quinta-feira, 30 de abril de 2020

Mauricio Stycer 'Todas as Mulheres do Mundo' não poderia estrear em hora melhor, FSP


A minissérie “Todas as Mulheres do Mundo” não poderia ter sido lançada em hora mais apropriada.
Mais que uma homenagem ao filme lendário com o mesmo título, busca irradiar uma filosofia de vida que o dramaturgo e cineasta Domingos Oliveira (1936-2019) propagou em sua obra.
“Já vivi muito, já amei muito, e até hoje eu não sei se o amor é o bem do mundo ou o amor é o mal do mundo, mas eu tenho absoluta certeza que ele é o senhor do mundo.”
Os mais céticos e os mais cansados com o estado atual das coisas não vão levar em consideração as palavras de Domingos Oliveira, e não tenho como contestá-los.
Posso só falar da minha experiência após assistir aos 12 episódios da obra criada para a Globoplay por Jorge Furtado e Janaína Fischer, a partir de uma ideia do próprio Domingos e de Maria Ribeiro. Saí da maratona mais leve.
Com direção artística de Patricia Pedrosa, a releitura toma várias liberdades em relação ao filme, mas mostra como o libertário Paulo ainda ilumina como um farol nos dias atuais. Vivido por Paulo José em 1966 e reencarnado por Emilio Dantas em 2020, é um homem movido pela paixão.
“A paixão é o sentimento maior que Deus inventou. A paixão é o Himalaia de Deus”, diz Paulo ao se ver apaixonado pela amante do seu sogro no episódio intitulado “Elisa”.
Mais que a transbordante jovialidade, há traços quase infantis no comportamento do protagonista.
Dantas sublinha essa característica de forma um pouco mais evidente que Paulo José, mas a sua interpretação é nitidamente uma homenagem, também, ao ator que viveu o personagem originalmente.
Além dele, outros três atores se saem muito bem acompanhando a saga de Paulo por todos os episódios —Martha Nowill como a amiga Laura, Matheus Nachtergaele como Cabral e Sophie Charlotte no papel de Maria Alice, a musa do protagonista, interpretada por Leila Diniz no filme.
O texto faz justiça ao humor de Domingos Oliveira, muitas vezes comparado a Woody Allen. Rápido, elegante, surpreendente. “Sou casada”, diz uma mulher desejada pelo protagonista. “Nem parece”, ele responde.
No que parece ser um aceno ao cineasta americano, um personagem diz: “Existem três tipos de angústia. A que resiste ao primeiro uísque, a que resiste ao segundo uísque e a que resiste ao terceiro uísque, que é a minha”.
Outro destaque é a trilha sonora elegante. Cada episódio traz uma cantora diferente (Alcione, Rita Lee, Elis, Cassia Eller, Marisa Monte, Céu, Ana Canãs, Nara, Elza Soares e Bethânia) interpretando músicas relacionadas aos temas em cena.
Furtado conta que acalentou por mais de dez anos a ideia de filmar histórias de Domingos. O dramaturgo deu sinal verde ao projeto de adaptação de “Todas as Mulheres do Mundo”, mas morreu antes da conclusão do trabalho.
“O universo, a sabedoria e o humor dele estão muito bem representados na série”, assegura Furtado, acrescentando o ponto que acho essencial: “a série vai fazer muito bem ao Brasil”.
Não é a primeira vez que o diretor de “O Homem que Copiava”, “Meu Tio Matou um Cara” e “Saneamento Básico”, entre outros filmes, acerta a mão em programas de televisão.
Só nesta década, Furtado esteve envolvido diretamente na criação, para a Globo, de “Mister Brau”, de 2015, a primeira série da emissora com dois protagonistas negros, vividos por Lázaro Ramos e Taís Araújo, e “Sob Pressão”, de 2017, o melhor drama médico já feito no Brasil, com Julio Andrade e Marjorie Estiano.
Furtado é alguém que entende muito bem a natureza da televisão, mas não faz qualquer negócio pela audiência.
Mauricio Stycer
Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

Brasil precisa fazer qualquer coisa para evitar o drama vivido em hospitais italianos, FSP


João Pereira Coutinho fez uma pergunta estranha em seu artigo desta semana: por que salvar um jovem delinquente e abandonar um velho exemplar? A pergunta é provocativa, mas real, nestes tempos de pandemia. O debate é o seguinte: o que fazer quando as UTIs explodem de gente e há mais pessoas em situação crítica do que a capacidade de atendimento?
Foi o dilema vivido pela Itália, semanas atrás. Uma publicação do Colégio Italiano de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva criou um protocolo para lidar com o tema espinhoso. O conceito é simples: dado que os recursos são escassos, o foco é preservar quem tem “maior probabilidade de sobrevivência”.
Como segunda opção, quem tem mais anos de vida pela frente, de forma a “maximizar benefícios para a maioria”. Logo me perguntei: quantos anos? 50 anos me parece OK; 10 anos soa pouco relevante. Quem vai decidir essas coisas?
O protocolo é, por óbvio, utilitarista. Seus critérios chocam a partir de um olhar menos treinado. Um deles, em particular: estabelecer um limite de idade na entrada na UTI. Pessoas serão excluídas “a priori”. Me incomoda imensamente isso. Imaginei meu velho pai, se vivo fosse, aos 91, dando de cara na porta.
Concorde-se ou não com este ou aquele critério, é melhor ter algum protocolo do que nenhum. O pior cenário é quando escolhas desse tipo são tomadas subjetivamente, no calor da hora.
Há quem vá mais longe nisso tudo. Peter Singer (nosso filósofo utilitarista-chefe) defende que a sociedade como um todo deve pensar não em vidas perdidas, mas em anos de vida perdidos. Ele menciona um estudo mostrando que a Itália perdeu em média “apenas” três anos de vida para cada morte registrada. Singer vai além: sugere que a melhor métrica seria calcular tudo em termos de “bem-estar”.
Certo seria calcular o quanto perdemos, em termos de felicidade agregada, parando a economia por dois ou três meses, vis à vis o benefício de preservar um certo estoque de “anos de vida”, em geral destinados a pessoas muito idosas.
Singer acredita que os economistas facilmente fariam essa conta, colocando um preço na vida humana. Perguntei para um amigo economista, e ele concordou: “fazemos isso toda hora, a começar quando decidimos o orçamento público”.
De minha parte, desconfio de tudo isso. Sigo com o amigo Coutinho: “o problema do utilitarismo é que ele é assaz flexível”. Digo que é preciso propor algum critério mais objetivo para saber quando a contabilidade de vidas humanas é aceitável.
Joshua Greene sugere o seguinte: concordaríamos em sacrificar um e salvar quatro operários distraídos, no famoso dilema do bonde desgovernado. Com uma condição: cada um imaginando a si mesmo dentro do experimento. Seria ilógico não multiplicar por quatro a chance de sobreviver.
O mesmo raciocínio deixa de funcionar quando o contexto é mais aberto. Alguém toparia viver em uma sociedade na qual pudesse ser sacrificado, a qualquer momento, para salvar três ou quatro pessoas?
O utilitarismo é uma ética plausível em situações extremas, quando as opções em jogo são poucas e os critérios amplamente compartilhados. Mas é implausível na grande sociedade, onde a conta de maximização do bem-estar é exageradamente “flexível”, e todos demandamos, com razão, direitos iguais.
O país deveria pensar nisso quando ingressa na fase mais crítica da pandemia. Deveríamos fazer qualquer coisa para evitar que nossos profissionais de saúde tenham que fazer escolhas de vida e de morte entre cidadãos brasileiros, por falta de leitos e respiradores.
Dinheiro não nos falta, visto que nenhum corte na carne vimos até agora do setor público, e nem mesmo os R$ 2 bilhões que nossos políticos reservaram para gastar na campanha eleitoral foram destinados à saúde.
Seria uma estranha forma de contabilidade humana investir em panfletos o necessário para que nenhum de nossos velhos seja retirado de um ventilador, em um hospital qualquer deste país imenso e ingrato.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.