"Depois de toda guerra / alguém tem que fazer a faxina (…) não é fotogênico / e leva anos". Os versos são da poeta polonesa Wislawa Szymborska. Nascida em 1923 em um país que foi repetidas vezes ocupado em guerras brutais, Szymborska é parte desse coletivo difuso de artistas e pensadores, habitantes de muitos tempos e lugares que, por terem visto e vivido o horror, dedicaram parte de suas vidas a narrá-lo.
É certo que após a guerra e outros massacres é preciso levantar muros, remover os escombros, enterrar cadáveres, emitir documentos, reabrir as escolas e bibliotecas. Mas a reconstrução também se faz com palavras: é preciso narrar o horror, descrever seus personagens, nomear responsáveis, contar as histórias dos sobreviventes e das vítimas fatais, costurar com palavras aquilo que foi destroçado.
Horror é a melhor palavra para nomear o que se viveu no Brasil em anos recentes. A palavra "crise" é branda e corriqueira demais: países, economias, empresas e indivíduos entram em crises periódicas, algumas banais, outras mais graves. A soma de um vírus fatal, a aflição socioeconômica e a presença de um governo pautado pela morte, pela crueldade, pelo negacionismo e pela estupidez como método nos colocou nas fronteiras do indizível do sofrimento, em um capítulo que fez coro aos piores momentos da nossa história nacional, como os séculos de escravidão, o genocídio indígena e a ditadura militar. É de horror que se trata.
A começar pelo número impensável de mortos. Literalmente impensável, como apontam muitos estudos em psicologia social. Não somos bons com grandezas tão altas quanto essa cifra vexaminosa de 700 mil mortos. Esse número, meticulosamente produzido pela aliança entre vírus e homens públicos, está além da nossa capacidade de imaginar, ou seja, de converter em imagens que nos façam verdadeiro sentido. Não conversamos sequer com metade desse número de pessoas durante toda uma vida; não sabemos o nome nem mesmo de um centésimo desse total de indivíduos. E a essas vítimas se somam os indígenas mortos em parcerias público-privadas entre garimpeiros e governo, os mortos pelas armas que se multiplicaram pelo território, as vítimas de ódio político e tantas outras.
É urgente narrar o horror. Essa frase faz raspar a garganta, é ríspida e difícil de pronunciar —com esses "erres" repetidos como na frase que falava de outros ratos e outros reis de Roma— o que anuncia desde o início a dureza dessa tarefa. Sem a construção de um amplo tecido de discursos sobre a recente experiência brasileira, é impossível vislumbrar um projeto democrático para o país. E não temos o direito de errar mais uma vez: já fracassamos miseravelmente nos últimos 40 anos em realizar esse processo de rememoração e cultivo de uma memória social do necrogoverno militar.
Para pensar a recente história brasileira a partir do diagnóstico do horror, é preciso refletir para além da dureza fria dos fatos e dos números: a sociedade tem a obrigação de convocar a si própria a produzir narrativas. Algumas dessas vão tomar a forma de romances, ensaios, peças de teatro, filmes, canções, podcasts, livros didáticos. Outras serão compartilhadas por famílias, amigos, comunidades.
Primo Levi, outro ilustre membro dessa irmandade de artistas que buscaram encontrar palavras para o mal, dedicou o final de sua vida a nos lembrar que, sem encontrar palavras para descrever o horror, a violência se perpetua como trauma. Ela não cessa de se reinscrever na vida dos sujeitos e das sociedades, apenas adquirindo novas formas ou recriando velhas instituições de que somos tão pródigos, em nosso caso —seja a barbárie da situação carcerária, a desigualdade desavergonhada, o contínuo genocídio indígena, o ecocídio, o racismo que nos estrutura.
Esse processo coletivo de criação de narrativas do horror é um elemento fundamental para a constituição de uma sociedade, algo que jamais conseguimos ser, de fato. Uma sociedade só pode existir quando honramos os mortos, punimos algozes e cúmplices, construímos uma verdadeira rede de proteção social e uma cultura democrática para que o mal, seja na forma como já vivemos ou em outras tão ou mais sórdidas, não volte a se repetir.
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