Narrar uma história de morte é quase sempre morrer um pouco. Morre-se na entrevista, quando o ouvido apurado para e chora, mesmo sem o outro saber. Depois, um buraco extenso se abre. É como se minhas palavras não conseguissem alcançar a dor diante de uma faca que encontra uma professora ou um tiro que atravessa um jovem na rua.
Quando estou fazendo uma cobertura intensa sobre alguma morte, o corpo endurece diante da necessidade da entrega, do deadline correndo em contagem regressiva. A famosa hora da morte do jornalismo.
Quase nunca consigo sentir tudo na hora. Quando a matéria é publicada ou vai ao ar, aí é que solto os ombros e, no intervalo entre uma entrevista e outra, permito-me o deságue. Amanhã é outro dia. E a morte nos ronda todos os dias. Mas como falar de morte constantemente e continuar a me comover, lamentar, sentir; ou como não sentir tanto a ponto de adoecer?
Sou jornalista há pouco mais de 12 anos. Nesse tempo, escrevi sobre muitas mortes. Reais e simbólicas. E sobre os mais diferentes tipos de luto. Foram mães que perderam os filhos para a violência de Estado; pessoas que sobreviveram à pandemia e viram os seus partindo; mulheres que vivenciaram e perderam entes queridos na Ditadura Civil-Militar; tragédias e acidentes; as mortes por conta do racismo estrutural ou transfobia em nossa sociedade.
É uma conta difícil, complexa. Não existe resposta certa. Nos anos de 1990, era comum (e triste) nas periferias ter perto de casa a chamada "rua da morte". A minha era caminho da escola e não me esqueço do dia em que havia três corpos cobertos na ponta da rua. Ter se tornado uma rua segura não mudou a alcunha de perigosa. Até hoje evito passar por lá.
Eu tinha 17 anos quando assisti a um documentário sobre a Vala Clandestina do Cemitério Dom Bosco, que por coincidência ou não está situado em Perus, bairro onde nasci, cresci e ainda vivo, na região noroeste da periferia de São Paulo.
Meu tio estava sentado ao meu lado, quando disse que, mesmo sem ele querer, colaborou tanto na construção da vala, quanto em sua abertura e descoberta em 1992, durante o mandato de Luiza Erundina como prefeita da capital paulista. Está vendo a foto de capa dessa reportagem? Ele é o quarto homem que aparece segurando os sacos de ossadas.
Naquele dia, tudo fez sentido. Desde pequena, eu frequentava o cemitério com meus pais. Na ala esquerda, em uma placa vermelha de letras brancas, a frase de Luiza Erundina dizia assim:
"Os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do Estado Policial, dos esquadrões da morte e, sobretudo, os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos".
Esta placa sempre esteve lá, principalmente no Dia de Finados, quando a primeira missa dentro do cemitério também fazia uma homenagem a todas as vítimas da Ditadura Civil-Militar encontradas naquele lugar.
Ao escolher ser jornalista e escritora, escolhi também contar essas histórias. Em 2020, publiquei nesta Folha uma reportagem ouvindo os moradores de Perus sobre esse período. E para narrar a morte não tem muito jeito, é preciso vivê-la um pouco. Entrar em contato. Seja nas informações gerais – onde morreu, por que morreu, quando morreu – ou na profundidade do sentimento de quem fica. De quem sobrevive. De quem entrevistamos.
Muitas vezes, na melhor das intenções de narrar um fato com precisão e rapidez, não há tempo suficiente, nem espaço para chorar. Ao cobrir o fato, essas mortes também nos pegam em lugares diferentes: na morte recente de uma pessoa querida, na maternidade que compartilhamos com quem acabou de perder um filho, na tristeza por uma tragédia que conhecemos de outros tempos.
Tenho parado para pensar em todas as vezes que tive que noticiar uma morte, na imprensa ou na minha família. Embora existam dicas sobre como fazer isso, não há um manual de redação que dê conta de ensinar como informar o fim. Ninguém consegue medir a força e dor com que uma morte impacta cada um.
Mas há empatia. Há o ato de se colocar no lugar do outro e imaginar: como eu gostaria de receber essa notícia? Já parou pra pensar em quais perguntas você acharia cruéis, inadequadas em caso de uma grande perda? Quais cuidados você gostaria que tivessem em uma entrevista sobre ela?
Em 2021, entrevistei nossa hoje Ministra de Relações Étnico-Raciais, Anielle Franco. Ela amamentava enquanto conversava comigo. Antes da prosa, fiquei em dúvida sobre o que perguntar. Quantas vezes aquela mulher já não teria respondido as mesmas perguntas, mexendo de novo em sua dor?
Tentei caminhar pela memória. As memórias de sua infância, onde inevitavelmente também mora sua irmã. As brincadeiras no Complexo da Maré, o apoio incondicional da mais velha em tudo.
Obviamente, a dor também poderia ser despertada nessas lembranças. E foi. E é. Mas antes mesmo de falar de morte, falamos de vida e legado. E, pra mim, tudo que diz sobre morte na verdade é uma tentativa de continuarmos vivos. "As mulheres negras não podem virar protagonistas só depois de mortas" é a frase de Anielle que se tornou o título da reportagem decorrente da entrevista.
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Em 2020, fui uma das escritoras do livro Heroínas dessa História - mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura, da Editora Autêntica. Era um projeto do Instituto Vladimir Herzog. Minha missão: contar a história de vida de Damaris Lucena, uma mulher negra, maranhense, que viveu a Ditadura Civil-Militar no Brasil.
Embora a ideia fosse falar sobre vida, o verbo viver sempre foi permeado por muitas mortes na trajetória de Damaris. Já com mais de 90 anos e acometida por um câncer, ela me concedeu essa entrevista aos poucos. Pedia para se deitar ou sentar, porque o corpo cansava. "Você já levou choque, assim, choque no ferro?", me indagou. "Quem leva muitos choques fica com labirintite. Por isso preciso deitar".
Não havia o que ser dito sobre isso. Apenas acolher, respeitar e, talvez, tentar imaginar um pouco do que ela passou. Ao longo da entrevista, ela narrou com detalhes como seu esposo, Antonio Lucena, foi assassinado. Ele foi morto em sua frente e na frente dos filhos. Os detalhes contados pela testemunha ocular, viva e emocionada daquela morte estava na minha frente e me fez me sentir dentro daquela cena.
O que dizer a uma senhora de 90 anos, que foi torturada até perder o seu marido brutalmente e ser obrigada a se exilar do seu país? Não tinha o que dizer e eu não disse. Acredito que, muitas vezes, o silêncio é a palavra mais importante com que se pode acolher alguém que viveu uma tragédia assim.
Mais do que isso, na nossa profissão é preciso estar atento ao durante e também ao depois. Como descrever essa morte sem estereotipar essa pessoa? Como narrar sem colocar qualquer familiar como culpado ou em sofrimento mais uma vez? Como honrar, ao mesmo tempo, fatos e sentimentos?
Depois da última conversa com a Damaris, fiquei dias pensando em como eu escreveria sobre o episódio. Eu não queria ser sensacionalista, tampouco rasa. O objetivo do livro era contar história de vida, mas a morte era um aspecto central na vida daquela mulher. Decidi que aquele episódio deveria estar, sim, em meu texto. Minhas editoras concordaram. Seguimos. Mas eu ainda não conseguia sair do lugar. O prazo estava acabando, o texto estava praticamente pronto, mas não à altura do que Damaris havia narrado.
Acredito que textos são como massa de pão. É preciso deixar dormir de um dia pro outro, para tomar forma. Fiz isso. Dormi. E nesse dia sonhei com toda a cena que Damaris tinha me contado. A diferença é que o quintal da casa era o meu. E o homem caído no concreto não era seu marido, mas meu pai. A sua dor me aproximou da minha perda (que vocês podem ler aqui em ‘A urgência de vida em mim’). Depois do sonho, eu finalmente escrevi o trecho que faltava e entreguei o capítulo.
Mas o livro não era sobre mim, a dor dela não era a minha. Tenho esse como um grande aprendizado. Tentamos - e precisamos - nos colocar no lugar do outro. Mas precisamos enxergar o outro. É a partir dele, da sua história, que devemos contar. Mesmo que para isso precisemos encontrar dentro de nós sentimentos de identificação, sentir e até chorar.
Trago o assunto para uma verdadeira reflexão. Tenho mais perguntas do que respostas. Em 2021, produzi uma das séries do podcast Marimbás, intitulada "Territórios da Memória", uma parceria do Nós, mulheres da periferia com o Instituto Vladimir Herzog.
As entrevistas realizadas para a série me mostraram que a Ditadura e suas reminiscências afetaram (e continuam afetando) as periferias de modos diferentes. Embora ouvir histórias esteja na nossa essência enquanto jornalista, as memórias da Ditadura nas periferias não são tão fáceis de ouvir. Elas mexem com feridas que ainda estão muito abertas, principalmente porque estamos falando das dores de pessoas que foram direta ou indiretamente atingidas pelo período. E que continuam vivendo os resquícios desse período. Durante a realização das entrevistas, eu chorei muitas vezes. E, depois, tive que me distanciar do tema um, dois dias, para então conseguir voltar para a construção das reportagens.
Eu precisei compartilhar, trocar com outras jornalistas, me sentir abraçada mesmo que virtualmente, porque a dor de cada entrevistado não passou por mim distanciada, como ditavam as cartilhas do jornalismo do meu tempo de faculdade. Deve ser porque as antigas cartilhas não imaginavam que nós, um dia, iríamos contar as nossas próprias histórias.
Não é tranquilo ouvir histórias de familiares desaparecidos, de amigos que foram mortos pelo regime, de pais e mães que passaram por muitas dificuldades diante da alta dos preços. Não era naquele tempo, não é hoje, não vai ser amanhã. Mas manter viva a memória de ontem e de hoje são essenciais para que alguns crimes nunca mais voltem a acontecer. Nunca mais.
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