O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e a Polícia Civil já identificaram a ação do crime organizado nos ataques a trens que transportam cargas para o Porto de Santos, no litoral de São Paulo. As ações, que se concentram na Baixada Santista, têm causado risco para operadores dos trens e prejuízos para as exportações brasileiras.
Só em janeiro e fevereiro, segundo a Promotoria, as ferrovias da região sofreram 516 horas de interrupção das vias, ou seja, os trens pararam um dia a cada três dias de operação por atos de vandalismo e saques de cargas nesta região.
Quando os trens reduzem a velocidade em áreas urbanas de Cubatão, Santos e do distrito de Vicente de Carvalho (Guarujá), os saqueadores sobem nos vagões e retiram sacas de soja, açúcar e outras mercadorias, que são jogadas ao lado dos trilhos.
Em outras ações, eles obrigam o trem a parar cortando as mangueiras dos freios que interligam vagões. Os criminosos, então, abrem as comportas com carga a granel e espalham o conteúdo na linha. Grupos de pessoas previamente avisados, com sacos de ráfia às mãos, recolhem os produtos e levam para armazéns clandestinos. A carga é vendida para receptadores.
Dados obtidos pelo MP-SP apontam que, só em janeiro e fevereiro, 86 vagões foram abertos para a retirada de produtos. Em muitos casos, isso ocorre após danificar as mangueiras de freios para a parada do trem – houve 1.189 cortes de mangueiras. Os bandidos fizeram ainda o desengate de 28 vagões para saques de produtos e realizaram 35 furtos de diesel das locomotivas. Em 20 ações criminosas, houve danos à linha férrea.
Os ataques são principalmente no início da noite e antes do amanhecer, mas já foram registradas ações em plena luz do dia. Do total de 244 ocorrências (111 em janeiro, 133 em fevereiro), 17 foram apenas atos de vandalismo, como o incêndio em vagões com celulose. No ano passado foram 153 ataques, segundo o MP. Sem informar o valor, a Rumo disse que os prejuízos são “milionários”.
Empresas faziam receptação
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Segundo o promotor público Silvio Loubeh, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo (Gaeco) do MP em Santos, foram identificadas duas empresas de donos diferentes que faziam a receptação e venda dos produtos saqueados para consumidores finais – em alguns casos até indústrias de ração. Para “esquentar” o produto furtado, usavam documentos de uma empresa contratada para fazer a limpeza e varrição da linha férrea.
A empresa que faz esse serviço é autorizada a vender legalmente os grãos de milho, soja e outros produtos que eventualmente caem nos trilhos. Esse subproduto de baixo valor é aproveitado para alimentar animais.
Segundo o MP, os criminosos viram ali uma oportunidade de obter ganhos ilícitos e passaram a saquear vagões, derrubando as cargas na linha. “O pessoal encontrou esse nicho e passou a ser uma ação criminosa organizada para vender, não o subproduto, mas a carga de maior valor. A grande indústria compra, em tese, o material legitimado por documentos”, diz.
Conforme o promotor, os furtos em trens de carga sempre existiram, mas em nível tolerável, que não chegava a comprometer o sistema de exportação brasileiro. “Ao longo de 2022, os números cresceram muito e, no início de 2023, explodiram de forma a ter até quatro eventos por dia”, afirma. “Uma coisa muito séria, pois além de afetar a credibilidade de um sistema importante de transporte, gerava o risco de graves acidentes ferroviários. Isso tornou necessária ação conjunta com os órgãos de segurança do Estado.”
Segundo o MP, levantamentos realizados pela Rumo, principal alvo dos ataques, apontam que, embora o trecho da malha ferroviária administrada pela ferrovia na Baixada Santista corresponda a apenas 0,16% da totalidade sob sua gestão, as ocorrências registradas só em janeiro de 2023 correspondem a 45% do total de casos dos quais a empresa foi vítima em todo o país. A Rumo confirmou essa concentração de casos e informou que, na Baixada Santista, tem 22 km de ferrovia sob sua gestão.
O trecho mais crítico são os 7 km que cortam bairros urbanos de Cubatão. Treze bairros são margeados pela linha férrea, dos quais quatro (Vila dos Pescadores, Vila Esperança, Costa Muniz e Jardim 31 de Março) têm os trilhos muito próximos das moradias e do comércio. É onde os trens circulam em baixa velocidade, facilitando os ataques. As ações acontecem também no trecho do distrito de Vicente de Carvalho, em Guarujá, e são mais raras em território santista.
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Operação investiga crimes
A Operação Ferrovia Segura, realizada no dia 29 de março, cumpriu 37 mandados de busca e apreensão e prendeu seis pessoas, entre elas os dois ocupantes de um veículo com duas toneladas de soja. Em dois galpões do dono de uma das empresas de varrição, foram encontradas centenas de sacas de milho e açúcar com qualidade e quantidade incompatíveis com o material obtido na varrição.
A Polícia Civil apurou que, entre junho e setembro do ano passado, o proprietário dessa empresa gastou R$ 290 mil na compra de 246 mil sacas de ráfia – do mesmo tipo encontrado com os saqueadores presos. Ele e outro suspeito respondem em liberdade pelos crimes de receptação de carga roubada.
Conforme Loubeh, a operação chegou também aos grupos que atuam na outra ponta do crime, sabotando os trens e subtraindo as cargas. Conversas interceptadas com autorização da Justiça mostraram que os chefes das organizações convocavam os moradores das comunidades cortadas pela ferrovia para saquear trens.
“Alguém falava, ‘vamos parar o trem lá hoje, vamos distribuir os sacos’. O grupo ficava lá com os sacos na mão esperando a carga”, contou. Desse modo, a carga furtada chegava aos receptadores por um preço baixo e estes a vendiam pelo valor real.
Para o promotor, as ações não são comandadas por facções que agem na Baixada Santista, como o Primeiro Comando da Capital (PCC). “Não temos, por enquanto, evidência de que o PCC atua nesses ataques. O que temos são essas situações já identificadas de pessoas que sabemos que tem ligação com o PCC, que já foram identificadas e processadas por isso, e que participaram de algum ato, mas não que seja atuação da organização criminosa. O negócio está tão disseminado que todo tipo de gente participa”, afirma.
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Silvio Loubeh, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo (Gaeco) do MP em Santos
No procedimento investigatório, o MP aguarda a perícia dos celulares apreendidos com os suspeitos para chegar aos demais ‘cabeças’ das organizações criminosas.
Outra investigação é conduzida pela Polícia Civil. De acordo com o delegado Fabiano Fonseca Barbeiro, da Delegacia de Investigações Criminais (Deic) de Santos, foram identificadas ao menos 30 pessoas envolvidas em crimes nas linhas férreas. A maioria foi presa e ainda responde a processos por furto, dano, receptação e associação criminosa. No total, este ano, mais de 500 toneladas de produtos foram recuperadas.
Depois das operações, segundo a Polícia Civil, os ataques caíram, mas não cessaram. Dados do MPSP contabilizam 111 ocorrências em janeiro, 133 em fevereiro e, com dados ainda parciais, apenas 14 em março.
Mesmo assim, os funcionários dos trens estão assustados, segundo José Claudinei Messias, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Ferroviários da Zona Sorocabana. “Muitos maquinistas já pensaram em desistir e alguns até desistiram da profissão por receio de serem atacados e não voltar para casa. Devemos lembrar que os maquinistas trabalham sozinhos em suas viagens e as empresas precisam pensar no apoio psicológico a esses funcionários que passaram por episódios traumatizantes”, disse.
A empresa Rumo, que administra o corredor ferroviário do Porto de Santos e é o principal alvo das ações criminosas, disse que as ações de grupos especiais no combate ao crime organizado já surtem efeitos positivos, como a prisão de suspeitos e a consequente desarticulação dos ataques.
“Mesmo com esse cenário de melhora, o combate ao crime continua e as operações seguem envolvendo as áreas de inteligência das Polícias Militar e Civil, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público (Gaeco) e o Poder Judiciário”, disse.
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Segundo a Rumo, a concessionária mantém conversas com a Secretaria de Segurança Pública e com os comandos gerais das polícias Civil e Militar.
“Adicionalmente, a Rumo tem reforçado seu efetivo de segurança patrimonial e vem subsidiando as autoridades com informações que possam ajudar nas investigações e ajustando suas operações de modo a reduzir as consequências para seus clientes.” Por razões estratégicas, a empresa não detalha o que foi reforçado na vigilância das linhas.
A reportagem apurou que a segurança passou a usar drones para monitorar os trens. Recentemente, a Rumo e a Embratel anunciaram a ampliação da cobertura de sinal 4G em toda a Serra de Santos para apoiar a operação de locomotivas na região. A melhora do sinal facilita a comunicação entre os maquinistas e o centro de apoio operacional da Rumo e dá agilidade ao compartilhamento de informações.
A Agência Nacional de Transportes Ferroviários (ANTF) disse que, diferente das ocorrências recentes na Baixada Santista, os ataques em rodovias são pontuais.
“As ações dos criminosos prejudicam as empresas, o fluxo de escoamento de todo tipo de carga pela ferrovia e a economia do país.” Segundo a entidade, o trabalho policial e a cooperação do setor ferroviário resultaram em ações bem sucedidas no combate ao esquema criminoso. " A entidade confia que as autoridades responsáveis pela segurança pública continuarão tomando as medidas necessárias para manter a integridade das operações.”
A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo informou que o trabalho conjunto realizado pela Polícia Militar com a Polícia Civil e o Ministério Público resultou, até o momento, na prisão de 21 infratores, recuperação de 94,7 toneladas de produtos (além dos grãos) e apreensão de 17 veículos utilizados pelos criminosos que atuam na malha ferroviária. “A operação permanece ao longo de todo ano de 2023 e conta com o incentivo à população para denúncia de qualquer tipo de crime (pelos canais de denúncia), com sigilo garantido”, disse, em nota.
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