pela voz monocórdia de um narrador oficial? Vade retro Censurabrás.
Os EUA esticaram o tempo de campanha e liberaram quase tudo, até tiro ao candidato. O ciclo eleitoral da gringolândia dura quase dois anos. Desde as prévias, os candidatos debatem dezenas de vezes, por meses. E vão caindo pelo caminho, porque a maioria dos bonecos de ventríloquo não resiste ao excesso de uso. Só perduram os mais resistentes e caros.
O sistema norte-americano - com suas máquinas mecânicas de votar e regras diferentes em cada um dos 50 Estados - está longe da perfeição. Criou a indústria eleitoral mais perdulária do mundo. Um presidenciável precisa de dólares aos bilhões para ter chances. É o preço superfaturado de a eleição e o debate político fazerem parte do noticiário cotidiano, dos programas de variedades, da vida.
Lá como cá, sempre haverá eleitor confundindo Russomanno com Muçulmano. A diferença é que, no Brasil, ele é obrigado a votar.
A despolitização favorece celebridades eleitorais. Quem tem mais presença na memória do eleitor tende a dominar as pesquisas de intenção de voto antes de a propaganda começar na TV. É o caso do apresentador Celso Russomanno (PRB) em São Paulo. Ele está superando todos os limites previstos, porém. Parou de apresentar seu programa em junho, mas segue em alta. Empatou com José Serra (PSDB) na cidade e lidera em redutos petistas.
Russomanno tem sido uma tampa para o candidato do PT, Fernando Haddad, dificultando o seu crescimento e, nas últimas semanas, passou a tirar eleitores de Serra também. O eleitorado (não o eleitor) de Russomanno, hoje, é ambidestro: 42% vive em áreas petistas e 49% em regiões antipetistas da cidade. Não deve permanecer assim por muito tempo. Na melhor das hipóteses para o PRB, ele deve ficar com uma dessas metades e perder a outra. Na pior, perde ambas.
O problema de Russomanno é estatístico. Serra e Haddad terão quatro vezes mais exposição na TV do que ele a partir de 21 de agosto. Em 2008, só 1 de 93 candidatos a prefeito de capitais com menos de 50 inserções semanais passou do primeiro turno: Camilo Capiberibe, filho de governador e deputada, que, mesmo assim, perdeu o turno final em Macapá. Para virar exceção à regra, Russomanno tem que bater os adversários, o retrospecto e a politização da eleição. No fim, é a política.

Musa da pilhagem


RENATO LESSA - O Estado de S.Paulo
O finado Dr. Marx, em um de seus mais inspirados momentos, descreveu e analisou, na célebre oitava seção do primeiro livro de seu O Capital, o que denominou como o processo de "acumulação primitiva de capital". Páginas luminosas; não faria mal as ler quinzenalmente. Com efeito, qualquer que seja o juízo que se faça, hoje, a respeito das benesses ou desgraças do capitalismo, o bom senso recomenda reconhecer que a coisa começou pessimamente. Estivessem vigentes, naquela altura, os institutos jurídicos que hoje vigoram nos países por assim dizer democráticos - e capitalistas -, o capitalismo não teria nascido do modo como nasceu. Ou, simplesmente, não teria nascido, posto que barrado algures, em algum STF.
Andressa Mendonça é acusada de tentar chantagear juiz - Ed Ferreira/AE
Ed Ferreira/AE
Andressa Mendonça é acusada de tentar chantagear juiz
O cenário da acumulação primitiva, tal como hoje é fartamente sabido, exibiu intensa associação entre maximização de ganhos, uso da violência e destituição de uma série de vítimas sociais. O atributo "primitivo" não se deve tanto ao fato óbvio de que isso se deu nos primórdios do capitalismo. O termo pode revelar, ainda, uma forte dissociação entre apetite maximizador e aquilo que, graças a Norbert Elias, podemos designar como "processo civilizador". Tal dissociação esteve presente tanto nos primórdios do capitalismo europeu quanto na contemporânea pujança do capitalismo à brasileira. Somos, por cá e em grande medida, contemporâneos dessa dissociação; os operadores da modernidade são, vez por outra, agentes do primitivismo.
O emblemático personagem que ora reside em presídio vizinho a Brasília, e que dá nome a uma CPI, é um operador exemplar desse apetite infrene dos pioneiros do capital. O drama que protagoniza tem como enredo central o trânsito de dinheiro obtido em circuitos ilegais para o âmbito da, digamos, economia legal. Quer por sua materialização em bens e serviços - por exemplo, mansões e serviços de decoração - ou por sua transformação em "investimento produtivo", configura-se o circuito de uma acumulação que, mais do que "primitiva", aproxima-se do que Max Weber, em dia iluminado, denominou "capitalismo de pilhagem".
Tal processo de acumulação, no entanto, não se limita à lavagem de dinheiro ou ao trânsito de numerário ilegal acumulado para o âmbito da economia legal. Parte considerável, ao que tudo indica, tem como origem recursos públicos, o que não deve surpreender. Se voltarmos ao Dr. Marx, devemos recordar que a toda infraestrutura corresponde uma superestrutura política e jurídica. Em contextos nos quais o estado de direito está implantado de modo mais consistente, tal relação não faz lá muito sentido, mas nesta parte do mundo temo que ainda faça. Faz, ao menos, para os circuitos ilegais. A economia ilegal não prescinde de seus operadores não econômicos, incrustados nos assim chamados Poderes da República.
Vejam só, no Rio de Janeiro, para as eleições deste ano, cerca de 600 policiais e bombeiros inscreveram-se como candidatos a vereador. É forte, para dizer o mínimo, a presença de policiais e bombeiros entre milicianos que infestam as periferias cariocas, e a maioria desses candidatos tem vínculos com áreas tomadas por milícias. O que é isso, senão a tentativa de captura de espaços legais, por parte dos circuitos de pilhagem? O significado sociológico do mandado senatorial de um dos campeões da direita brasileira, posto a serviço do personagem que habita o presídio da Papuda, não tem sentido distinto.
A glamourosa companheira desse notável operador do capitalismo de pilhagem brasileiro deu significativa contribuição ao quadro aqui composto. A tentativa malograda de intimidação de um juiz, com base em ameaça de chantagem, revela um modo preciso de operação, fundado na hipótese - felizmente errada - de que o que conta na vida, para valer, são as ofertas que não podem ser recusadas. Essa lógica tem, necessariamente, implicações penais. Ou seja, seus operadores e agentes são, em termos técnicos rigorosos, "criminosos". Mas não nos iludamos, há mais coisas entre o céu e a terra do que o código penal: há sociologia na coisa, sociologia pesada.
O bom barão de Montesquieu, nos idos do século 18, falava da atividade de ganhar dinheiro como "paixão calma", proporcionada pelo "doce comércio". Com ela, as interações humanas progressivamente deixariam de ser belicosas. Uma doce complementaridade somada à percepção de que precisamos uns dos outros deveria, segundo o barão, orientar nossos interesses privados. Nada de semelhante parece estar presente no campo das relações entre, digamos, a atividade de ganhar dinheiro - ou de acumular - e o âmbito da legalidade no Brasil. As relações são, no mínimo, incertas.
A musa da pilhagem, na tentativa de chantagem ao juiz, é o avesso da "paixão calma". Ao contrário, ela pretende ensinar ao País que ganhar dinheiro exige agressividade e pouca - se alguma - atenção a formalidades. É curioso como, entre nós, "empresários agressivos" passam por personagens virtuosos. A meu juízo, trata-se da única ocupação à qual o atributo "agressivo" soa como adjetivo elogioso. Assim não dá.
RENATO LESSA - É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, PESQUISADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA, PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE.