Coronel Fontenelle – o resgate de um gênio
Luis Molist Vilanova
Talvez algumas pessoas com mais de 50 anos fiquem indignadas ao ler que estamos chamando de gênio o militar implacável que, nos anos sessenta, “educava” os infratores do trânsito esvaziando os pneus de seus carros estacionados irregularmente. Mas como qualificar quem criou a estrutura básica do trânsito paulistano que permanece inalterada até hoje? Além de ter conseguido anteriormente organizar o caótico trânsito carioca?
Corria o ano de 1967 e o trânsito de São Paulo era um caos. Apesar do número de 350.000 veículos ser bem menor do que o atual, o sistema viário não recebia os cuidados necessários para comportá-lo. Vias com sentidos de circulação conflitantes, semáforos desregulados, sinalização inexistente e principalmente a ausência da estruturação hierarquizada do sistema viário, transformavam as viagens dos paulistanos num inferno diário.
Pressionado pela situação intolerável, o governador Abreu Sodré chamou Américo Fontenelle, que tinha tido êxito na solução do trânsito do Rio de Janeiro, para diretor do Departamento Estadual de Trânsito. Nascido em 1921, carioca, Fontenelle formou-se oficial-aviador com cursos de aperfeiçoamento nos Estados Unidos, alcançando a patente de coronel-aviador. Entre 1961 e 1965, ocupou vários cargos públicos no Rio de Janeiro: coordenador de transportes, diretor do Departamento de Concessões, presidente da Companhia de Transportes Coletivos e diretor do Serviço de Trânsito. Além disso, foi responsável por planos de trânsito e transporte para Belém e São Luis.
Foram apenas 58 dias. Nesse período, Fontenelle conseguiu estabelecer duas façanhas: ganhar a inimizade de praticamente toda a população paulistana e estruturar o sistema viário da cidade de uma forma lógica.
O coronel criou o projeto “Operação Bandeirantes”, a maior alteração já feita no trânsito da cidade ao longo de sua história.
A Operação Bandeirantes implementou os seguintes projetos:
· criação dos dois anéis que circundam o centro da cidade, denominados Rótula e Contra-Rótula, evitando que uma grande quantidade de viagens precisasse cruzar o centro velho;
· estabelecimento de eixos radiais e diametrais para equacionar as ligações de longa distância e servir de suporte aos ônibus;
· alteração da circulação de 185 vias nos bairros do Brás, Ipiranga, Móoca, Itaim e Vila Mariana, utilizando o conceito de binário (duas vias paralelas, cada uma com mão única num sentido), novidade para a época;
· remanejamento dos terminais rodoviários para desafogar o centro velho;
· instalação de quatro terminais de ônibus urbanos;
· criação de bolsões de estacionamento.
Isso tudo em 58 dias! Como já dissemos, a estrutura básica criada pelo Cel. Fontenelle permanece até os dias atuais como a espinha dorsal do sistema viário da cidade. A Rótula, Contra-Rótula juntamente com os eixos radiais e diametrais, bem como a concepção da circulação nos bairros citados permanecem fiéis à configuração de 1967. O mais assombroso é que tudo isso foi feito numa época em que os ensinamentos da Engenharia de Trânsito eram completamente desconhecidos no Brasil!
Esse é um bom momento para reconhecer o valor de um personagem que auxiliou Fontenelle a traçar seus planos viários: o Sargento Elias. Baiano, com uma larga experiência prática no manejo do trânsito e possuidor de um senso de observação incomparável, o Sargento Elias continuou a planejar o trânsito paulistano durante os anos pós-Fontenelle. Foi uma figura importante na formação dos engenheiros contratados pela recém-constituída CET de São Paulo em 1976 e que foram os pioneiros da disciplina Engenharia de Trânsito no Brasil. Fiz parte desse grupo e aproveito para agradecer-lhe tudo que me ensinou. Fazer vistorias com o sargento significava ter uma proveitosa aula prática e era a oportunidade de associar seus ensinamentos ao conteúdo teórico dos livros ingleses que estudávamos, a melhor fonte bibliográfica na época. A dificuldade nessas vistorias era que, para fazer-lhe companhia, tínhamos de comer torresmos escuros encharcados com óleo às sete da manhã em algum boteco da periferia, mas nada é fácil nessa vida, né?
Voltemos à história do Cel. Fontenelle. Sua fantástica intuição técnica foi prejudicada pela sua, não menor, insensibilidade às reações da sociedade. Seus projetos eram excelentes, mas nunca poderiam ter sido implantados num prazo tão curto.
Homem de convicções arraigadas, disciplinador até a medula dos ossos, Fontenelle não aceitava que suas ideias fossem questionadas e muito menos desobedecidas. Não podemos esquecer que estávamos sob os efeitos do golpe de 64 e que muitos militares queriam resolver os problemas sociais a fórceps. O coronel determinou a seus homens, por exemplo, que esvaziassem os quatro pneus dos veículos estacionados irregularmente, fora dos bolsões apropriados e do lado direito da via ou em fila-dupla. Costumava dizer: “Sei esvaziar pneus e ser violento”. Não era de sua índole permanecer dentro do gabinete, despachando; preferia ir pessoalmente fiscalizar na rua o que estava acontecendo.
A implantação simultânea e apressada de vários projetos de grande porte não poderia ser bem sucedida, mesmo considerando-se que eram intrinsecamente corretos. Enormes congestionamentos se formaram, os itinerários tradicionais das pessoas foram bloqueados do dia para a noite e não houve a divulgação adequada para as pessoas se informarem sobre os novos caminhos.
Os meios de comunicação passaram a atacar violentamente o novo diretor de trânsito. Era chamado de coronel Fon-Fon. Durante a entrega do tradicional prêmio Roquete Pinto, Murilo Leite, superintendente da Rádio Bandeirantes, cara-a-cara com o governador, lançou-lhe a pergunta: “- Governador Sodré, o senhor mandou fazer um exame da cabeça do coronel?”
Durante um programa de debates da TV Paulista chamado “Roleta Paulista”, o diretor foi impiedosamente criticado pela deputada Conceição da Costa Neves. Se Fontenelle recorria à coação física, Conceição Santa Maria, como era conhecida, possuia algo muito mais venenoso: a truculência verbal. Alguns dias depois, pressionado pela opinião pública, o governador Abreu Sodré achou mais fácil destituí-lo do cargo.
Fontenelle continuou, mesmo assim, a ser procurado para dar entrevistas. Alguns dias depois, no programa Advogado do Diabo, quando defendia-se das acusações que eram feitas contra ele e sua equipe, foi fulminado por um ataque cardíaco. O coronel de 46 anos tombou a cabeça na mesa, já sem vida, na frente das câmeras.
Por que será que o responsável pela organização básica do trânsito de São Paulo foi totalmente esquecido? E pior, totalmente esquecido pelos técnicos de trânsito? Talvez a resposta esteja nos métodos pouco convencionais que usava; talvez na associação que injustificadamente fazemos do coronel com a ditadura militar de triste memória; talvez no inconformismo dos engenheiros de trânsito que não se sentem muito à vontade para reconhecer que o passo mais importante da história do trânsito paulistano foi dado por um homem sem nenhuma formação acadêmica e que não é seu colega. Eu, pessoalmente, acho que é um pouco de cada, mas que o motivo principal é a característica que nós brasileiros ainda temos de não cultivar nossa história.
Entretanto, qualquer que seja o motivo, nada poderá justificar a ingratidão com o homem que modernizou nosso trânsito. A única homenagem que conhecemos foi dar seu nome a uma rua de 500 metros na Penha, bairro da zona leste paulistana. Esse texto pretende ser um pequeno tributo a um homem que acreditava nas suas idéias, tinha capacidade para realizá-las e morreu no campo de batalha ao defendê-las.
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