O português brasileiro tem um traço marcante: nós misturamos tu e você como se fossem arroz e feijão. "Você sabe que eu te amo" é o modo normal pelo qual a maioria da população (variações regionais à parte) expressa seu amor —pelo menos quando ele é sincero.
A correção clássica de "tu sabes que te amo" pode ter um adepto ou outro, mas essa frase sussurada no ouvido deixaria a maioria dos nativos de pé atrás. "Você sabe que eu a (o) amo", nem se fala. Alguém duvida que o coração fale mais alto do que a gramática normativa?
Corre por aí a lenda de que isso é feio, uma vergonha. Estaríamos diante de mais uma prova de que somos todos errados, pois nem mesmo a nossa língua conseguimos falar direito, ao contrário dos portugueses.
Trata-se de uma asneira transatlântica. Vergonha é que tanta gente dê crédito a ela, num mecanismo neurótico pelo qual cuspimos no espelho todo dia como Narcisos às avessas (obrigado, Nelson) por falarmos uma língua que não podemos deixar de falar, visto ser a nossa, enquanto suspiramos por uma que ninguém fala, uma vez que não existe.
O que os patrulheiros da normatividade denunciam como "mistura de tratamento" está consolidado na norma culta urbana brasileira há muitas gerações.
Deriva de um rearranjo pronominal em que "você" tomou em grande parte o lugar da segunda pessoa do singular, que no entanto manteve seu prestígio no papel de pronome oblíquo, "te" –mais funcional na oralidade do que "o" e "a". (O "tu" continua vivo em parte do país, mas quase sempre conjugado na terceira pessoa, "tu vai".)
Se tudo isso se encontra além da consagração quando o falante está de bermuda –isto é, no discurso informal, familiar–, ainda provoca estranhamento em situações de maior vigilância, sobretudo por escrito.
Sim, convém saber a hora de relaxar com a mistura de tratamento (mensagens de WhatsApp costumam estar incluídas aqui). E também a hora de seguir à risca, para poupar dor de cabeça, o que dita a gramática normativa.
Isso ocorre porque a distância entre escrita e oralidade, que existe em qualquer língua, é especialmente grande no português brasileiro. Nossos tradutores precisam quebrar a cabeça diante de frases banais em diálogos literários, divididos entre o que soa formal demais ao ouvido e o que parece informal demais ao olho.
O erro está em supor ser possível "corrigir" esse descompasso com a imposição da escrita sobre a oralidade. Nunca vai acontecer. Se um dos polos ceder, como é provável que um dia ceda, será o da velha normatividade.
Foi o que aconteceu com a mistura de tratamento em Portugal, em cuja direção nossos normativos gostam de se ajoelhar. A diferença é que lá pouca gente acha que isso seja um problema.
Uma frase como "Deixem aqui as vossas malas", com sua mistura de "vocês" com o pronome possessivo da velha segunda pessoa do plural (vossas), está consagrada na fala e na escrita portuguesa.
Se aqui o relativo desuso de "tu" provocou a mistura, lá isso se deveu ao que o linguista Fernando Venâncio chama de "drástica redução nos usos de vós sujeito, gradualmente substituído por vocês".
A semelhança dos casos é gritante. No entanto, acrescenta Venâncio, "no contexto português europeu, a noção de ‘mistura de tratamento’ é praticamente desconhecida". Ninguém perde o sono ou se ajoelha no milho por causa disso.
Se posso te dar um conselho, você também não deveria.
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