Renato Sérgio de Lima e Luiz Fábio Silva Paiva
Ao longo das últimas três décadas, vários lugares comuns já foram usados para descrever o quadro da (in)segurança pública no país: “crises recorrentes”; “epidemia de indiferença”; “banalidade do mal”; “vidas menosprezadas”; “descontrole”; entre outros. Em todos, o alerta para um tema dos mais sensíveis da vida social, política e econômica de uma nação mas, mesmo assim, um assunto tabu. Um assunto temido, negligenciado e quase sempre reduzido às antinomias entre crime organização e a gestão dos sistemas de segurança pública e justiça criminal.
Da mesma forma que todos temos uma história de medo e violência para contar, na proximidade que tais fatos ocupam no cotidiano da população brasileira, tais fenômenos têm sido apropriados de forma a impedir um debate racional sobre o que tem acontecido, por exemplo, na recente onda de ataques no Rio Grande do Norte (RN).
De um lado, a posição de gestores e profissionais da área que, desafiados pelos ataques e pelo discurso das lideranças criminosas que justificam os atos de violência nas medievais condições prisionais potiguares, buscam retomar o controle da situação e não filtram o que de fato é fruto do poder que as facções de base prisional acumularam na cena do crime no Brasil do que, em sentido contrário, são corretas reivindicações contra torturas e maus tratos. Tudo vira uma disputa entre “privilégio” e “direitos”; entre merecimento, culpa e castigo.
Por outro lado, a sociedade civil organizada, universidades e/ou parcela majoritária da mídia profissional, que foram forças políticas das mais importantes para a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro e do extremismo político que ele representa, perde protagonismo e é acusada de defender bandidos – o bolsonarismo conseguiu fortalecer a ideia de que defender direitos é sinal de que se defende bandidos, até mais enfaticamente do que reforçar o chavão “bandido bom é bandido morto”.
O problema é que, na ausência de âncoras democráticas ou evidências que balizem o debate político, as mesmas receitas aparentemente água com açúcar mas venenosas continuam sendo prescritas para a solução da crise. Por trás dos chavões extremistas de engajamento indignado nas redes, a mesma fórmula: mais dinheiro, mais efetivo, mais viaturas e equipamentos e, claro, mais restrições a direitos. Mas o que dizem os dados?
ORio Grande do Norte conseguiu, nos últimos anos, melhorar relativamente índices prisionais e até alguns indicadores de criminalidade, como os homicídios. Mas o ganho não o retira da média desconfortável que nos faz ser um dos mais violentos países do mundo. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, enquanto a média nacional de presos provisórios foi de 28,5% do total de presos, no Rio Grande do Norte, esse percentual foi de 26,3%. Em 2020, esses percentuais eram, respectivamente, de 30,2% e 27,5%. O estado tinha, em 2021, 1,3 preso para cada vaga disponível, número igual à média nacional e inferior a Alagoas, com 2,3 presos por vaga, ou do Distrito Federal, com 1,8 preso por vaga no mesmo período (as duas unidades da federação com os melhores índices nesse quesito).
Chama atenção, ainda, a relação entre a quantidade de presos e a quantidade de policiais penais existentes. No Brasil, a média é de 8,9 presos para cada policial penal. No Rio Grande do Norte, essa razão é melhor, de 8,3 presos para cada policial penal potiguar. Para efeito de comparação, São Paulo, que tem as menores taxas de Mortes Violentas Intencionais do país e a maior população prisional, possui uma razão de 7,6 presos para cada policial penal. Ou seja, o problema do RN não é, necessariamente, só de efetivo. É de gestão e alocação de pessoal.
O mesmo pode ser dito em relação ao efetivo da Polícia Militar. Enquanto a média de policiais militares cedidos a outros órgãos da administração pública é de 2,2% no país, no Rio Grande do Norte esse percentual é de 8%, o que faz dele o terceiro estado com mais policiais cedidos no país. Além disso, numa enorme distorção da carreira militar, há no estado 3,54 sargentos para cada soldado, quando, na teoria, um sargento deve supervisionar a atividade de um grupo de cabos e soldados. Tanto é que, no total Brasil, a média nacional é de 0,83 sargentos para cada soldado PM.
E é com esse quadro institucional que o estado precisa lidar com o dinamismo e a violência do crime organizado, em especial com o fenômeno das facções de base prisional. Nas 27 Unidades da Federação é possível encontrar diferentes denominações de facções. Cada uma conta uma história particular. Ainda assim, elas guardam características em comum. Em geral, são grupos originários dos sistemas penitenciários e cultivados em enfrentamentos contra as forças de controle social; elas são o efeito perverso da política criminal e penitenciária prescrita e reforçada até hoje.
Das prisões, as facções desenvolveram maneiras de exercer o domínio de periferias urbanas. Trabalham criando elos de confiança estabelecidos sem perder de vista hierarquias que precisam ser preservadas e condutas a serem seguidas. Atuam contra dissidências em “tribunais do crime”, exercendo uma justiça fundamentada na ação arbitrária de envolvidos que se transformam em acusadores e julgadores de outros parceiros ou inimigos. Em geral, elas pressionam o poder público por meio de ataques disseminados contra alvos, preferencialmente, relacionados ao patrimônio público e ao transporte coletivo.
Paradoxalmente, se é possível compreender as conexões entre os grupos locais, por que ainda é tão difícil prevenir e enfrentar eventos como os que acontecem agora no Rio Grande do Norte? Porque não existe coordenação federativa ou política nacional que toque nos gargalos regulatórios que regem a segurança pública do país. O que acontece no Rio Grande do Norte é, portanto, um retrato da segurança pública no Brasil.
Nesse vórtice que engole a esperança, nunca haverá dinheiro e efetivos suficientes para dar conta do problema, por mais investimentos que sejam feitos. A questão não é apenas o legado bolsonarista e é muito anterior a ele. Se Bolsonaro radicalizou posições e discursos autoritários, ele nem de longe é a raiz dos problemas da área. Ele é apenas a face mais visível e vil da força e da continuidade dos nossos mais atávicos e antigos traços culturais que estruturam as relações entre Estado e sociedade no Brasil.
Em um adendo, é válido ressaltar que a gestão Bolsonaro representou um enorme e conveniente pacto amoral de mediocridade entre grandes parcelas das elites econômicas, políticas, policiais e militares do país. Porém, na medida em que nossos mais cruéis traços culturais mostraram sua força nos últimos anos, é preciso reconhecer que eles não foram superados com a eleição de Lula.
Os problemas da segurança pública brasileira continuam sendo retroalimentados por estruturas jurídicas anacrônicas que regulam as instituições de segurança pública e, se nada for feito para mudar esse cenário, a crise no Rio Grande do Norte será apenas mais um macabro capítulo do filme de terror e medo que marca a história social do Brasil. Há muito o que ser feito.
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