Mesmo com o menor efetivo do século, pela primeira vez abaixo dos 80 mil agentes, a Polícia Militar de São Paulo mantém um contingente para servir autoridades públicas acima do necessário previsto e que seria suficiente para prestar segurança a uma cidade com cerca de 800 mil habitantes.
Dados inéditos obtidos pela Folha revelam que a estrutura da PM prevê efetivo de 93.802 agentes, mas tinha 79.392 em janeiro –déficit de 15%. Já as equipes dispostas a servir políticos e outras autoridades, as Assessorias Policial-Militares, previam quadro de 834 PMs, mas abrigavam 905 –8,5% acima.
Apenas 15 municípios paulistas, demonstram os números, têm efetivo superior a 900 policiais --ou 2,3% dos 645 existentes no estado, somando nesses cálculos as equipes da Polícia Rodoviária e Ambiental.
O efetivo das assessorias chega a superar em quase 80% ao previsto. É o caso da segurança do prefeito Ricardo Nunes (MDB), cujo quadro prevê 39 agentes, mas abrigava 70 PMs no início deste ano.
Segundo a PM, 517 cidades de SP têm efetivo menor do que 70 PMs —ou 80% do estado. Assim, oito em cada dez cidades paulistas têm menos policiais militares patrulhando as ruas do que o total de PMs destinados a proteger o prefeito da capital –o efetivo da GCM (Guarda Civil Metropolitana) é de 5.766 integrantes.
Ao todo, a PM mantém 12 assessorias. Além da prefeitura, há equipes no Tribunal de Justiça de São Paulo, na Assembleia Legislativa, na Câmara Municipal, no Tribunal de Contas do Estado, na Procuradoria Geral de Justiça (cúpula do Ministério Público), entre outros (veja quadro abaixo).
O decreto 65.096, de 2020, prevê quais órgãos ou instituições têm direito a PMs como seguranças, mas, segundo oficiais ouvidos pela reportagem, é o Estado-Maior da corporação quem define o efetivo. O quadro atual, segundo a Secretaria da Segurança, é da gestão anterior (2019 a 2022).
Nessa tropa de policiais afastados do policiamento não está incluído o grupo emprestado a órgãos como Senasp, Câmara Federal e STF (Supremo Tribunal Federal). A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) não quis informar à Folha esse número, mas estima-se ser superior a 50 policiais.
Também não inclui os 407 policiais da Casa Militar, cuja principal função é dar segurança ao Palácio dos Bandeirantes e ao governador. Ela é excluída dessa conta porque a Casa Militar também engloba integrantes da Defesa Civil e, assim, tem papel relevante na prevenção e assistência em desastres.
Já o efetivo dessas assessorias é, para especialistas ouvidos pela Folha, desnecessário, oneroso e, muitas vezes, usado por oficiais para se afastarem dos problemas inerentes ao trabalho de rua e, ainda, uma forma de a cúpula da PM agradar outras autoridades.
Para o coronel reformado da PM José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de segurança, embora as assessorias existam há bastante tempo, não há nenhuma justificativa para a maioria delas, a exemplo da Assembleia Legislativa, Tribunal de Contas e a própria Prefeitura de São Paulo.
"A prefeitura da capital não tem necessidade de um PM sequer. Deveriam sentar com o prefeito e dizer: ‘olha, o senhor é muito meu amigo, mas se precisar [da PM], nós mandamos [uma viatura] em cinco minutos na porta da sua casa, ou na prefeitura. Mas tira todo mundo."
Ainda segundo ele, estudos apontam que cada PM custa, ao contribuinte, entre cerca R$ 100 mil a R$ 150 mil ao ano. Assim, essas assessorias custam mais de R$ 100 milhões ao ano à população paulista.
"Demora um ano para formar um soldado, quatro anos para formar um oficial, esperando que esse policial vá proteger a população onde deveria, que é lá na rua. De repente, ele vai para Assembleia Legislativa, para a prefeitura. Vai fazer o que lá? Tem um colega que entrou no TCE como tenente e saiu de lá como tenente-coronel. Fez a carreira toda lá", disse o oficial.
Para a antropóloga Jacqueline Muniz, essa quantidade de policiais fora do policiamento de rua demonstra que a discussão sobre o aumento dos efetivos das polícias precisa ser precedida da análise dos modelos de gestão adotados pelas corporações, que devem privilegiar a função principal.
"É claro que está errado. O que adianta eu ficar enfiando polícia [para recompor o efetivo], para quê? Pra polícia virar mercadoria política na mão das chefias? É um agradinho para lá, e um agradinho para cá. Então, a polícia está em tudo quanto é lugar, menos na rua atendendo o cidadão."
Ainda segundo Jacqueline, ex-diretora do Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública, do Ministério da Justiça (Senasp), a polícia precisa ocupar o espaço dela —ou dará lugar a outros agentes.
"As polícias no Brasil precisam retornar a atividade-fim. Elas precisam voltar a fazer policiamento, para que o crime não as substitua, empresas privadas clandestinas não as substituam", afirmou ela.
Para o advogado João Carlos Campanini, ex-oficial da PM de SP e especialista em direito militar e segurança pública, há um claro desvio de finalidade nessas assessorias.
"Entendo que a atividade-fim, que é o policiamento ostensivo e preventivo, está ficando em segundo plano. Há um alto número de policiais militares desempenhando funções diversas, o que penso ser indevido, podendo esbarrar em evidente desvio de finalidade", disse.
Além das assessorias, a PM poderia repensar a necessidade de outros grupamentos que, para o especialista, só servem para consumir efetivo de forma desnecessária. Ele cita como exemplo o Corpo Musical da PM, com 141 policiais, e o 2º Batalhão de Choque, com 547 agentes, bem como o Regimento da Cavalaria, com 423, ambos empregados, geralmente, em eventos esportivos de entidades privadas.
ÓRGÃOS AFIRMAM QUE SEGUEM A LEI
A gestão Tarcísio de Freitas não deu explicações dos critérios utilizados sobre o efetivo destinado ao prefeito da capital. Já a Prefeitura de SP informou que "a cessão de policiais militares para servir na administração municipal segue a legislação em vigor e considera a matriz de risco de seus dignitários".
Segundo o órgão, os PMs "atuam na segurança do prefeito e de seus familiares, bem como no planejamento e prevenção de riscos", sem detalhar quais.
"Além disso, os servidores militares são responsáveis pela integração da segurança urbana da capital, exercida pela GCM [Guarda Civil Metropolitana], com a SSP [Secretaria de Segurança Pública], para planejamento de grandes eventos e ações na cracolândia", afirma o texto.
Sobre as assessorias em geral, a Secretaria da Segurança informou seguir legislação específica e que as atividades "desenvolvidas envolvem desde a segurança física de instalações e a segurança pessoal de autoridades e, inclusive, contribuindo com o Sistema de Persecução Criminal."
"Somente em 2022, a Assessoria Policial-Militar do Tribunal de Justiça realizou a escolta de 6.705 presos em audiências nas Varas Criminais e do Júri e de 25.253 presos em audiências de custódia, no Complexo Judiciário Ministro Mário Guimarães, o maior Fórum da América Latina", diz trecho da nota da Secretaria da Segurança, sem especificar quantos dos 294 policiais são empregados neste trabalho de escolta.
Conforme reportagem da Folha, a Polícia Penal de SP, também responsável pela escolta de presos, tem 29.241 policiais, efetivo superior ao da Polícia Civil, que, no final de 2022, tinha 26.350 agentes.
Sobre a Casa Militar, o governo paulista informou também seguir a legislação e concentra o efetivo da Defesa Civil, "órgão que tem a premissa de proteger a vida, por meio de ações de prevenção, mitigação, preparação e recuperação voltadas à proteção e defesa civil".
Por fim, a Segurança Pública informou que "a atual gestão trabalha para recompor os efetivos com a realização de novos concursos públicos". O governo Tarcísio de Freitas não fez menção nas notas sobre uma possível intenção de reduzir o tamanho das assessorias.
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