sábado, 18 de março de 2023

Demétrio Magnoli Al Capone, Bolsonaro e nós, FSP

 Al Capone acabou em Alcatraz pelo menor de seus crimes: evasão fiscal. Os crimes comuns que pesam sobre Jair Bolsonaro no caso das joias pouco significam perto dos crimes constitucionais praticados sistematicamente ao longo de seu mandato. Mas delineia-se um cenário no qual o ex-presidente terá o destino do mafioso americano. Seria uma forma de misturar, no liquidificador da demagogia, impunidade com inelegibilidade.

Durante a pandemia, Bolsonaro sabotou as restrições sanitárias e a campanha de vacinação, operando contra o direito coletivo a saúde pública. Seu governo estimulou a invasão de terras indígenas por garimpeiros e madeireiros, desafiando o compromisso estatal de proteção desses povos. Durante quatro anos, o presidente mobilizou seus apoiadores em persistente agitação golpista, que culminou no 8 de janeiro de Brasília, traindo o dever de respeito às instituições democráticas. Contudo, ao que parece, responderá apenas por peculato, descaminho e abuso de poder.

O ex-presidente Jair Bolsonaro, durante evento na Flórida, em fevereiro - Marco Bello - 3.fev.23/Reuters

A "solução Al Capone" tornaria Bolsonaro inelegível, por decisão do TSE, com base na Lei da Ficha Limpa. Seria um típico jeitinho brasileiro –isto é, um artifício para ignorar os princípios que sustentam a ordem democrática.

A tão celebrada Lei da Ficha Limpa, adorno da moda entre tantos progressistas, jamais serviu para reduzir a corrupção na máquina pública. Por outro lado, circunda um pilar crucial da democracia: a soberania popular. A lei confere a procuradores e juízes a prerrogativa de vetar candidaturas. Os vetos serão tão mais arbitrários quanto maior a contaminação político-partidária do Ministério Público e do Judiciário.

O caso Lula ensinou a lição definitiva. Moro e seus comparsas procuradores certamente queriam encarcerar o líder petista, mas nunca tiveram a segurança de que poderiam fazê-lo, pois o desenlace dependia das oscilantes opiniões do STF sobre a prisão em segunda instância. Entretanto, os conspiradores lava-jatistas controlavam os meios para obter seu objetivo principal: a inelegibilidade do ex-presidente. Para tanto, bastava uma sentença de um colegiado –e eles conseguiram duas. Sem a anulação dos processos por um STF cercado pelas revelações da Vaza Jato, a vontade popular expressa em 2022 teria sido irremediavelmente calada.

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Direitos políticos constituem a alma da cidadania. Não se pode cassá-los sem amputar a própria cidadania. Os eleitores têm o direito exclusivo de escolher seus representantes –o que abrange, inclusive, condenados em sentença definitiva. Um deputado eleito enquanto cumpre pena de prisão? Sim, se os eleitores aceitarem a consequência de que seu representante não assumirá o mandato. A hipotética inelegibilidade de Bolsonaro implicaria, como no caso de Lula, a cassação da vontade de parcela significativa dos cidadãos.

Por outro lado, enterrar na cova do esquecimento os crimes constitucionais de Bolsonaro equivale a assinar um cheque em branco para a delinquência antidemocrática dos detentores de poder, no presente e no futuro. E é isso que vai se desenhando, a julgar pela postergação infinita dos procedimentos judiciais necessários.

"Não vamos atirar pedras", respondeu o ministro do STF Luís Roberto Barroso quando indagado, no 9 de janeiro, sobre a responsabilização do ex-presidente pela tentativa de acender a faísca do golpe de Estado. A senha indica um desejo de grande parte da elite política. Bolsonaro leve e solto, impune, mas transferido ao gueto diáfano dos que não podem disputar eleições –eis a forma ensaiada de uma "reconciliação nacional".

Al Capone era um criminoso comum. Colocá-lo atrás das grades, sob uma sentença qualquer, servia ao interesse público. Bolsonaro pertence a categoria diferente. A impunidade de seus crimes constitucionais só serve, no fim das contas, aos interesses de longo prazo do bolsonarismo.

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