quinta-feira, 11 de julho de 2024

Liliana Cavani vai da frouxidão à mão pesada em 'A Ordem do Tempo', FSP

No exato dia em que um grupo de amigos se reúne numa casa de praia para comemorar o aniversário de Elsa, circula a notícia de que um enorme meteorito dirige-se à Terra, em velocidade maior que a luz. Esse o princípio de "A Ordem do Tempo".

A notícia circula discretamente no noticiário, e os convivas não lhe dão grande importância, com exceção de Isabel, a empregada peruana que está com medo de o mundo acabar sem que ela volte a seu país e ali reveja o filho.

A festa continua despreocupada até a chegada do físico Enrico, que trabalha com o assunto e está bem preocupado com a situação. O último meteorito dessas proporções que chegou à Terra foi aquele que fez desaparecer os dinossauros, há 66 milhões de anos ou algo assim.

Cena do filme "A Ordem do Tempo"
Cena do filme "A Ordem do Tempo" - Divulgação

Enrico tem autoridade bastante para deixar em pânico o grupo, onde ora pessoas entram, ora saem. Diante da iminência do fim, um problema imediato se coloca: a existência ou não do tempo pode ser discutida. Diga-se a favor do roteiro que esse problema que atormenta os físicos é trazido de forma bem suave para o interior do filme.

Diga-se contra o roteiro que o número de personagens em cena é um tanto excessivo, a ponto de uma delas, Jasmine, aparecer no começo do filme e depois ficar quase todo o tempo desaparecida.

Como estamos em um encontro onde quase todos ali são casais e alguns outros já foram ou desejam ser, a consciência de que o tempo que lhes resta pode ser muito curto leva-os a uma espécie de terapia dois a dois. Há muitos segredos entre eles. Cada um tem seu drama pessoal, e não se pode que sejam desinteressantes.

Para vencer a tensão do fim iminente, vale tudo, inclusive assistir à bela cena de Chaplin cozinhando seus sapatos ("Em Busca do Ouro", 1925). Mas as tensões do momento se impõem. Por exemplo: Elsa teve um romance de adolescência com uma colega, Giulia, que por sinal vai aparecer por lá. O marido de Elsa teve uma história extraconjugal séria. Hora do final, hora de acertar os ponteiros. O tempo se volta sobre si mesmo. Retroagir ao passado faz sentido para quase todos lá (exceto a excluída Jasmine).

O caso mais interessante é o de Paola e Enrico, o físico. Amor antigo nunca realizado. Ela hoje está com Viktor, homem da Bolsa de Valores. Mas entre Paola e Enrico existe também uma tensão evidente demais para passar em branco diante de iminência do fim geral.

Claro, todas essas situações devem um tanto ao teatro psicológico; devem até mesmo a alguns antigos melodramas, mas admita-se que estão devidamente atualizados. Uma mulher que foi violentada, um marido que se descobre ser bissexual, mulheres com histórias de amores lésbicos.

Diga-se em favor de Liliana Cavani que, mesmo diante do fim do mundo (ou justamente por causa dele), as situações evitam as lavações de roupa suja do teatro psicológico (ao qual, de resto, deve bastante): os dramas, inclusive os segredos, fazem parte da existência e vamos em frente. Quer dizer, vamos em frente se o meteorito não fizer de nós os dinossauros da vez.

Rindo da própria desgraça, Mauricio Stycer, FSP

Com apenas cinco temporadas produzidas em dez anos, "Fargo" é uma preciosidade na TV. Poucas séries tiveram a coragem de ir tão fundo na abordagem da cultura da violência nos Estados Unidos sob a ótica do humor cáustico.

Em outros tempos se diria que "Fargo" é uma série de "humor negro", um termo que hoje é visto como preconceituoso.

Criada pelo roteirista e produtor Noah Hawley, a série é inspirada no premiado filme "Fargo", dos irmãos Joel e Ethan Coen, lançado em 1996 —disponível para locação na Apple TV+. No Brasil, o longa-metragem teve um subtítulo que oferecia spoiler: "uma comédia de erros".

Precisando de dinheiro, o gerente de uma revenda de veículos contrata dois criminosos para sequestrar a sua mulher, filha de um homem muito rico. São todos muitos grosseiros, ignorantes e engraçados. A trama se passa em Minneapolis, no estado de Minnesota, e tem algumas poucas cenas na pequena Fargo, no estado vizinho de Dakota do Norte.

Cena da 5ª temporada de 'Fargo'
Cena da 5ª temporada de 'Fargo' - Divulação

Desde a primeira, em 2014, cada temporada da série, disponível no Prime Vídeo, conta uma história com início, meio e fim, sem relação uma com a outra. Todas, porém, abraçam um universo comum e um mesmo tom, estabelecido pelo filme.

Na abertura, o espectador lê sempre um mesmo aviso: "Esta é uma história verdadeira. Os eventos retratados ocorreram em Minnesota. A pedido dos sobreviventes, os nomes foram alterados. Em respeito aos mortos, o restante foi descrito exatamente como aconteceu".

Essa é a primeira piada de "Fargo". É quase tudo ficção. Sinta-se à vontade para rir das tragédias que vão acontecer.

Outro elemento fundamental é o inverno. A paisagem é de neve cerrada e ambiente desolador. Não faz sol em "Fargo".

Inspirado na burrice dos protagonistas do filme dos irmãos Coen, Hawley sempre cria personagens exageradamente estúpidos para viver papéis importantes, definidores dos rumos das tramas.

Os Estados Unidos, como se sabe, são o país com o maior arsenal de armas nas mãos de civis e o único em que o número total de armamentos supera o tamanho da população. Nas mãos de gente ignorante, como os personagens de "Fargo", essas armas fazem estragos impressionantes.

É tentando tripudiar dessa desgraça que "Fargo" faz rir. Para ilustrar, dou um exemplo da segunda temporada. O membro mais jovem de uma gangue familiar, Rye Gerhardt, vivido por Kieran Culkin, tenta pressionar uma juíza a mudar uma lei, enquanto ela come um hambúrguer numa lanchonete especializada em waffles. A juíza ri da inabilidade e petulância do criminoso e o afasta com um repelente para insetos. "Você é meio burro, não?", ela diz, antes de ser assassinada.

Na sequência, Gerhardt mata o cozinheiro, que o ataca com uma frigideira, e a garçonete, que acerta uma facada em suas costas. Cambaleante, ao deixar o local, o criminoso é atropelado pelo carro dirigido pela cabeleireira Peggy Blumquist, vivida por Kirsten Dunst. Peggy dirige até a sua casa, carregando o corpo do bandido vivo no capô, o que vai gerar inúmeros desdobramentos.

A temporada mais recente, em dez episódios, está disponível no Brasil desde junho. Ela gira em torno do xerife de uma cidadezinha no centro-oeste americano, líder de uma milícia que desafia a polícia estadual e o FBI. Sem disfarces, o violento, misógino e profundamente devoto Roy Tillman, vivido por Jon Hamm, é apresentado como um produto da era Trump.

Não vou dar spoilers desta quinta temporada. Apenas registro uma novidade, a abordagem em chave séria de um tema contemporâneo: o abuso sexual e a violência contra mulheres. Por uma boa causa, em alguns momentos, "Fargo" abre mão do humor ácido e perde um pouco do seu DNA, mas segue brilhante.