O pequeno apartamento no centro de São Paulo de 35m² está sendo mobiliado aos poucos, mas já oferece conforto aos novos moradores. "Eu ainda vou deixar tudo ao meu gosto. Comprar alguns móveis novos, trocar outros de lugar. Não preciso ter pressa", disse Francisca de Jesus, 57.
Faz quatro meses que ela se mudou para o imóvel com o filho de 15 anos, após longa espera. O apartamento fica no recém-inaugurado residencial Elza Soares, na rua Helvétia, em Santa Cecília. O prédio passou por uma reforma que durou cinco anos e hoje é 100% destinado a moradia popular.
"Antes eu gastava quase todo o meu dinheiro para pagar aluguel. Era um lugar minúsculo, que para entrar no banheiro tinha que virar de lado. Aqui a nossa vida já melhorou muito", disse a cabeleireira, enquanto mostrava o banheiro novo, equipado com box, pia, vaso sanitário, tanque e máquina de lavar.
Desde que a reforma foi concluída, em dezembro passado, os novos moradores têm chegado aos poucos —93 famílias já se estabeleceram e outras 83 ainda aguardam liberação da Caixa Econômica Federal para receber as chaves.
Assim como Francisca, a maior parte dos atuais moradores viveu no edifício quando ele abrigou uma ocupação, entre 2012 e 2016. Antes um luxuoso hotel, o prédio estava abandonado há oito anos quando um grupo formado por 40 famílias passou a ocupar o local.
Nesse período, os moradores viviam com medo de serem expulsos por uma reintegração de posse, disse o designer gráfico Alexandre Fester, 50. "A gente saía de casa para trabalhar e não sabia se no fim do dia teriam tirado todas as nossas coisas de lá" disse o morador, que hoje trabalha também na portaria do prédio.
Ele e a mulher Adriana, 48, foram os primeiros a se mudar logo após o término da reforma. "A gente veio para cá na mesma noite trazendo a mudança. Dormimos na boleia do caminhão aqui na rua, para descarregar as nossas coisas logo que o portão abrisse, às 8h da manhã", disse a copeira hospitalar, que agora planeja estudar nutrição na universidade.
Entregue em dezembro de 2022, a reforma foi viabilizada após extensa negociação entre a FLM (Frente de Luta por Moradia), movimento que coordenava a ocupação, e a prefeitura de São Paulo, então proprietária do edifício.
No final de 2015, a administração municipal, à época sob gestão de Fernando Haddad (PT), abriu chamamento público para destinar o edifício a moradia popular, e o movimento social ganhou o direito de investir R$ 22 milhões na reforma e construção de novo bloco de apartamentos com financiamento da Caixa.
"A maioria dos moradores veio de décadas de luta em ocupações, pressionando para que o governo fizesse uma política pública para atender essa demanda por moradia. Dessa geração do Minha Casa Minha Vida aqui em São Paulo, o Lord foi um dos últimos contratos feitos com o nosso movimento", disse o coordenador da FLM Osmar Borges.
O novo condomínio tem unidades de várias dimensões - desde quitinetes com 27m² a apartamentos de dois quartos com 55m². Morador do décimo andar, Francisco Monteiro, 65, observa da varanda espaçosa o movimento da rua das Palmeiras e do largo de Santa Cecília. "É uma vitória e um recomeço pra mim. A vida que eu não tive, agora eu vou ter", disse o vendedor ambulante, que planeja viajar em breve para Pernambuco, onde nasceu, para visitar o irmão e os sobrinhos. "Continuo trabalhando mas também quero aproveitar. Faz 40 anos que não volto para lá".
Inaugurado em 1958, o Lord Palace Hotel já foi um dos mais célebres da cidade. Por ficar a poucos metros do antigo endereço da TV Globo, o quatro estrelas ganhou fama de "hotel dos artistas", já que recebia muitos atores e atrizes que iam gravar na emissora. Era ainda referência em hospedagem para delegações de clubes de futebol, antes de cair em decadência e finalmente encerrar as atividades em 2004.
Na nova fachada, uma ilustração de Elza Soares, que dá nome ao condomínio, chama a atenção de quem passa pela rua. O mural mostra a cantora ainda jovem segurando a chave do hotel em sua mão esquerda. Ao lado, a frase "nenhuma mulher sem casa".
A homenagem não é por acaso e remete a um episódio ocorrido em 1964. Na ocasião, Elza e o companheiro, o jogador de futebol Garrincha, foram barrados na portaria do hotel e impedidos de se hospedar por serem negros.
"O que mais me chamou a atenção pela história da Elza foi o preconceito que ela vivenciou aqui. E nós, enquanto moradores da ocupação, também sofremos isso pela vizinhança. Ainda acontece, mas agora eles têm que nos respeitar", disse a assistente social Rosângela Pereira, 38, que mora em um apartamento de dois quartos com o marido e os dois filhos.
Atualmente, de acordo com a Prefeitura de São Paulo, o déficit habitacional da cidade é estimado em 369 mil domicílios. Em março, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) anunciou a compra de 38 mil unidades para abrigar a população de baixa renda que está na fila da Cohab-SP (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) ou recebe auxílio-aluguel. Um outro edital para compra de mais 20 mil unidades ainda será publicado.
Ainda por intermédio do programa, a administração municipal disse que estão em estudo propostas de intervenção em 10 edifícios do centro para transformá-los em habitação de interesse social. Na região, a Sehab (Secretaria Municipal de Habitação) monitora 48 prédios ocupados de forma irregular por famílias sem-teto.
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