domingo, 19 de janeiro de 2025

Neymar e a realidade paralela, Juca Kfouri ,FSP

 Um dia perguntaram a Diego Lugano, o zagueiro que fez bela história no São Paulo e na Celeste, se ele brincava quando criança de ser Obdulio Varela, o capitão do Uruguai no Maracanazo de 1950.

Lugano olhou firme nos olhos do entrevistador por alguns longos segundos e respondeu, seríssimo, em portunhol: "Não se brinca com los dioses". Mais não disse, nem era preciso.

Já Robinho não sabia quem era Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol.

Neymar fez até pior em entrevista a Romário.

Neymar durante aquecimento antes da partida entre Al Ain e Al Hilal, pela Liga dos Campeões da Ásia
Neymar durante aquecimento antes da partida entre Al Ain e Al Hilal, pela Liga dos Campeões da Ásia - Walid Zain - 21.out.24/Reuters

Porque ser arrogante é mais feio que ser ignorante.

O melhor jogador da Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos, hoje senador, fez três perguntas a Neymar sobre no lugar de quem ele jogaria nas seleções brasileiras que conquistaram o tri, o tetra e o pentacampeonato mundiais.

Neymar escolheu Tostāo, em 1970, Dunga em 1994 e Rivaldo em 2002.

Justificou a primeira escolha com o que o próprio Tostāo escreveu certa vez, certamente por desconhecer a invencível modéstia do Mineirinho de Ouro e, provavelmente, por nem saber o significado de heresia.
No ataque que brilhou no México — Jairzinho, Gérson, Tostāo, Pelé e Rivellino— o lugar de Neymar seria no banco, aplaudindo os titulares.

Tostão, além do refinamento minimalista, jogava com uma noção de futebol coletivo jamais tangenciada por Neymar.

Que se escalou no lugar de Dunga nos Estados Unidos.

Ora, aqui a barbaridade é tática, nada a ver com qualquer comparação entre as qualidades dos dois.
Dunga só foi menos importante que Romário na campanha do tetra e Neymar teria lugar sim no ataque, mas na vaga de Bebeto, pois no auge dos dois o ex-santista foi superior —o que, registre-se, em nada diminui o brilhante desempenho de Bebeto naquela Copa.

Finalmente, o pecado ainda mais mortal: Neymar disse que jogaria na vaga de Rivaldo na Ásia.
O craque pernambucano superou a todos na conquista do pentacampeonato, conseguiu ser melhor que os Ronaldos, e tinha domínio absoluto dos fundamentos do jogo.

Tivesse Neymar o comportamento de Lugano, responderia ao Baixinho que com os deuses ninguém brinca e se limitaria a prometer empenho para ser Tostāo, Dunga ou Rivaldo na Copa do Mundo de 2026, sem se permitir a ousadia de substituir nenhum dos três.

Em vez disso, expôs-se ao ridículo, como se vivesse em realidade paralela e permitiu a comparação com Robinho.

DIA D

Nesta segunda-feira (20) os conselheiros do Corinthians devem votar pelo impeachment do presidente do clube, o inominável Augusto Melo, mais uma praga eleita pelos sócios alvinegros.

Motivos para o impedimento são tantos que até a montagem de time competitivo é um deles, pelo tamanho da irresponsabilidade embutida no esforço.

O desesperador é constatar que, caso os sócios venham a ratificar o necessário afastamento, não se vê luz no fim do túnel.

Imediatamente, assumiria o vice-presidente mais velho, Osmar Stábile, que produziu, financiou e assumiu como seu filme, em 2019, que fez propaganda da ditadura imposta ao país em 1964.

Nem é preciso dizer o que esperar dele.

Aquela velha história do se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

A rara leitora e o raro leitor sabiam desde antes da eleição de Melo que o pedido de impeachment viria.


sábado, 18 de janeiro de 2025

Na era da moda rápida e barata, 80% do descarte têxtil vira lixo, FSP (definitivo)

 


SÃO PAULO

"Parem de comprar roupas", clamava a estilista Vivienne Westwood (1941-2022), 15 anos atrás, diante da proliferação de marcas de fast-fashion que escalaram a produção global de roupas de baixo custo e durabilidade, mas altos danos sociais e ambientais.

O clamor da mãe da estética punk e new wave, no entanto, não entrou na moda. De lá para cá, esse modelo de negócio se aprofundou, e a produção global de têxteis só cresceu.

Hoje, são produzidas globalmente cerca de 100 bilhões de peças de vestuário por ano —o dobro em relação a 2000. São 12 peças anuais por pessoa. Ou mais de 3.000 peças por segundo.

Instalação de pilhas de roupas usadas no centro de Praga, na República Tcheca, alerta para o problema global dos resíduos têxteis na era das fast fashions
Instalação de pilhas de roupas usadas no centro de Praga, na República Tcheca, alerta para o problema global dos resíduos têxteis na era das fast fashions - Dana Kesnerova/Xinhua

A indústria têxtil é intensiva em consumo de recursos como água e energia, e responsável por 10% das emissões de globais de gases de efeito estufa. O setor brasileiro é o quinto do mundo em produtividade e está entre os maiores empregadores do país.

Por aqui, são produzidas 6 bilhões de peças de vestuário por ano: 28 por brasileiro, 190 por segundo.

Tamanha quantidade de peças de vestuário a baixo custo alterou a relação das pessoas com as roupas, que são usadas menos vezes do que 15 anos atrás e vão para descarte mais rápido, depois de apenas sete ou oito usos, segundo dados da consultoria McKinsey.

Com isso, o descarte de tecidos escalou, gerando desperdícios e danos ambientais e à saúde, já que 80% dos resíduos têxteis são incinerados, aterrados ou vão parar em lixões e no meio ambiente, segundo dados da Fundação Ellen MacArthur, ONG internacional dedicada à promoção da economia circular.

Estima-se que o mundo gere hoje cerca de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis por ano, e o Brasil, 4 milhões de toneladas anuais.

A fundação aponta que menos de 1% dos resíduos têxteis é reciclado em novos materiais têxteis, num processo chamado upcycling, e que enfrenta barreiras tecnológicas e fiscais para ganhar escala. Outros 13% são transformados em produtos de menor valor agregado, como forros e enchimentos, no chamado downcycling.

Resíduos têxteis carregam consigo os químicos usados em sua produção. As fibras sintéticas, hoje majoritárias no mercado, também geram microplásticos que se desprendem o tempo todo das peças por meio da fricção. Sua lavagem é considerada uma fonte importante dos microplásticos encontrados nas águas e, mais recentemente, em várias partes do corpo humano, com potenciais prejuízos à saúde que só agora vêm sendo pesquisados.

"Continuar produzindo, comprando e descartando esse monte de roupa é uma conta que jamais vai fechar. Estamos naufragando numa crise de poluição", alerta Guilherme Suertegaray, gerente sênior de projetos para a América Latina da Fundação Ellen MacArthur.

Ainda que a reutilização de peças de roupa esteja em alta com o crescimento do mercado de peças de segunda mão, em brechós físicos e digitais, o desperdício de recursos por meio do descarte de tecidos gera globalmente perdas de US$ 500 bilhões por ano, segundo outra pesquisa da Fundação Ellen MacArthur realizada com apoio da estilista Stella McCartney e de gigantes como a Nike e a H&M, ambas com histórico de problemas trabalhistas e ambientais em suas cadeias produtivas.

Suertegaray aponta para três fatores que levam a desperdícios no setor. Primeiro, o modelo de negócio baseado na economia linear, fundada na tríade extrair-produzir-descartar. "Reparo, aluguel e remanufatura, que existem em outros setores, são embrionários nos têxteis", afirma.

Segundo, a composição das peças dificulta sua reutilização e reciclagem. Tecidos mesclados, que representam mais da metade do mercado, são mais difíceis de serem reciclados. A confecção das peças em geral passa longe do chamado ecodesign, ou seja, de um desenho amigável ao reaproveitamento futuro de cada parte, além de uma produção com menos substâncias nocivas.

Por último, ele cita a falta de infraestrutura para coleta de resíduos têxteis pós-consumo, um entrave e desafio que enlaça indústria, varejo e setor público. No Brasil, a coleta de têxteis pós-consumo ocorre em pontos de entrega voluntária apoiados por grandes varejistas e alocados nas próprias lojas.

A fundação defende a aplicação da chamada Responsabilidade Estendida do Produtor (REP) aos têxteis, o que torna resíduos pós-consumo responsabilidade de quem os colocou no mercado.

"Cada elo da cadeia é muito importante, quem cultiva algodão, planta florestas para viscose, fabrica poliéster e outras fibras sintéticas, quem fabrica o tecido, confecciona a peça e a vende. Eles geram empregos e lucro e deixam um passivo ambiental significativo, que hoje recai sobre a sociedade", afirma José Guilherme Teixeira, que tem quase 40 anos de experiência na indústria da moda.

"Para reduzir o impacto do setor têxtil e da moda, todos esses elos precisam compartilhar dessa missão, e também quem veste a roupa e o governo, que recebe impostos de toda essa jornada", explica ele, hoje CEO da Cotton Move, empresa referência no país em projetos de circularidade na moda.

A Cotton Move tem hoje no Brasil cerca de 500 pontos de coleta de têxteis pós-consumo e trabalha com recicladores para transformar esses resíduos em matéria-prima para novas peças de vestuário.

Continuar produzindo, comprando e descartando esse monte de roupa é uma conta que jamais vai fechar. Estamos naufragando numa crise de poluição

Guilherme Suertegaray

Gerente Sênior de Projetos para a América Latina da Fundação Ellen MacArthur.

Ele se diz entusiasmado com a adesão de consumidores ao aplicativo que indica os pontos de coleta seletiva de têxteis mais próximo e também cria pontes entre indústria, recicladores e criadores. "Em 2021, tínhamos 120 pontos e 15 usuários. Em 2024, ultrapassamos 500 pontos e 11 mil usuários, o que significa que nós, como consumidores, estamos buscando soluções que reduzam o impacto do processo de consumo."

Teixeira alerta que a doação de roupas é "a maior falácia do planeta". "A maioria dessas roupas não tem destinação correta e parte dessas roupas vai parar em lixões como o do deserto do Atacama, no Chile, ou das praias de Gana, na África", diz.

Ele se refere à crise que se instalou no país africano, que recebe doações de roupas da Europa, China e EUA e, sem estrutura para gerir toneladas de têxteis, viu suas praias tomadas por peças de vestuário, como mostra o documentário "Conspiração Consumista", da Netflix.

O Brasil tem mais de 1.500 lixões a céu aberto. E doações feitas a vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul geraram toneladas de roupas sem destino, numa crise de gestão de resíduos.

Antes da venda, os têxteis têm destinações hoje melhor estruturadas. Fernando Pimentel, diretor superintendente da Abit (Associação Brasileira da Indústria Têxtil), afirma que o setor tem longa história de reciclagem e reaproveitamento dos resíduos industriais, ou seja, pré-consumo.

Mas a discussão fica mais complexa, diz, quando se fala em responsabilidade sobre o resíduo têxtil pós-consumo. "Não se trata só da indústria ou da confecção. Tem as marcas do varejo e as grandes plataformas digitais localizadas fora do país. Como é que elas vão dar tratamento aos resíduos daquilo que venderam em território nacional?", questiona.

Para Eduardo Lima, diretor executivo da Associação Brasileira do Varejo Têxtil, somente por meio de uma abordagem coletiva e colaborativa será possível criar soluções eficazes e escaláveis para os resíduos têxteis.

"Para o consumidor, é essencial promover educação ambiental e conscientização sobre descarte responsável. Para as empresas, encorajamos a implementação de iniciativas de logística reversa e reciclagem. Já o governo tem papel fundamental na criação de políticas públicas que estimulem e regulamentem essas práticas", diz Lima.

Resíduos têxteis não estão citados na PNRS (Política Nacional de Resíduos Sólidos), de 2010, como passíveis de logística reversa, ou seja, de sistemas de coleta e recuperação financiados pela indústria, varejo e importação.

Para o especialista em gestão de resíduos e economia circular, Fabrício Soler, sócio da S2FPartners, no entanto, a lei permite a inclusão dos resíduos têxteis.

"Geradores de retalho têxtil são obrigados a dar destinação adequada a eles, e o município precisa fiscalizar. Já produtos no final do ciclo de vida, como têxteis pós-consumo, precisam de regulação que avance na responsabilidade compartilhada por sua produção, a exemplo do que acontece hoje com eletrônicos, por exemplo."

O diretor de gestão de resíduos da Secretaria de Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, Eduardo Rocha, afirma que os resíduos têxteis são um tema relevante globalmente e que sua regulação segue o princípio do poluidor-pagador. "Por isso, está no horizonte do ministério a regulamentação de um modelo próprio de logística reversa para resíduos têxteis", diz.

Hélio Schwartsman Pecados da colonização, FSP

Como sempre ocorre quando o João Pereira Coutinho elogia um livro, corri para adquiri-lo e lê-lo. Não foi diferente com "On Settler Colonialism" (sobre o colonialismo de assentamento), de Adam Kirsch. O livro é bom.

Confesso que não conhecia essa moda ideológica universitária. Se seus proponentes se limitassem a reconhecer que várias nações foram forjadas a partir de um processo de colonização que resultou na subjugação ou eliminação de populações que já viviam naquelas áreas, eu seria o primeiro a subscrevê-la. Não dá para negar a história.

A imagem retrata uma cena de conflito entre colonizadores e indígenas em uma praia. No fundo, há um navio à vela. Os colonizadores estão armados e em pé, enquanto os indígenas estão em uma posição mais vulnerável, alguns no chão e outros em pé. A cena é colorida, com predominância de tons terrosos e um céu cinza.
Annette Schwartsman

Os adeptos dessa escola interpretativa, porém, vão mais longe. Para eles, o processo de formação dessas nações carrega uma mácula que só seria sanada com a devolução das terras aos povos originários e a retirada dos invasores. E isso beira o delírio. Dos mais de 300 milhões de norte-americanos, menos de 3% descendem dos indígenas. Algo parecido vale para Brasil, Austrália etc.

Na congestionada Eurásia, a coisa fica pior. Lembro o caso da Crimeia. De 700 a.C. para cá, a península foi controlada por cimérios, búlgaros, gregos, citas, romanos, godos, hunos, cazares, bizantinos, venezianos, genoveses, kipchaks, otomanos, tártaros, mongóis, russos, alemães e ucranianos. Pode ser desafiador distinguir invasores de invadidos. O colonizador de ontem tende a ser a vítima da invasão subsequente.

O propósito de Kirsch ao escrever a obra é explicar a mais recente transfiguração do antissemitismo, que ganha adeptos nas universidades. Seria legítimo lançar os judeus ao mar porque eles seriam os novos colonizadores, que roubaram a terra da população palestina originária.

Não é um raciocínio que passe no teste da historiografia. Não se trata por óbvio de negar que Israel comete crimes contra os palestinos. Eles se dão à vista de todos. Mas não dá para esquecer que, em algum momento da história, os judeus foram a população invadida daquela região. E houve outro momento em que os palestinos apareceram ali como invasores, desalojando algum outro povo.

Essa é mais ou menos a história de todas as nações.