sábado, 1 de abril de 2023

No limiar de um debate histórico, Bolivar Lamounier, OESP

 O debate que se vem travando entre o economista André Lara Resende e o que ele denomina os “mercadistas” (basicamente os economistas que atuam no mercado financeiro) tem tudo para se tornar histórico.

Pode desempenhar na presente conjuntura um papel análogo ao travado em 1944 entre Eugenio Gudin e Roberto Simonsen. O alvo visado por Lara Resende é a elevada taxa de juros praticada pelo Banco Central, concentrando-se na estabilidade monetária sem se preocupar, em seu âmbito de atuação, com o risco de uma perigosa subida da inflação. Dias atrás, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defendeu em entrevista a posição de que estabelecer um arcabouço fiscal adequado é função do Legislativo e do Executivo, não do Banco Central; a este cabe aplicar seu meio específico, a taxa de juros, a fim de controlar a inflação.

Lara Resende martela a tecla de que o Banco Central e os “mercadistas” dão uma ênfase exagerada à taxa de juros e ao equilíbrio de contas porque raciocinam com modelos peremptos, como se nossa moeda ainda dependesse de lastro metálico ou como se nossa dívida pública estivesse sob o controle de estrangeiros, o que absolutamente não é o caso. Estando nas mãos de nacionais, vale dizer, de cidadãos de um Estado nacional autônomo e legítimo, nada impede que, em caso de necessidade, o Estado contraia mais dívida, emitindo moeda.

Aqui surge um notável paradoxo: coube a um economista (dos mais eminentes, não preciso dizer) ressaltar, em aparente contradição com seu próprio argumento, que na situação brasileira a variável crítica é o sistema político. Nossos cientistas políticos, assim como os chamados “brasilianistas”, são em geral amenos no trato com nossas instituições governamentais. Salvo melhor juízo, nenhum cientista político ressaltou com tal contundência que um sistema político robusto e legítimo é o pré-requisito para a inteireza de seu ponto de vista. Essa aparente contradição aparece em nada menos que seis passagens da entrevista que Lara Resende concedeu à jornalista Miriam Leitão (O Globo, 30/3/2023): “(A dívida contraída pelo governo) é aceita porque a sociedade confia neste governo, neste Estado organizado e legítimo. O que provoca a desconfiança da moeda não é uma questão econômica, não é uma relação de dívida/PIB, se o governo vai poder pagar ou não, como incorretamente se fala muitas vezes. Isso é analogia de passado quando o governo, para emitir sua dívida, precisava ter lastro metálico. Hoje, quando você tem uma moeda fiduciária, o governo pode sempre pagar, e ela é toda líquida. Então essa é uma economia de puro crédito. O que garante é a confiança no Estado organizado. O que produz a hiperinflação, desorganização, é a desconfiança na desorganização do Estado” (grifo meu).

É uma tese audaciosa. Rastreá-la ao longo das duas últimas décadas – durante as quais “ligações perigosas” foram estabelecidas entre os maiores empreiteiros e a maior estatal do País, quando nossa proverbialmente anêmica estrutura de partidos esfarelou-se de vez, quando a Câmara baixa esteve sob a presidência do deputado Eduardo Cunha, passando em seguida às mãos do deputado Arthur Lira, quando os caminhoneiros paralisaram o País e bandos de arruaceiros depredaram as principais sedes institucionais em Brasília – é trabalho para uma equipe numerosa e qualificada.

Outro ponto a considerar é onde exatamente o Brasil se encontra no espaço e no tempo. Em tese, deveríamos ser um país fácil de governar. Estamos protegidos por nossa extensão territorial e pela distância que nos separa dos núcleos beligerantes que, neste exato momento, ameaçam estilhaçar o planetinha em que nos foi dado viver. A verdade, entretanto, é que, pelo andar da carruagem, possivelmente levaremos uma geração inteira para duplicar nossa pífia renda anual por habitante, que atualmente corresponde a um quarto da do Mississippi, o Estado maia pobre da Federação norte-americana.

O ínfimo grupo de milionários situados no topo de nossa pirâmide social, que não chega a 10%, detém dezenas de vezes o patrimônio e a renda dos 10% de miseráveis que habitam a base. Sobre nosso sistema de ensino básico, peço licença para me abster. Em que direção estamos indo, na da Coreia do Sul ou na da Argentina? Quem quiser apostar na segunda hipótese não estará cometendo nenhuma loucura, mesmo sabendo que não tivemos (e dificilmente teremos) uma dupla como Perón e Evita, nem uma guerra civil entre militares, anarquistas e trotskistas que contabilizou no mínimo 20 mil “desaparecidos”. O problema é que à estagnação e à pobreza também se pode chegar sem que a parcela mais abonada da sociedade abra mão de suas amenidades.

A limitação de espaço obriga-me a concluir de uma forma um tanto abrupta. O problema é que o Brasil não tem uma elite articulada e capaz de articular uma agenda pública para levar de fora para dentro ao sistema político. De dentro para fora, sabemos que só virão faturas e boletos de arrecadação. Essa é a robustez de nosso Estado.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

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