domingo, 15 de julho de 2012

Simples e velha honestidade


JOSÉ DE SOUZA MARTINS* Aliás -15jul 2012
Quando a honestidade surpreende e dela se desconfia é porque alguma coisa essencial está mudando na sociedade. É o que incita à compreensão sociológica dessa reação, suas ocultações e seus significados no recente caso da devolução, ao dono de um restaurante, dos R$ 20 mil que lhe foram roubados. O dinheiro fora achado por um casal de moradores de rua de São Paulo, o maranhense Rejaniel e a paranaense Sandra.
Já há um debate em relação ao suposto sentido do gesto dos dois moradores dos baixos de um viaduto do Tatuapé. Uns veem nele vontade de aparecer. Outros consideram trouxa o casal, pois "o achado não é roubado". Não poucos no gesto reconhecem a simples e velha honestidade, um valor de referência. Aliás, é por meio dela que a sociedade se reproduz e se preserva, regula e organiza a vida de todos, dos bem-intencionados e dos mal-intencionados, dos íntegros e também daqueles para os quais a honestidade já não é senão uma anomalia.
Vontade de aparecer é pouco provável, pois essa vontade é circunscrita a determinadas categorias sociais e depende de socialização específica. É própria da classe média, cuja cultura valoriza o parecer muito mais do que o propriamente ser. Quem procura parecer o que não é e mais do que é quase sempre se denuncia nos gestos impróprios e na inabilidade para manipular apropriadamente o código gestual que corresponde à aparência que pretende ostentar. Pessoas pobres sabem disso, mesmo quando imitam aquilo que não são. Os ricos também o sabem porque com facilidade identificam quem não pertence à categoria social dos que podem ostentar. As pessoas se traem nos desajustes da conduta.
Parecer traz identidade visual e o prestígio superficial da aparência, o que é característico da sociedade de consumo. Os dois moradores de rua, que são catadores de lixo reciclável, estão muito longe das fantasias consumistas da maioria e suas possibilidades de ostentação. São culturalmente incapazes de manipular os significados da aparência porque não têm como dela beneficiar-se.
Quanto a ser trouxas porque deixaram de apoderar-se do que não era seu, e do que claramente careciam, é algo improvável. Alguém que se apodere de uma quantia de dinheiro muito superior à sua capacidade de utilizá-la, mesmo dinheiro achado na rua ou no lixo, dificilmente poderá utilizar esse dinheiro na escala de suas carências acumuladas sem ser denunciado. A teia de regras e cautelas do mundo do consumo é vigilante e repressiva para que um pobre não se meta a ser o que não é. Não é improvável que o casal tenha levado isso em conta.
Mesmo que fosse a um restaurante para uma lauta refeição e matar a fome de uma vida, correria o risco de não ser servido e de despertar suspeitas. E, se pretensioso, mas prudente, pedisse uma garrafa de modesto vinho da terra, maior seria a suspeita. Pobre que é pobre toma água ou suco, dizem os vigilantes da conduta alheia. O que bem indica o que são as suspeitas que regulam as relações sociais. Todos somos devidamente observados todo o tempo por todos. O político que foi visto com amigos num restaurante com dois Romanée Conti, um vinho de US$ 6 mil a garrafa, já despertou suspeitas. Imagine-se o morador de rua servindo-se de modestíssimo vinho local. Para entrar no restaurante, teria antes que comprar os trajes apropriados à transitória escala de ascensão social que R$ 20 mil permitem. Em condições assim, dinheiro achado é inútil.
O gesto do casal repercutiu no Brasil e foi, no geral, bem-vindo como indício de que nem tudo está perdido, no mesmo momento em que na própria estrutura de poder a anomalia da corrupção compromete o sentido democrático da vida política. O gesto, aliás, não é novo nem raro. São frequentes casos semelhantes de dinheiro alheio achado e devolvido ao dono desconhecido de quem o acha, geralmente por meio da polícia.
O homem que achou o dinheiro declarou que gostaria que sua mãe o visse agora, pois ela se orgulharia dele. Eis a questão. Lançado para a margem da sociedade, reteve, como um bem pessoal e imaterial que é, o antimoderno sentido da honra. Por incrível que pareça, a maioria das pessoas é honrada e faz parte dessa imensa massa invisível dos não notados. Um trabalhador dedicado ao seu trabalho, ou um professor devotado ao ensino e à formação de seus alunos, terá pouquíssima chance de ser aplaudido, mesmo por quem de seu trabalho se beneficia. No entanto, eles têm o que lhes basta como nutrição moral: o sentido da honra e a honestidade. Já não se fala disso, mas os sociólogos sabem que uma das carências humanas destes tempos de liquefação dos valores é a da honradez e da honestidade, o alimento que sacia os que não foram vencidos, os que se mantiveram antiquadamente honestos.
*JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A SOCIABILIDADE DO HOMEM SIMPLES (CONTEXTO)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Inovar para competir, por Arnaldo Jardim




O Brasil enfrenta o risco da desindustrialização e não há como tapar o sol com a peneira! Diminuição relativa da participação da indústria no PIB, desarticulação de vários setores produtores, deterioração da qualidade de nossa pauta de exportações e a perda de competitividade internacional são evidentes. Afora medidas macroeconômicas – juros e câmbio –, há necessidade de ampliar os investimentos (concessões e PPP’s), dar eficácia a ação do Poder Público e concentradamente aumentar a competitividade da indústria nacional.
competitividade industrial, que deverá ser buscada centralmente em setores nos quais temos vantagens comparativas (agroindústria, pré-sal, energias renováveis e assim por diante), se ampara e se viabiliza na capacidade de inovação.
Nas entrelinhas do anúncio da revisão de metas do Plano Estratégico da Petrobras, que reduz a previsão de produção de petróleo de 4,91 milhões para 4,2 milhões de barris até 2020, está embutida a dificuldade de a empresa contratar equipamentos com conteúdo nacional para aumentar a exploração e agregar mão de obra qualificada em quantidade suficiente para seus projetos.
Guardada a devida proporção é o mesmo dilema enfrentado pela indústria nacional que vem perdendo competividade não só pela crise, mas também pela ausência de uma política mais agressiva de P&D (Pesquisa e Desenvolvimento).
Dados do Banco Central apontam que a maior entrada de importados é no setor de bens duráveis, produtos com maior índice de tecnologia, enquanto nossas exportações são de  baixo valor agregado, em especial as commodities. Entre 2008 e 2011, o aumento da importação de bens de consumo foi de 167%.
Este aumento ocorre, principalmente, porque o Brasil só investe 1,19% do PIB em inovação tecnológica, embora já tenha um arcabouço de leis (Lei da Inovação Tecnológica, Lei do Bem) e de mecanismos (cláusula de P&D prevista no contrato de concessões da ANP e recursos da ordem de R$ 400 milhões/ano da ANEEL etc.) para impulsionar a pesquisa científica e tecnologia.
O governo deveria estimular políticas de inovação, por exemplo, exigindo dos setores beneficiados pelos sucessivos pacotes de incentivo fiscal que invistam em desenvolvimento tecnológico.
Recentemente caímos nove posições no ranking dos países inovadores, segundo dados divulgados pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual e Instituto Ensead.
Hoje ocupamos a 52ª colocação e entre os Brics ficamos na lanterna. Na América do Sul quem lidera é o Chile na 39ª posição.
As causas apontadas por especialistas para o fraco desempenho brasileiro em inovação são bem conhecidas. Além do baixo investimento em pesquisa, baixa qualidade do ensino, principalmente no superior tecnológico, temos excessiva burocracia. Na contramão, o governo fez cortes em ciência e tecnologia (R$ 1,48 bilhão) e educação (R$ 1,93 bilhão) este ano.
O programa Ciência sem Fronteiras, anunciado em abril pela presidente Dilma Rousseff, é meritório mas ainda engatinha e seus resultados só serão observados na próxima década.
A educação, a pesquisa e a inovação precisam caminhar juntas, especialmente no ensino tecnológico que apresenta um modelo superado de aprendizagem. Em recente entrevista a revista Veja, o ex-presidente da Apple, John Sculley, disse que se o Brasil quiser se tornar um polo tecnológico será preciso reduzir a burocracia, um dos maiores obstáculos à inovação, segundo ele.
Por isso a integração entre governo, setor produtivo e universidades é fundamental para avançarmos neste setor, que poderá acrescentar um diferencial ao Brasil em termos de vantagem competitiva.
A atividade inovadora tem de ser mais apoiada pelos setores privado e público. É fundamental que se estimulem as articulações entre grupos de pesquisa proeminentes que se destacam nas universidades e empresas. Muitas vezes esses grupos carecem de recursos para transformar os resultados obtidos na bancada em produtos inovadores. Para que um resultado promissor venha a se transformar em produto com valor para a sociedade, é indispensável que as indústrias do setor “adotem” projetos piloto com alguma chance de sucesso.
O governo pode fortalecer os vínculos entre empresas e universidades inspirando-se nos bons resultados obtidos na parceria entre o Cenpes (Centro de Pesquisas e Desenvolvimento Leopoldo Américo Miguez de Mello) da Petrobrás e a UFRJ, ou mesmo entre as indústrias brasileiras de sementes e a Embrapa.
Conclamo, assim, todos para consolidarmos uma política duradoura neste setor vital para o futuro do nosso País!
 
Deputado Arnaldo Jardim (PPS-SP)
E-mail: arnaldojardim@arnaldojardim.com.br
Site oficial: www.arnaldojardim.com.br

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O talentoso senhor Dirceu


A imprensa rende-se ao julgamento do mensalão. Se você achava que o debate público não podia ficar mais pobre, pense de novo. Futricas do Supremo, dedo em riste da CUT e outras levezas serão nosso pão cotidiano durante as próximas semanas.
Esta coluna ignoraria o tema solenemente, não fossem os efeitos do mensalão sobre a política externa brasileira. A história começa há dez anos, em julho de 2002, quando José Dirceu foi aos Estados Unidos pela primeira vez.
Não falava nem entendia inglês. Não conhecia quase ninguém. Mas Lula crescia nas pesquisas de intenção de voto, Fernando Henrique patinava e o "Financial Times" sentia cheiro de calote no ar.
Não era a primeira crise financeira a coincidir com uma eleição presidencial. Em 1998, um Fernando Henrique acuado pedira socorro ao presidente Bill Clinton. Em 2002, Lula não tinha como fazer o mesmo com George W. Bush porque o PT estava longe dos centros americanos de opinião pública, pensamento e poder.
O "New York Times" tinha lá seu naco de razão: "Um governo esquerdista do PT e um governo conservador republicano podem ser uma combinação explosiva".
Lá foi José Dirceu com a "Carta ao Povo Brasileiro" debaixo do braço. Em Nova York, conversou com gente de JP Morgan, Citigroup, Morgan Stanley, Lehman Brothers, ABN Amro, Bear Stearns, da Alcoa e também da Moody's.
Em Washington, visitou a central sindical americana AFL-CIO, o Banco Interamericano, o Departamento de Estado, o Tesouro, o Conselho Econômico Nacional e o Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Tirou foto solene no Ground Zero. WikiLeaks e outros documentos abertos pela lei americana de acesso à informação revelam que ele convenceu.
Em poucos meses, Lula e Bush montariam a aproximação diplomática mais ambiciosa de uma geração. Patrocinaram o primeiro encontro ministerial dos dois países, consultaram um ao outro sistematicamente e a Casa Branca começou a argumentar que o Brasil era "uma potência global em ascensão". Em relações internacionais, reconhecimento é poder.
O mensalão jogou esse trabalho por terra porque era Dirceu quem mantinha o canal de comunicação desimpedido. Mais tarde, o Palácio do Planalto e a Casa Branca iriam às turras a respeito de Iraque, Cuba, Honduras, Irã, comércio internacional, direitos humanos e proliferação nuclear.
Longe de mim colocar azeitona na empada de José Dirceu. O homem não precisa de mais mitificação. Mago dos magos para uns, inimigo público para outros, ele é odiado e reverenciado ao mesmo tempo.
Sua iniciativa deu certo. Não porque ele fosse um grande estadista. Não era. Estava mais para bombeiro apagando incêndio. Teve êxito porque, na época, uma estratégia para lidar com os Estados Unidos era inexistente.
Dez anos mais tarde, pouco mudou. Quando se trata de gerir problemas na relação com os Estados Unidos, o Brasil ainda fica à mercê do talento de um ou outro indivíduo. Sexta economia do mundo, podíamos fazer melhor.
Matias Spektor
Matias Spektor ensina relações internacionais na FGV. É autor de "Kissinger e o Brasil e de Azeredo da Silveira: um depoimento". Trabalhou para as Nações Unidas antes de completar seu doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Foi pesquisador visitante no Council on Foreign Relations (Estados Unidos) e assina uma coluna no "International Herald Tribune". Escreve às quartas, a cada duas semanas, na versão impressa de "Mundo".