quinta-feira, 11 de julho de 2024

A bancada BBB saiu ganhando na reforma tributária, André Roncaglia, FSP

 Nesta quarta-feira (10/7), terminou a votação da regulamentação da reforma tributária na Câmara dos Deputados. A criação de um IVA (Imposto sobre Valor Adicionado) alinha o Brasil às melhores práticas internacionais com mais de três décadas de atraso. A não-cumulatividade e a simplificações do sistema tributário aumentarão a produtividade e desonerarão as exportações.

reforma substitui cinco tributos (PIS, Cofins, IPI, ISS e ICMS) pela CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), destinada à União, e pelo IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), para estados e municípios. A alíquota final será repartida entre os dois novos tributos para manter os níveis de arrecadação de cada esfera de governo. Seu valor depende, contudo, da quantidade de exceções à nova regra.

Os descontos na alíquota do IVA deveriam atender aos interesses da população, mas acabaram se tornando disputa entre grupos econômicos. Foram criados dois regimes intermediários. Advogados, médicos e profissionais liberais e... planos de saúde para pets terão corte de 30% na alíquota; já alimentos e medicamentos terão desconto de 60% no IVA.

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Gado no pasto - Eduardo Knapp/Folhapress

Como a reforma prevê manter a atual carga tributária, quanto mais produtos e serviços forem agraciados com a isenção ou o desconto do IVA, maior será a alíquota final que incidirá sobre todos os bens e serviços do regime geral. Neste ponto, o avanço da reforma foi limitado por privilégios injustificados, como os da bancada BBB (bala, boi, bíblia).

Além da PEC 5/2023 (ainda em tramitação), que amplia a imunidade tributária das igrejas, o agronegócio já havia obtido a inclusão das proteínas animais na alíquota reduzida, mas isso era insuficiente. Na disputa sobre os itens da cesta básica —que conta com alíquota zero—, o agronegócio fez forte pressão e foi bem-sucedido. Com o reforço da fala do presidente Lula, foi aprovada a emenda que isenta todas as carnes, queijos e sal. Manteve-se a regressividade do modelo atual, em que itens de luxo são isentos, com a desculpa de serem bens "básicos" de consumo.

Seria mais justo manter as carnes na alíquota cheia e focalizar a isenção diretamente nas pessoas mais pobres, via estorno imediato de tributos no caixa (o chamado cashback) para as pessoas inscritas no Cadastro Único (CadÚnico). São mais de 70 milhões de brasileiros (1/3 da população) que teriam acesso a este benefício. Para que os churrascos no Leblon e nos Jardins fiquem mais baratos, a alíquota geral ficará maior do que poderia ser. Mesmo assim, já é algum progresso substituir a desoneração de jet ski e games pela da carne.

A reforma onerará setores que produzem efeitos negativos sobre a saúde e o meio ambiente. O imposto seletivo incidirá sobre cigarros, bebidas alcoólicas e mineração, dentre outros, e a alíquota varia de acordo com o dano gerado pelo setor. Ao longo das discussões, as montadoras de carros a combustão conseguiram incluir os veículos elétricos no imposto seletivo, alegando que a produção de baterias implica danos ao meio ambiente. Prato cheio para o negacionismo climático que já grassa sem coleira no Congresso.

O texto final também retirou as armas de fogo e munições do imposto seletivo. Com isso, a tributação prevista sobre estes itens cairá de 90% para perto de 25%, ignorando a opinião de 70% dos brasileiros que rejeitam facilitar o acesso a armas como medida de segurança pública. Os socialmente letais alimentos ultraprocessados também escaparam do imposto do pecado.

Nos últimos minutos do segundo tempo da prorrogação, o bloco da Bala, Boi e Bíblia (BBB) assegurou descontos na alíquota entre 60% e a isenção total. Dois golaços que garantiram a vitória do atraso em meio à marcha para o desenvolvimento. A indústria e os serviços sofisticados pagarão mais impostos para que o agronegócio e a indústria de armas prosperem. Selva!

Irmãos Koch, os donos do mundo ANTONIO MUÑOZ MOLINA- El País

 

Os irmãos Charles (esquerda) e David Koch, em 1970. 
Os irmãos Charles (esquerda) e David Koch, em 1970. KOCH NEWSROOM

As revoluções empreendidas em nome dos trabalhadores e pobres começaram em derramamentos de sangue e acabaram em despotismo, incompetência e corrupção. São as revoluções dos ricos que têm sucesso. Perguntaram a Warren Buffet, um dos três ou quatro homens mais ricos do mundo, se acreditava na guerra de classes e respondeu com naturalidade: “Claro que sim. Nós vencemos”. Ao longo do século passado, os movimentos revolucionários de classe foram se tornando reformistas e, através da pressão sindical e ativismo político, foram conquistando melhorias que acabaram definindo o Estado de bem-estar europeu, essa mistura de economia de mercado, saúde e educação universais, igualdade perante a lei, governança democrática e impulso de progresso que até recentemente dávamos como certo. Até mesmo nos Estados Unidos, desde a época do New Deal de Roosevelt, a crueza extrema do capitalismo e do individualismo a todo custo foi moderada graças às leis que limitavam o tamanho das grandes empresas, promoviam um nível básico de proteção social e asseguravam, graças à força dos sindicatos, condições salariais aceitáveis, serviços de saúde e aposentadorias decentes aos trabalhadores.

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Os reformistas consideravam que as coisas poderiam sempre melhorar, que se poderia avançar na igualdade e nos direitos civis, que gradualmente, com um esforço contínuo, as mulheres poderiam ser iguais aos homens e as minorias marginalizadas e perseguidas alcançariam uma cidadania plena. Os reformistas, entretanto, não contavam com os revolucionários. Mas os revolucionários não eram os iluminados da extrema esquerda, místicos e sectários como cristão primitivos, adoradores de velhos tiranos e de burocracias esclerosadas. Os revolucionários de verdade, os radicais sem consideração, os adversários mais temíveis do estabelecido não eram os militantes intoxicados de catecismos ideológicos, os pobres que não tinham lugar na sociedade de bem-estar e os imigrantes forçados a arriscar a vida para fugir da fome e da opressão. Os revolucionários incorruptíveis a toda moderação reformistas foram os ricos, e com eles, seus porta-vozes e propagandistas.

Há pouco mais de dois anos Jane Mayer publicou um estudo corajoso e rigoroso sobre a maneira que alguns bilionários financiaram desde o começo dos anos setenta a guinada teórica e política que levou ao desmantelamento das conquistas sociais, às maciças diminuições de impostos a favor dos ricos e à eliminação das regulamentações que desde a época da New Deal limitavam a capacidade de especulação e manipulação dos grandes bancos e das agências financeiras de Wall Street. Jane Mayer dedica em seu livros muitas páginas aos irmãos David e Charles Koch, dos quais pouca gente havia ouvido falar até então, mas que possuíam um dos grupos empresariais mais poderosos do mundo, e há décadas financiavam cadeiras universitárias, centros de estudo, campanhas políticas, toda uma máquina formidável dedicada a um único objetivo: o descrédito e a anulação da capacidade reguladora e de redistribuição do Estado, e de qualquer limite fiscal, social e ambiental à exploração dos recursos naturais e ao enriquecimento dos mais ricos.

Dark Money é um livro instrutivo e aterrorizante. Agora estou lendo outro que dá ainda mais medo, talvez porque se concentre exclusivamente na história desses dois irmãos, Kochland, de Christopher Leonard, e do gigante empresarial que levantaram. A Koch Industries tem negócios em 60 países e mais de 100.000 empregados. Possui refinarias, fábricas de gás natural, redes de oleodutos, fábricas de fertilizantes e de ração, de toalhas de rosto, de papel higiênico, até de cartões de aniversário. Entre os dois irmãos —um deles morreu meses atrás— reuniam uma fortuna de mais de 100 bilhões de dólares (414 bilhões de reais). Gastaram centenas de milhões em financiamentos de campanhas de candidatos extremistas hostis aos impostos, aos direitos sindicais e a qualquer tipo de controle de emissões de gases de efeito estufa. Em suas empresas fizeram todo o possível para minar qualquer tipo de ativismo sindical e implantaram métodos de controle e de produtividade que não dão respiro aos trabalhadores e que os forçam a competir uns com os outros. Pelo dinheiro e tráfico de influências, fizeram fracassar a lei de proteção ambiental bem moderada promovida por Barack Obama em seu primeiro mandato. Financiaram e organizaram campanhas contra qualquer projeto de transporte público colocado em andamento em qualquer grande cidade americana. Nos anos oitenta se descobriu que a Koch Industries roubava as tribos indígenas em cujas reservas explorava petróleo, declarando quantidades inferiores às que extraíam; também lançavam resíduos tóxicos e águas contaminadas nas matas e rios próximos a sua maior refinaria de petróleo. Pagaram multas ridículas.

Capa do novo livro sobre os irmãos Kochland
Capa do novo livro sobre os irmãos Kochland

Kochland não é um panfleto. Christopher Leonard é um jornalista econômico dotado desse invejável talento anglo-saxão para esclarecer o complexo sem simplificá-lo e para dar ímpeto narrativo à história do crescimento e da expansão de um grupo empresarial que está disposto a nunca aceitar o menor limite à vontade de enriquecimento e domínio de seus donos. Nos anos oitenta a Koch Industries sofreu contratempos por burlar as leis. A estratégia dos Koch a partir de então foi assegurar-se de que nenhuma lei ficasse em seu caminho, e de comprar quantos políticos fossem necessários para consegui-lo. São revolucionários porque só se contentam com tudo.

Anular a resistência dos trabalhadores sempre foi outro de seus objetivos principais. O episódio mais triste do livro de Leonard é a crônica de uma negociação entre os diretores de uma fábrica de tratamento de papel dos Koch e os representantes sindicais. O sindicato está dizimado e desmoralizado porque tem cada vez menos membros. Os salários são tão baixos que os trabalhadores não podem se arriscar a uma greve, sequer a uma sanção. Do modo reformista, os porta-vozes sindicais procuram uma modesta melhoria salarial, uma segurança de que poderão manter suas aposentadorias. Nem mesmo isso conseguem. A Koch Industries é uma empresa revolucionária: não querem vencer a negociação com o sindicato, querem destruí-lo. A produtividade aumentou mais de 70%, mas os salários continuam congelados e perdem valor há anos. É 2016 e nas primárias do Partido Democrata os trabalhadores sindicalizados votam em Bernie Sanders. Quando chegam as eleições, ainda que a diretoria sindical que não soube e não pôde defender seus direitos peça o voto em Hillary Clinton, a maior parte dos trabalhadores da fábrica, vencidos, amargurados, ressentidos, vota em Trump.

A Koch Industries é revolucionária: não querem vencer a negociação com o sindicato, querem destruí-lo. A produtividade aumentou mais de 70%, mas os salários continuam congelados

Caindo no real, Ruy Castro, FSP

 O festival de reportagens sobre os 30 anos do Plano Real não apenas fez justiça a uma medida que tirou o Brasil do buraco como serviu para que eu dirimisse uma dúvida que me perseguia desde a sua implantação. No dia em que ele foi lançado, uma nota de 1 real comprava 1 litro de leite, 1 kg de açúcar ou uma dúzia de ovos. Com 50 centavos de real, pagava-se uma passagem de ônibus ou 1 litro de gasolina. Era formidável. Nos governos anteriores, a inflação era tal que um deles lançou uma moeda de 500 mil cruzeiros. Como era possível que 500 mil unidades da moeda nacional coubessem num bolsinho?

Mas nem todos fomos tão rápidos para fazer a transição entre o absurdo dinheiro antigo e o que acabava de chegar. E calhou que, por aqueles dias, batesse à minha porta um vendedor de vassouras e espanadores. Ora, por acaso eu estava precisando de um espanador o —que eu usava há anos para espanar o teclado do computador estava reduzido à última pena. Era então ou nunca. Pedi-lhe um espanador e perguntei quanto.

O vendedor hesitou, como quem tinha de fazer uma súbita avaliação, e disse: "20 reais". Sem discutir, dei-lhe uma nota desse valor —acabara de voltar do banco— e me tornei o feliz proprietário de um robusto espanador.

Pelos anos seguintes, vivemos em grande harmonia, eu e o espanador. Ele cumpria sua função de espanar o meu teclado e eu cuidava de que ele não ficasse prematuramente careca. Envelhecemos juntos, até que o aposentei com honras. Mas algo me intrigava: ele deveria ter custado 20 reais?

Acontece que, no dinheiro antigo, 20 qualquer coisa não queria dizer nada ---só pensávamos em termos de milhares. E sou ruim de contas porque passei as aulas de aritmética admirando as pernas da professora. Hoje, depois de ler as matérias, descubro que, em 1994, 20 reais valiam pelo menos 40 espanadores. Mas tudo bem —eu só precisava de um, mesmo.

Uma mão segura uma cédula de dez reais do Banco Central do Brasil, exibindo o retrato de Pedro Álvares Cabral e elementos gráficos que representam a história e a cultura brasileira. A nota apresenta cores vibrantes e detalhes de segurança, como a marca d'água e o número que muda de cor
Nota de 10 reais comemorativa com imagem de Pedro Álvares Cabral - Laryssa Toratti/Folhapress