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ercado por toras de bambu seco, um quintal de terra batida, cheio de pedras, plantas e árvores frutíferas. Quase encostada na cerca, uma pia sustentada por quatro ripas de madeira. A água é armazenada em uma panela grande de alumínio sem tampa, e, quando é utilizada, passa pelo buraco do ralo e cai diretamente na terra. Não tem cano nem torneira. O movimento de quem lava os pratos ali envolve certa destreza e alguns desvios. Se fizer muita força ou colocar muito peso, tudo pode ir ao chão num piscar de olhos. É preciso distanciar o corpo que pode ficar inteiramente molhado. A pia fica em frente a uma pequena casa feita de taipa (barro e pedaços de madeira), com uma portinhola. Dentro dela, um buraco no chão. Esse espaço é conhecido, na baixada maranhense, como sentina. Um banheiro sem vaso algum, apenas o buraco cavado no chão, do lado de fora das casas de quem não tem condições financeiras de ter uma construção de tijolos, vaso, chuveiro e pia. O cheiro de fezes e urina é forte e desagradável. Sair de casa no meio da noite para ir à sentina é quase assustador. Por isso, a agricultora aposentada Maria Domingas Silva, 57, tinha um sonho: ter seu próprio banheiro.
Pelo menos 5 milhões de brasileiros vivem em moradias sem banheiro, esse é um dos problemas mais primários associados à falta de saneamento básico. Em 2019, segundo dados do Instituto Trata Brasil, 2,5 milhões de mulheres brasileiras estavam nessa situação, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Domingas foi uma delas. A agricultora mora com seus quatro netos, Dayla Cristina Silva, 14, Carlos Eduardo Silva, 10, Isaac Silva Leite, 7, Angelo Guilherme Silva, 4, em um distrito da cidade maranhense de Pinheiro, a cerca de 140 km da capital São Luís. Pinheiro tem aproximadamente 80 mil habitantes. Paraíso, o distrito onde ela mora, não passa dos 5 mil. Não há abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta e tratamento dos resíduos sólidos e drenagem das águas pluviais. Para beber água, os moradores precisam recorrer a poços, caixas d’água. Sem esgoto, utilizam as chamadas fossas negras, buracos cavados no chão, revestidos ou não, que acumulam os dejetos da residência. Em outras casas, os dejetos são simplesmente enterrados.
Quando Domingas construiu sua casa, deixou o espaço do banheiro para, no dia em que tivesse condições, construir um. Foi o que aconteceu em 2020. “Eu pensava demais em construir meu banheiro, era meu sonho. Assim que começou a Covid, eu adoeci e fiquei muito fraca. Quando eu precisava fazer necessidades, meu filho me carregava para a sentina. Eu mal conseguia andar, quanto mais ficar acocorada. Meu pai adoeceu também, e eu tive que fazer um banquinho e colocar na sentina, pra ele conseguir utilizar. Quando terminou a construção, foi uma alegria imensa. Uma conquista muito grande, boa demais. Mesmo ele sendo pequeno, é uma conquista.”
O banheiro novo tem o chão e metade das paredes revestidas de azulejo. O vaso sanitário e a pia ficam frente a frente, a poucos centímetros de distância. Para chegar ao chuveiro, dois passos são o suficiente. Uma cortina de plástico divide o espaço. Apesar da conquista, o destino dos dejetos é quase o mesmo que na sentina. Uma fossa negra, construída a poucos metros do poço de onde a família obtém água. “A gente manda cavar um buraco bem grande, às vezes bota tijolo para evitar enxurrada e coloca os canos do banheiro para cair lá”, contou ela à piauí. Como a fossa só é parcialmente revestida, muita água suja escoa para a terra ao redor do buraco, que acaba armazenando apenas os dejetos sólidos. Isso prolonga o tempo entre um esvaziamento e outro. Mandar esvaziar a fossa é algo fora do orçamento de Domingas. “Para pagar o carro [que seca a fossa], é uns 300, 350 reais. Eu sou aposentada, recebo benefício, mas para pagar o carro, basicamente a pessoa fica sem comer direito, o dinheiro vai todinho para isso”, explica. No inverno, com as chuvas, a limpeza precisa ser mais frequente. Ela tem que escolher entre pagar o carro limpa-fossa ou tampar o buraco e cavar outro, alternativa comum na vizinhança. “Para cavar a fossa, é 10 reais o palmo. Só que fica mais caro porque precisa comprar cimento, tijolo. Nada é barato e tudo é por nossa conta. Não tem ninguém que ajude, nem prefeito nem ninguém.”
As más condições de moradia e saneamento afetam, de forma decisiva, a vida e a saúde das mulheres. De acordo com o relatório das Nações Unidas, elas executam o triplo de tarefas domésticas e de cuidado que os homens. E são o grupo mais afetado com doenças relacionadas à inadequação do acesso à água, ao esgotamento sanitário e à higiene, uma vez que estão em maior contato físico com a água contaminada e os dejetos. Em 2019, os dados da PNADC apontaram que as mulheres chefiavam 48,2% das moradias no país.
De acordo com um estudo do Instituto Trata Brasil, feito com dados do Ministério do Desenvolvimento Regional, 100 milhões de brasileiros, 47,6% da população, vivem sem coleta de esgoto. Do que é coletado, apenas metade é tratado, o que equivale a 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento despejadas na natureza diariamente. Entre os piores municípios, estão principalmente cidades das regiões Norte e Nordeste e do estado do Rio de Janeiro.
Os números mostram que o problema está longe de solução. Antes de chegar ao final, o governo Bolsonaro destinou à área de saneamento básico em 2023, somando os repasses para o Ministério da Saúde e Ministério do Desenvolvimento Regional, 262 milhões – só 2% do necessário para cumprir a meta de universalização do serviço.
Ogoverno Bolsonaro também cortou 91% no orçamento destinado a projetos de saneamento básico do Ministério de Desenvolvimento Regional. Em 2022, o ministério teve 296 milhões de reais disponíveis para investir em saneamento. Neste ano, primeiro do novo governo Lula, o órgão terá 28 milhões. O valor destinado a programas de saneamento via Codevasf – ou seja, na área de atuação da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba – foi praticamente zerado: caiu de 80 milhões de reais para 1,3 milhão. Para apoio à implantação, ampliação e melhorias do Sistemas de Abastecimento de Água nessas áreas, o governo deixou escassos 5 mil reais.
Com isso, fica ainda mais distante a possibilidade da universalização do serviço, prevista para 2033 – sob a condição de que os investimentos fossem realizados. “O investimento em saneamento não gera resultados imediatos. É um projeto de longo prazo. Para se tornar efetivo, para resultar em água na porta das pessoas, por exemplo, precisa de um tempo muito longo. Esgotamento sanitário é mais ainda: no mínimo cinco anos”, explica Ana Lucia Britto, professora associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante do Observatório dos Direitos à Água e do Saneamento (Ondas).
Na avaliação dela, a gestão Bolsonaro deixa uma espécie de herança maldita para o setor de saneamento que surtirá efeito nos próximos anos. Isso significa que mesmo que o investimento volte a subir a partir de 2024, durante o governo Lula, há o risco de que o governo acabe sem apresentar resultados efetivos de melhoria no saneamento básico. Nos anos anteriores, desde 2015, o valor de investimento também ficou aquém do estipulado pelo Plano Nacional de Saneamento Básico, mas o corte feito pelo governo Bolsonaro foi o maior desde que o plano foi lançado. “Toda a perspectiva de planejamento em saneamento foi abandonada nos quatro anos de governo Bolsonaro. Vai ser preciso reconstruir toda a política que foi interrompida”, diz a pesquisadora.
O esgotamento sanitário, se comparado ao acesso à água, traz um desafio maior, especialmente porque o Brasil parte de um patamar de acesso ainda muito baixo, mesmo em áreas urbanas. “Toda política do governo Bolsonaro foi voltada para a concessão privada, mas ainda precisamos cobrir um déficit muito elevado, e esse é um investimento custoso”, diz ela. “O setor privado não tem capacidade de fazer isso sozinho, tem que ter recurso público. E é um direito básico, não dá para adiar ou não fazer, é obrigação do governo atender a população.” Um levantamento divulgado em dezembro passado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional mostrou que pelo menos 1.937 municípios brasileiros não têm rede coletora de esgoto. Essas cidades não são atendidas nem pela iniciativa privada nem pelo poder público e usam soluções alternativas, como fossas sépticas, fossas rudimentares, galerias de águas pluviais e lançamento de esgoto em curso d’água.
Além de caro, o investimento em saneamento básico raramente traz dividendos políticos imediatos. Para Brito, isso talvez ajude a explicar a falta de interesse político em investir num setor tão fundamental. “Construir uma praça ou asfaltar uma rua é mais rápido”, diz ela.
Ao todo, o setor de saneamento rural teve um corte de quase 60% no orçamento de 2023. O termo “rural” no setor de saneamento não se refere apenas a comunidades rurais, mas a qualquer cidade de pequeno porte, fora das regiões metropolitanas, que opera com um sistema de saneamento diferente dos grandes centros urbanos – para ser compatível com a capacidade de pagamento da população. “Se não quisermos ver uma tragédia de saúde pública daqui a uns anos, temos que agir imediatamente no saneamento rural”, diz o advogado Wladimir Ribeiro, um dos especialistas que elaboraram a Lei Nacional de Saneamento Básico de 2007.
O órgão responsável pelo saneamento rural era a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), extinto no começo deste ano pelo governo Lula. Para Ribeiro, era uma morte anunciada. Apesar de ter sido loteado e degradado ao longo dos últimos anos, o órgão cuidava do saneamento de pequenos municípios e comunidades rurais – locais que não têm capacidade institucional para organizar o serviço. A Funasa é herdeira do antigo Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), que, segundo Ribeiro, foi “a melhor experiência de saneamento do mundo em termos de política pública”, responsável por construir do zero sistemas de águas em cidades espalhadas no interior do país até a década de 1990.
Cidades consideradas “rurais”, como a de Pinheiro em que vive Domingas, concentram o maior déficit de saneamento do país e, portanto, deveriam ser prioridade das políticas públicas – especialmente porque a iniciativa privada raramente atua nessas regiões, já que a necessidade de investimento é maior, dizem os especialistas ouvidos pela piauí. “Fazer saneamento numa comunidade indígena, num município da Amazônia, numa cidade do interior é muito mais difícil e caro que numa região metropolitana”, diz Ribeiro. O novo governo ainda não definiu se algum órgão específico cuidará do saneamento rural depois que a Funasa deixar de atuar no interior do país. “Se nada for feito, não duvido que, daqui a alguns anos, volte a subir enormemente o número de casos de mortalidade materna e infantil nessas regiões”, prevê Ribeiro.
Em 2020, Bolsonaro sancionou o Novo Marco Legal do Saneamento, que, na prática, fortaleceu a atuação de companhias privadas no setor, mas manteve o prazo de universalização para 2033. Na avaliação do advogado Wladimir Ribeiro, são palavras ao vento. “Quando você fala que em 2033 vai universalizar, sem considerar as condições de investimento, você trabalha de maneira irrealista e demagógica”, diz.
Nesse ritmo, Domingas e seus quatro netos continuarão sujeitos à contaminação por doenças de veiculação hídrica e sem perspectiva de mudança. Em 57 anos de vida, a aposentada nunca conheceu outra realidade. Antes de se mudar para o Paraíso, há cerca de 30 anos, morava em outro povoado chamado Santa Rosa. “Lá é do mesmo jeito daqui, fossa. Na verdade, é ainda pior. Muitas pessoas não têm condição nem de construir a fossa, então têm que fazer as necessidades no mato mesmo. No Paraíso sempre foi assim, nunca melhorou. Os políticos já falaram, mas nunca fizeram nada. Sempre foi desse jeito e acho que não vai mudar nem tão cedo.”
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