quarta-feira, 26 de abril de 2023

As ironias da História, Leandro Karnal ,OESP

 


Ouvir:As ironias da História
Logo audima

O filósofo Denis Diderot (1713-1784) foi um importante iluminista. Sua vida foi marcada por contradições. Aluno dos jesuítas, foi educado em línguas clássicas e, dessa base sólida, surgiria um pensador contrário ao poder eclesiástico. Ele chegou a ser tonsurado (um corte especial de cabelo que marca o começo de uma carreira religiosa). Seria conhecido como um dos ateus das luzes.

A obra mais famosa do Iluminismo foi a Enciclopédia, e Diderot está associado a ela. As críticas ao Antigo Regime acabaram colaborando para fazer surgir a Revolução Francesa. No tenso inverno de 1793, a onda de anticlericalismo e impiedade estava provocando saques nas igrejas. Diderot havia morrido na década anterior (o que restava do seu corpo jazia na igreja de Saint-Roch). A Revolução que ele tinha ajudado a configurar intelectualmente acabou profanando seu túmulo.

Denis Diderot, em desenho de Louis-Michel Van Loo, que está exposto no Museu do Louvre.
Denis Diderot, em desenho de Louis-Michel Van Loo, que está exposto no Museu do Louvre. Foto: Reprodução/Louis-Michel Van Loo

Aprendi, no livro de Andrew S. Curran, o episódio da tumba: Diderot e a Arte de Pensar Livremente (São Paulo: Todavia, 2022). Produzindo de forma quase secreta, no sótão de um prédio da Rua Taranne, o filósofo adiantou vários temas que só seriam tratados nos séculos seguintes. Ele cruzou arte literária com imaginação poderosa, redigindo desde cartas de amor comoventes até ficção científica. Somente para pegar um dado do livro de Curran, o famoso texto O Sobrinho de Rameau foi encontrado na forma manuscrita, em 1890, em uma banca de documentos e livros ao lado do Rio Sena, em Paris. Outras obras seriam achadas em um castelo da Normandia a partir de 1948.

De alguma forma, “ele escolheu deliberadamente renunciar a uma conversa com seus contemporâneos de modo a estabelecer um diálogo mais frutífero com gerações posteriores - conosco, em resumo” (p. 130).

São muitas as ironias da História. A primeira é ele ter sido amparado financeiramente por uma soberana absoluta, Catarina da Rússia, uma déspota esclarecida. Suas ideias colaboraram para o processo que acabaria por profanar seu túmulo. Querendo dialogar com o futuro, de alguma forma, evitou influenciar ainda mais o século 18, por considerar muitas coisas excessivamente ousadas; em contradição, no fim do século 20, algumas já estavam datadas. A História é povoada de ironias e raramente mostra muita esperança conosco. O jeito é ler o livro de Curran. É uma forma de vingança com cultura. Just in case, acho melhor ser cremado. Vá que...

Nenhum comentário: