Ninguém acreditou que Jesus era o filho de Deus quando ele passou pelo mundo da primeira vez. Por que motivo haveriam de acreditar se ele regressasse uma segunda?
Como premissa para um romance, é uma bela ideia. Dostoiévski nos deu um aperitivo disso: em "Os Irmãos Karamázov", essa é a parábola que Ivan conta ao irmão para mostrar como a igreja estabelecida, ciosa do seu poder, jamais aceitaria o regresso de Jesus, mesmo que o reconhecesse como tal.
No mundo real, as consequências desse delírio podem ser ruinosas, sobretudo quando os candidatos a Jesus arrastam os seus discípulos para o abismo. Basta lembrar o caso de David Koresh, líder de uma seita religiosa, que se apresentou como o novo messias.
Muitos acreditaram. Centenas, melhor dizendo, que decidiram ir viver com ele num rancho em Waco, no Texas.
Não correu bem, para usar um eufemismo. Certo dia, a polícia decidiu aparecer porque Koresh, para além da Bíblia, também gostava de colecionar armamento militar proibido. Foi o primeiro confronto dos "davidianos" com a polícia. Morreram quatro agentes.
O segundo confronto, que durou quase dois meses de impasse, terminou em chamas, com o suicídio coletivo de 82 seguidores do culto, Koresh incluso. Desses 82, 28 eram crianças, muitas delas abusadas por Koresh.
O documentário sobre a tragédia pode ser visto na Netflix ("Waco: American Apocalypse") e eu confesso que gostei. Não pela história em si, mas porque ela revela um certo tipo de mentalidade que, infelizmente, se transferiu do fanatismo religioso para a política.
Em 1993, os seguidores de Koresh eram a exceção da regra: devotos, zumbis, alucinados, eles se viam como parte do plano de Deus para redimir a "Babilônia americana".
Como afirma uma das devotas, que aliás escapou com vida e partilha a sua experiência no documentário, ninguém pensava em si próprio como "pessoa". Todos se viam como instrumentos de uma causa maior, razão pela qual estavam dispostos a morrer por ela.
Hoje, os seguidores de Koresh estão por todo lado, o que só confirma a tese de que o declínio das religiões tradicionais cria metástases nos lugares mais improváveis. A seita de Koresh foi apenas uma delas. Exagero?
Não creio. Anos atrás, o escritor Shadi Hamid contava na "Atlantic" que, entre 1937 e 1998, os Estados Unidos eram um caso raro no Ocidente secular: 70% dos americanos ainda frequentavam a igreja, uma cifra impensável na Europa. Nas duas décadas seguintes, o valor desceu para menos de 50%.
Ao mesmo tempo, e durante esse mesmo período, a intensidade ideológica aumentou drasticamente, até chegarmos ao cenário atual, em que os radicais dos dois lados acreditam que estão a combater o demônio, não a discutir as melhores políticas para o país.
O wokismo é essa forma de religiosidade, com suas inquisições acadêmicas e culturais; o nacionalismo da direita, com a apologia do nativismo e do sangue, é outra forma pagã de adoração espiritual.
E, nesse caldo infecto, é justo reconhecer que a direita radical leva vantagem na conquista e no exercício do poder: já teve o seu presidente entre 2016 e 2020 e o presidente, segundo parece, escolheu Waco, no Texas, para o primeiro comício da sua nova campanha eleitoral. Coincidência?
Não há coincidência: escolher Waco seria sempre simbólico. Fazê-lo no 30º aniversário da tragédia tem um significado ainda maior.
E o Donald não desperdiçou a oportunidade. Segundo a imprensa, fez uma apologia da invasão do Capitólio; declarou-se vítima de um sistema corrupto; prometeu morte e destruição caso seja preso; declarou 2024 como "a batalha final" para recuperar a América dos seus inimigos.
Longe de mim declarar que Donald Trump é a encarnação de David Koresh. Pelo contrário: a loucura de Koresh era genuína; em Trump nada é genuíno.
Meu ponto é outro: como um parasita talentoso, ele alimenta e se alimenta do tipo de energias sombrias que, naquele lugar, 30 anos atrás, tomaram proporções dantescas.
Ele sabe, no fundo, que a vontade de crença não desapareceu. E que os votos dos apocalípticos ainda explicam, em parte, sua vantagem em todas as pesquisas sobre o melhor candidato republicano para 2024.
Trinta anos depois de Waco, o fantasma da Babilônia americana ainda é um sucesso de bilheteria.
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