Com apenas cinco temporadas produzidas em dez anos, "Fargo" é uma preciosidade na TV. Poucas séries tiveram a coragem de ir tão fundo na abordagem da cultura da violência nos Estados Unidos sob a ótica do humor cáustico.
Em outros tempos se diria que "Fargo" é uma série de "humor negro", um termo que hoje é visto como preconceituoso.
Criada pelo roteirista e produtor Noah Hawley, a série é inspirada no premiado filme "Fargo", dos irmãos Joel e Ethan Coen, lançado em 1996 —disponível para locação na Apple TV+. No Brasil, o longa-metragem teve um subtítulo que oferecia spoiler: "uma comédia de erros".
Precisando de dinheiro, o gerente de uma revenda de veículos contrata dois criminosos para sequestrar a sua mulher, filha de um homem muito rico. São todos muitos grosseiros, ignorantes e engraçados. A trama se passa em Minneapolis, no estado de Minnesota, e tem algumas poucas cenas na pequena Fargo, no estado vizinho de Dakota do Norte.
Desde a primeira, em 2014, cada temporada da série, disponível no Prime Vídeo, conta uma história com início, meio e fim, sem relação uma com a outra. Todas, porém, abraçam um universo comum e um mesmo tom, estabelecido pelo filme.
Na abertura, o espectador lê sempre um mesmo aviso: "Esta é uma história verdadeira. Os eventos retratados ocorreram em Minnesota. A pedido dos sobreviventes, os nomes foram alterados. Em respeito aos mortos, o restante foi descrito exatamente como aconteceu".
Essa é a primeira piada de "Fargo". É quase tudo ficção. Sinta-se à vontade para rir das tragédias que vão acontecer.
Outro elemento fundamental é o inverno. A paisagem é de neve cerrada e ambiente desolador. Não faz sol em "Fargo".
Inspirado na burrice dos protagonistas do filme dos irmãos Coen, Hawley sempre cria personagens exageradamente estúpidos para viver papéis importantes, definidores dos rumos das tramas.
Os Estados Unidos, como se sabe, são o país com o maior arsenal de armas nas mãos de civis e o único em que o número total de armamentos supera o tamanho da população. Nas mãos de gente ignorante, como os personagens de "Fargo", essas armas fazem estragos impressionantes.
É tentando tripudiar dessa desgraça que "Fargo" faz rir. Para ilustrar, dou um exemplo da segunda temporada. O membro mais jovem de uma gangue familiar, Rye Gerhardt, vivido por Kieran Culkin, tenta pressionar uma juíza a mudar uma lei, enquanto ela come um hambúrguer numa lanchonete especializada em waffles. A juíza ri da inabilidade e petulância do criminoso e o afasta com um repelente para insetos. "Você é meio burro, não?", ela diz, antes de ser assassinada.
Na sequência, Gerhardt mata o cozinheiro, que o ataca com uma frigideira, e a garçonete, que acerta uma facada em suas costas. Cambaleante, ao deixar o local, o criminoso é atropelado pelo carro dirigido pela cabeleireira Peggy Blumquist, vivida por Kirsten Dunst. Peggy dirige até a sua casa, carregando o corpo do bandido vivo no capô, o que vai gerar inúmeros desdobramentos.
A temporada mais recente, em dez episódios, está disponível no Brasil desde junho. Ela gira em torno do xerife de uma cidadezinha no centro-oeste americano, líder de uma milícia que desafia a polícia estadual e o FBI. Sem disfarces, o violento, misógino e profundamente devoto Roy Tillman, vivido por Jon Hamm, é apresentado como um produto da era Trump.
Não vou dar spoilers desta quinta temporada. Apenas registro uma novidade, a abordagem em chave séria de um tema contemporâneo: o abuso sexual e a violência contra mulheres. Por uma boa causa, em alguns momentos, "Fargo" abre mão do humor ácido e perde um pouco do seu DNA, mas segue brilhante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário