Banalizamos a urgência da promoção de direitos existenciais dos grupos mais vulneráveis da sociedade brasileira. Somos tão vocacionados para a violação de direitos que também banalizamos a própria noção de banalização. Nesse circuito de indiferença, inação e cumplicidade, o PIBB (Produto Interno da Brutalidade Brasileira) segue como nosso principal selo de inumanidade.
Entre esses grupos, a população em situação de rua é o mais sub-representado politicamente e desprovido de canais para influenciar decisões ou reivindicar qualquer coisa. Indivíduos isolados, em geral com vínculos sociais, familiares e afetivos rompidos, sem laços comunitários, com baixa capacidade de organização e mobilização, nem mesmo um "grupo", a rigor, conseguem formar.
Cidadãos de direito, subcidadãos de fato, ocupam o degrau mais baixo da subcidadania. E nem precisamos lembrar como as dimensões de gênero, raça, orientação sexual e capacidade física ou intelectual cavam ainda mais fundo esse poço. Quando jovens atearam fogo e mataram o líder indígena Galdino Pataxó, há 25 anos, alegaram confundi-lo com "morador de rua".
A política de zeladoria urbana da Prefeitura de São Paulo tem radicalizado a arbitrariedade contra essa população. "Política de porradaria" seria a versão não eufemística. Casos de violência física, verbal, patrimonial e institucional se intensificam sem controle e responsabilização.
Violam legislação municipal que exige comunicação com antecedência de ações de limpeza urbana; entrega de contralacre dos bens apreendidos; vedação de subtração de objetos como medicamentos, cobertores e travesseiros (Decreto 59.246/2020 e Portaria 4/2020).
Violam Resolução 40/2020 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, que determina a autoridades "coibir atos ilegais de retirada de documentos e pertences" e respeitar a inviolabilidade e privacidade "do domicílio improvisado da pessoa em situação de rua".
A Defensoria Pública e a Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama descrevem ações que se multiplicaram nos últimos anos: remoções de barracas e pertences (roupas, absorventes, cobertas, fraldas geriátricas), sem aviso prévio e contralacre, com agressão física e verbal; uso eventual de bala de borracha e spray de pimenta por guarda municipal.
Num caso da Vila Matilde, agentes municipais chegaram com tratores para, depois de remoção dos bens, cavar buracos e dificultar a presença de barracas. Reproduziram as imagens mais sombrias e traumáticas de covas coletivas da pandemia.
O prefeito silencia sobre violações. Na tentativa de deixar sua marca, gestores medíocres ou mal-intencionados viram reféns da ciclotimia eleitoral. Precisam mostrar algum serviço para as próximas eleições e tentam resolver a jato um problema estrutural e histórico. O país já ensinou que as operações de lavagem a jato acabam mal.
Políticas públicas para a população em situação de rua têm tradição repressora e higienista. Têm também tradição de errar consistentemente e agravar o problema. Costumam ser feitas no escuro empírico, sem evidências qualitativas e quantitativas.
A ideia de que se pode propor soluções para o mundo sem investigá-lo é um sintoma sério de ignorância e estupidez. De arrogância e autoritarismo também. Isso quando não se atribui responsabilidade à falta de caráter, de vontade, de esforço e competência. A desgraça e infortuna de indivíduos são reduzidas a uma falha moral.
Entre as poucas evidências que temos, sabe-se que nenhuma política para essa população obtém resultado se não acompanhada de programas de moradia e trabalho, respeitadas a autonomia de cada um. Mas essa rara evidência se tem preferido ignorar.
Na cidade de São Paulo, esses indivíduos não estão destituídos apenas do direito de propriedade ou moradia. Na rua, buscam ter, quando muito, a liberdade de não sentir fome, de dormir sem frio e acordar sem medo. Mas a autoridade municipal lhes subtrai, ilegalmente, a propriedade de pertences de sobrevivência, higiene e mínimo bem-estar.
Como pedir urgência para algo sempre urgente, sempre ignorado? O STF, sob relatoria de Alexandre de Moraes, tem a oportunidade de reconhecer essa séria violação de direitos fundamentais e exigir de autoridades urbanas o respeito a regras básicas de não arbitrariedade e não violência.
Que o município de São Paulo cumpra seu próprio decreto. E que parâmetros normativos de proteção aos cidadãos mais vulneráveis entre os vulneráveis sejam respeitados nas cidades do país. Pede-se pouco, apenas um grão de decência constitucional, não o fim da limpeza urbana. Com direitos, sem medo, sem violência.
O inverno está chegando e o frio, na rua, mata.
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