sábado, 22 de abril de 2023

Guerra Fria 2.0 contamina busca por origem da Covid na China, Marcelo Leite, FSP

 A julgar pelo conteúdo que aparece na bolha esclarecida nacional, deu-se por resolvido o enigma da origem do Sars-CoV-2. A percepção é equivocada, porque ainda não se sabe como surgiu o vírus que matou 7 milhões de pessoas, 10% delas só no Brasil, que tem menos de 3% da população mundial.

A aparente solução da charada viral teria vindo com a publicação de sequências de DNA do mercado Huanan, na cidade de Wuhan, ponto de partida da pandemia: o tão buscado vetor que teria infectado humanos seria um cão-guaxinim vendido na feira. Não era simples assim, claro.

O DNA encontrado acrescenta algum apoio circunstancial para a hipótese de um animal ter contaminado vendedores ou clientes do mercado, verdade, porém fica longe de fornecer prova definitiva. Por si só, o indício não descarta que o Sars-CoV-2 tenha surgido a cerca de 10 km dali, no Instituto de Virologia de Wuhan (IVW).

Das 172 amostras genéticas coletadas no mercado de Huanan em janeiro de 2020, 60 apresentaram teste positivo para Sars-CoV-2
Das 172 amostras genéticas coletadas no mercado de Huanan em janeiro de 2020, 60 apresentaram teste positivo para Sars-CoV-2 - Hector Retamal - 30.mar.20/AFP

As 172 amostras genéticas em questão foram coletadas no mercado em janeiro de 2020. Ou seja, cerca de um mês após surgirem os primeiros casos de Covid na cidade, surto inicialmente abafado por autoridades. Das amostras obtidas, 60 apresentaram teste positivo para Sars-CoV-2.

Misturados com as amostras positivadas havia também trechos de DNA identificados em animais suscetíveis a infecção por essa família de vírus, como o cão-guaxinim. Isso sugere, mas não comprova, que bichos contaminados pelo Sars-CoV-2 estavam à venda ali, pois só a presença do vírus em tecido animal representaria evidência forte disso.

Alice Hughes, da Universidade de Hong Kong, disse à revista Nature (na qual saíram os dados de DNA) que as amostras continham não só material genético de cães-guaxinins, mas também de pandas, toupeiras e chimpanzés. A bióloga pondera que matar pandas dá pena de morte na China, e eles decerto não eram vendidos na feira de Wuhan.

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Pode bem ter ocorrido contaminação das amostras nos laboratórios que as analisaram. Ou então a análise genética é que foi deficiente. Não dá para confiar muito nos dados nem como indício indireto de contaminação dos cães-guaxinins, menos ainda que eles tenham sido os vetores iniciais da pandemia.

Para quem está convencido de que a hipótese de escape laboratorial do IVW não tem pé nem cabeça, entretanto, o novo indício com DNA, por tênue que seja, aparece como mais uma evidência a corroborar a explicação favorecida (mercado). É o que se chama de viés de confirmação.

Tudo indica que, no Brasil, a hipótese de origem no mercado se fixou entre admiradores da ciência porque a alternativa (escape laboratorial) era preferida por dois Belzebus, Jair Bolsonaro e Donald Trump. Cogitar o instituto como fonte da pandemia equivaleria a subscrever teorias conspiratórias imperialistas, antichinesas, até racistas.

Nos Estados Unidos, o cenário se mostra um pouco diverso. Ele não se alterou muito nem com a derrota de Trump, porque mesmo sob Joe Biden a China continua a ser o principal adversário geopolítico, ao lado da Rússia.

Órgãos do governo americano, parlamentares e veículos de imprensa mantêm viva, por lá, a tese laboratorial. Ela combina bem com os interesses estratégicos da potência que perde terreno no mundo. Os indícios são parcos, de fato, mas não se deve esquecer que o controle de informação pela ditadura chinesa não contribui para esclarecer nada, só para confundir.

É espantoso, em se tratando de uma ameaça global de saúde, que os dados de DNA só tenham sido publicados três anos após o início da pandemia. Quanta informação mais estaria escondendo o governo chinês nesse meio tempo?

Guerra Fria 2.0 tem mais de um lado, cabe lembrar. Pesquisadores e pessoas esclarecidas, amigas da ciência e da objetividade, não deveriam alinhar-se com nenhum deles. Numa guerra, como reza o lugar comum, a primeira vítima é sempre a verdade.


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