Dizem os sábios que, nos primórdios do Cosmos, a Dona Evolução passeava entre as fileiras dos animais recém-emersos da lama primordial. A dita dama ia atribuindo a cada um deles as mais disparatadas características, com o senso de humor que lhe é peculiar.
Parou, por fim, na frente do Homo sapiens, com aquele sorriso de canto de boca. "Esse aqui vai ser onívoro, só que com excesso de imaginação", sentenciou ela. "Vai comer quase de tudo, mas, em compensação, inventará tudo quanto é neura sobre o que come." Crudelíssima senhora.
OK, talvez não seja um primor de alegoria, mas dá para o gasto. Acho que a historinha acima descreve mais ou menos bem um dos (muitos) buracos nos quais a gente foi se enfiar por causa da nossa história evolutiva esquisita.
E é um daqueles casos proverbiais em que, depois do fundo do poço, ainda tem um alçapão. Em geral, um alçapão chamado modismos alimentares — inclusive os que são alimentados (com o perdão do trocadilho) por quem deveria atuar como antídoto contra eles.
Com efeito, não vejo outro jeito de descrever a horda de nutricionistas que, tempos atrás, saiu por aí dizendo que cortar glúten e lactose era uma panaceia. Ou os entusiastas da "dieta paleo". Ou os devotos do jejum intermitente. Bem, você já entendeu, espero.
Muitas dessas barcas furadas têm em comum a ideia de que é preciso voltar no tempo, de alguma maneira. Retomar a dieta "natural" dos seres humanos, aquela que "fomos feitos" para deglutir. "Você conhece algum bicho que toma leite depois da fase de bebê? Só o ser humano comete essa loucura!", já me disseram muitas vezes os inimigos da lactose, por exemplo.
Faltou combinar essa dica genial com as diversas populações mundo afora —gente como a maioria dos europeus, grupos pastoralistas da África e certos povos do Oriente Médio— cujo DNA lhes confere a capacidade de digerir leite na vida adulta sem o menor problema.
Essa capacidade foi, aliás, favorecida intensamente pela seleção natural nesses lugares do mundo desde que a domesticação de animais leiteiros começou a se espalhar.
Ao que tudo indica, uma pequena proporção original de pessoas com esse pequeno "superpoder" foi aumentando porque eles conseguiam deixar mais descendentes do que os demais. Em alguns grupos atuais, a prevalência deles chega perto de 100%.
Um processo muito semelhante se deu no caso de variantes de DNA que favorecem, por exemplo, a digestão mais eficiente de amido, um recurso alimentar que se tornou muito mais abundante conforme, em diferentes lugares do planeta, seres humanos passaram a plantar cereais e tubérculos em larga escala a partir de uns 10 mil anos atrás.
Mesmo antes da gênese da agricultura e da criação de animais, um processo parecido já estava em marcha porque, afinal, já havia seres humanos em virtualmente todos os ambientes do mundo, da Amazônia às beiradas do Ártico.
Esse processo se estendeu por dezenas de milhares de anos e envolveu, claro, a adaptação do nosso paladar de onívoro à imensa variedade de alimentos disponível em todos esses ambientes.
Isso significa que nunca houve uma "comida natural" de seres humanos no sentido de um pacote fechado e único. De lá para cá, a única coisa que mudou de fato foi a gigantesca oferta de calorias —muitas vezes despidas de nutrientes além de carboidratos— que o sucesso da agricultura industrial produziu no século 20.
Portanto, quem quer voltar às nossas origens alimentares tem de fazer o óbvio, aquilo que sua avó já dizia: comer de tudo e não comer muito. Não há o que inventar.
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