domingo, 12 de janeiro de 2025

Ruy Castro Já ouvi tudo isso, FSP

 Outro dia, ao noticiar a morte de Ney Latorraca, a TV citou o seu grande sucesso no teatro: "O Mistério de Irmã Vap". Um simples til que se intrometeu no texto mandou uma história de vampiro para o convento, não por culpa do apresentador. Ele sabia que se tratava de "Irma Vap", anagrama de "vampira". Foi apenas traído pelo teleprompter que, distraído como sempre, aceitou a "correção" automática, que é burra e vive se metendo onde não deve. Acontece com frequência —em 1990, a sagrada Elizeth Cardoso foi morta por outro apresentador como Elizabeth Cardoso.

Marco Nanini e Ney Latorraca em 'O Mistério de Irma Vap'
Marco Nanini e Ney Latorraca em 'O Mistério de Irma Vap' - Reprodução

Mas não vamos crucificar o corretor. Os humanos também erram. Marques Rebelo (1907-1973), grande escritor plebeu, autor de "A Estrela Sobe" (1939), tornou-se, na voz de uma severa palestrante, Marquês Rebelo. O poeta Cassiano Ricardo quis impressionar seus então admiradores concretistas citando o matemático alemão Frobenius (1849-1917). Mas chamou-o de Febrônio, um temido serial killer no Rio dos anos 1930. Malcolm X (1925-1965), líder negro americano que não aceitava usar seu sobrenome branco, foi canonizado num jornal como Malcolm 10º.

Ésquilo, o dramaturgo grego do século 6º a.C., autor de "Prometeu Acorrentado", virou Esquilo, não se sabe se o Tico ou o Teco. A peça "Antígona", de Sófocles, quase da mesma época, e talvez por isso, virou "Antigona". "Losango Cáqui", livro de Mario de Andrade, de 1926, transformou-se em "Losango Caqui", como na fruta. E Jesus Cristo, coitado, morreu em vão na cruz —alguém preferiu enforcá-lo. Todos esses tropeços foram dados por pessoas cultas. Ou quase, algumas só no esmalte.

Uma despedida, Bruno Boghossian , FSP

 Em certos momentos da história, analisar a política e o comportamento da sociedade é como escrever um manual de instruções de um aparelho que vemos pela primeira vez. É preciso desaprender a detectar mecanismos que seguem padrões já conhecidos e descobrir como giram as novas engrenagens.

Os últimos anos representaram um desafio dessa natureza. Quando publiquei minhas primeiras colunas na Folha, de 2017 para 2018Lula estava à beira de uma condenação que o levaria à prisão. Jair Bolsonaro era um agitador com popularidade ímpar nas redes e dois dígitos nas pesquisas. O barulho feito por Donald Trump mal transmitia a resiliência de um movimento político que se espalharia pelo planeta.

O mundo já atravessava um ciclo de corrosão de consensos, remodelação de preferências eleitorais, mudanças de atitude das elites e substituição de seus líderes. Instituições enfrentavam sintomas de uma epidemia de desconfiança, causada em grande parte por vícios próprios, mas também pela sabotagem de grupos doidos para desbancá-las.

A praça dos Três Poderes, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Não há muitas dúvidas de que os próximos tempos serão marcados pelo aprofundamento desse processo. Mais do que a ascensão e a queda de personagens políticos, estarão em jogo a reformulação de modelos de representação democrática, de conceitos de bem-estar e dos ecossistemas de informação nos quais os cidadãos formam suas visões de mundo.

jornalismo profissional ocupa uma posição privilegiada para relatar essas transformações, analisar por que os políticos agem como agem, identificar as consequências dessas ações e alertar para violações de princípios básicos cometidas no caminho, incluindo a deterioração de pilares democráticos. Aqui, tive liberdade irrestrita para me dedicar a essas tarefas e manifestar minhas próprias incertezas.

Esta é a última das quase 1.400 colunas deste período de sete anos por aqui. Pude me inspirar em ídolos do passado e grandes profissionais que continuam na vizinhança. Agora, passo a me dedicar a outras funções na Folha. Deixo um agradecimento sincero aos leitores, que espero reencontrar nas páginas do jornal sempre que for possível. Até a próxima.

Hélio Schwartsman - Como pensar igual a um filósofo, FSP

 "How to Think Like a Philosopher" (Como Pensar Igual a Um Filósofo), de Peter Cave, é um livro estranho. E utilizo aqui o termo estranho num sentido positivo. A reflexão filosófica, afinal, surge com o "thaumázein", o verbo grego para designar o estranhamento.

Em princípio, "How to Think..." é mais uma introdução à filosofia. São 30 pequenos ensaios que traçam o perfil e procuram explicar as ideias de 30 pensadores. Os motivos para o estranhamento começam já na lista dos escolhidos.

A imagem mostra um jovem sentado em uma cadeira vermelha, lendo um livro azul. Ele tem cabelo escuro e ondulado, usa óculos e uma camisa verde com um colete marrom. O fundo é amarelo, criando um contraste vibrante.
Annette Schwartsman

Há os inevitáveis, como Platão, Aristóteles e Kant, os incomuns, como Avicena, Elisabete, princesa da Boêmia, e Cristina, rainha da Suécia, e os definitivamente extravagantes, casos de Lao Tzu, que talvez nem tenha existido e é mais bem descrito como uma liderança religiosa (fundador do taoísmo), Safo, a poetisa, e Samuel Beckett, o dramaturgo.

Cave apresenta argumentos para justificar seus eleitos, mas, se usamos um conceito assim tão elástico de filósofo, imediatamente vêm à mente dezenas de outros nomes que também poderiam ter sido incluídos e não foram. Dostoiévski? Machado de Assis? O que resta é admitir que todo cânone é essencialmente arbitrário.

Outro elemento que me surpreendeu no livro é a sem-cerimônia com que Cave, que se propõe a apresentar as ideias dos biografados, as critica. Para mim, treinado numa tradição acadêmica que busca sempre interpretar os textos filosóficos nos limites que eles próprios estabelecem, isso é meio chocante. Mas não posso dizer que tenha desgostado dos resultados. Ao mostrar inconsistências, em geral lógicas, Cave revela pontos fracos das teorias.

O autor é bem transparente. Ele não se esforça para esconder quais são seus filósofos favoritos (Wittgenstein é de longe o vencedor) e aqueles de que não gosta (Heidegger é ridicularizado de forma que alguns acharão divertida).

Eu não recomendaria "How to Think..." como livro-texto para ser usado num curso acadêmico, mas é uma obra informativa e muito gostosa de ler. E nos faz abrir os olhos para a possibilidade de encontrar filosofia onde não esperamos.