segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Descriminalização do aborto, Eudes Quintino, APMP

 

 

Descriminalização do aborto

 

Nos últimos anos alguns países da América Latina – Uruguai, Guiana, Cuba, Porto Rico, Argentina, Colômbia e agora o México, até então considerados conservadores a respeito do tema – passaram a romper as estruturas sólidas que os amarravam a um conservadorismo fincado em tradições e, graças aos movimentos feministas, conseguiram aprovar a descriminalização do aborto. Paradoxalmente, nos Estados Unidos, alguns estados firmaram posição em insistir na proibição. Na realidade, já existia tal possibilidade quando o ato fosse praticado para salvar a vida da gestante, proveniente de estupro ou de má-formação do feto.

O    Senado da Argentina aprovou lei que foi regulamentada pelo Executivo (Lei 27.610/2020) estabelecendo a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação. Após esse período, prevalece a regra anterior consistente em salvar a vida da gestante ou quando a concepção for proveniente de estupro. A proposta fazia parte dos compromissos eleitorais do presidente Alberto Fernández.

Na regulamentação legal ficou disciplinado que toda gestante poderá ter acesso ao aborto, que será realizado pelo sistema de saúde, de forma gratuita e segura. As gestantes menores de 13 anos terão acesso ao programa desde que acompanhadas por um dos pais ou do representante legal. Adolescentes entre 13 e 16 anos necessitarão da autorização se o procedimento comprometer sua saúde. Já as maiores de 16 anos terão autonomia plena e decidirão por sua própria conta.

No Uruguai a lei existe há mais tempo (Lei 18.987/2012). É permitido o aborto, em qualquer circunstância, até a 12ª semana de gestação. Em caso de estupro ou se for para salvar a vida da gestante ou até mesmo de má-formação do feto, pode ocorrer em qualquer período. A gestante será entrevistada por uma equipe multidisciplinar que, dentre outras ponderações, sugerirá a ela a possibilidade de levar adiante a gravidez para entregar posteriormente a criança para adoção.

A Colômbia, em recente decisão apertada proferida pela Corte Constitucional (cinco votos a favor e quatro contra), descriminalizou a modalidade e permitiu a realização do aborto até a 24ª semana de gestação e, acima desse período, em qualquer tempo, quando se tratar das hipóteses de estupro, má-formação do feto ou risco de morte da gestante. Por se tratar de uma decisão judicial, há necessidade da intervenção do Congresso para a regulamentação da matéria, mas é certo que nenhuma colombiana poderá ser julgada pela prática do crime abolido.

No México, recentemente, a Suprema Corte descriminalizou o aborto até 12 semanas de gestação, declarando inconstitucional a proibição existente, desde que a interrupção seja feita em instituição de saúde credenciada pelo governo federal.

No Brasil, aborto é o produto da concepção eliminado pelo abortamento. É considerado crime pelos tipos penais dos artigos 124 e 126 do Código Penal, com exceção de duas hipóteses: gravidez decorrente de estupro ou quando nãooutro meio de salvar a vida da gestante. Em ambos os casos, nãonecessidade de obtenção de autorização judicial, como é comentado amiúde. E há também uma terceira hipótese, ainda não formatada em lei, que é a permissão do procedimento quando se tratar de feto anencefálico, tema que foi discutido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 54 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).

Essa mesma Corte de Justiça, cumprindo sua missão constitucional, palco de relevantes decisões que repercutem sobremaneira na vida brasileira, abriu suas portas para o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442), intentada pelo PSOL, pleiteando a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação. A fundamentação do pedido apega-se aos direitos da dignidade, da liberdade e da procriação da mulher, conflitantes que são com o regramento penal proibitivo.

A primeira indagação que se faz, até mesmo como preliminar para o debate, reside na discutida competência da Corte Suprema para analisar a questão. Questionou-se, ainda no âmbito das audiências públicas, a respeito do ativismo judiciário que, no caso, estaria invadindo a competência do Legislativo, retirando do Congresso o conhecimento da matéria, locus apropriado para expressar a soberania do povo. O Judiciário, por este prisma, não está jungido da legitimidade para fazer nascer um novo direito positivo.

A manifestação originária, de pura índole constitucional, fonte que emana todo poder conferido pelo povo, deve ser exercida pelo Congresso Nacional, legitimado que é para discutir e estabelecer regras a respeito de tema tão abrangente, com ampla participação da sociedade, inclusive com a coleta de consulta pública. A restrita área do Judiciário, por onde caminha a pretensão deduzida, figurando como manifestação derivada, irá culminar em uma decisão interpretativa de princípios, de veio nitidamente hermenêutico, sem a chancela popular a respeito da penalização ou não do aborto.

É nítido que o tema vem frequentando com certa assiduidade as discussões travadas a seu respeito, fazendo recrudescer cada vez mais a polêmica já instalada. Justamente por não ser um assunto voltado para uma área específica e sim regido pela interdisciplinaridade, em que várias vozes da saúde, psicologia, sociologia, religião, direito, ética e outras tantas populares falam ao mesmo tempo trazendo suas colaborações

Não se pode olvidar e nem mesmo deixar de citar parte do memorável voto do então Ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 54, em 2012, que despenalizou o abortamento de fetos anencéfalos, em tão curto, mas bem postado parágrafo:

"Essa tarefa é própria de outra instância, não desta Corte, que já as tem outras e gravíssimas, porque o foro adequado da questão é do Legislativo, que deve ser o intérprete dos valores culturais da sociedade e decidir quais possam ser as diretrizes determinantes da edição de normas jurídicas. É no Congresso Nacional que se deve debater se a chamada 'antecipação do parto', neste caso, deve ser, ou não, considerada excludente de ilicitude." [1]

Neste caminhar alguns passos já foram dados visando patrocinar a descriminalização do aborto. A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal,[2] analisando pedido de revogação de prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto, com votos dos Ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, entendeu que o aborto praticado nos três primeiros meses de gestação não é crime. É certo que a decisão não foi proferida pelo Plenário da mais alta Corte de Justiça do país, mas, de qualquer forma, abre um precedente para que outros juízes, invocando o mesmo entendimento, venham a descriminalizar o aborto.

A fundamentação legal teve como base de sustentação a autonomia da vontade da gestante, a proteção da sua integridade física e psíquica, seus direitos sexuais e reprodutivos, além da igualdade de gênero. São direitos de última geração na avaliação de Bobbio e que, inegavelmente, tutelam a mulher na sua função procriativa, observando que, no caso presente, trata-se de gravidez proveniente de prática sexual consentida. Por outro lado, evita-se a criminalização exclusivamente contra as mulheres pobres que não podem se socorrer a um procedimento que seja seguro e patrocinado pelo Estado.

A evolução dos costumes traz consigo novas realidades que muitas vezes desmontam a estrutura de valores até então solidamente fincados no universo social e determina uma profunda mudança comportamental.

 

Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, sócio fundador do escritório Eudes Quintino Sociedade de Advogados.

 



[1] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334.

[2] HC nº 124.306, de 2017.

domingo, 8 de outubro de 2023

Como a China está criando super-artistas, escritores, músicos e cineastas, Rodrigo Tavares,FSP

 "Don’t be afraid, it’s beautiful" [não tenham medo, é belo], diz com um sorriso sapeca o professor chinês Yike Guo ao apresentar a primeira plataforma de criação de arte feita por inteligência artificial (IA). Não é um sistema de regeneração de um número ilimitado de obras de arte já criadas por humanos (uma espécie de ChatGPT da música ou da pintura), mas uma plataforma onde as máquinas co-criam conscientemente arte. A apresentação foi feita na semana passada em Hong Kong a uma plateia de 30 líderes globais do Fórum Econômico Mundial, durante um curso de especialização em IA na Hong Kong University of Science and Technology (HKUST).

"Quanto tempo levará para que a arte que consumimos regularmente passe a ser criada com a intervenção de máquinas?", pergunta alguém na plateia. "Cinco anos", responde o professor catedrático de ciências da computação e diretor do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de IA Generativa de Hong Kong. "Mas não haverá uma substituição de artistas por máquinas, mas uma co-criação de algo único, belo e pessoal."

Yike Guo e a sua equipe na HKUST estão desenvolvendo aquilo que designam como uma "plataforma tecnológica de simbiose criativa". Representa uma fusão entre máquinas e seres humanos que passam a se caracterizar como um só organismo criativo. A plataforma fornecerá conteúdo artístico ilimitado para humanos, incluindo um repositório de dados de arte e um sistema de algoritmo criativo de inteligência artificial com o objetivo de inaugurar uma nova era em tecnologia artística.

A plataforma de realidade estendida (XR) imersiva e interativa captura dados humanos durante o processo de criação e apreciação artística, que inclui os dados cognitivos, emotivos e fisiológicos tanto dos artistas quanto do público, como ondas cerebrais, temperatura corporal e frequência cardíaca, marcha e movimentos, entre outros. Mapeia-se, assim, de forma algorítmica. a experiência humana, tanto o que se sente quando se cria quanto o que se sente quando se é tocado pelo que é criado.

Segundo ele, o nível de apuração é muito superior ao autodiagnóstico feito por humanos de si próprios. O "gostar" ou "não gostar" de uma obra criada sai do nível do abstrato, do aleatório ou do intuitivo e passa a estar detalhadamente registrado em nível matemático. As diferenças do que sente um violista ao tocar na Filarmônica de Viena ou na Filarmônica de Berlin, imperceptíveis a um humano sentado na audiência, são registradas pelas máquinas. Além dos músicos, todos os tipos de artistas são mapeáveis: escritores, pintores, bailarinos, cineastas, promete o professor chinês. Será possível criar modelos individuais.

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Depois, a plataforma converte esses dados em descritores de cognição, emoções e padrões comportamentais. Os pesquisadores associam e vinculam as obras de arte aos descritores para construir um repositório de dados abrangente e extenso para treinamento de modelos de inteligência artificial. É o que permite que as máquinas aprendam a estética humana e criem obras pioneiras, em vez de simplesmente imitarem a arte criada por humanos.

Na apresentação, Yike Guo detalhou a ciência por detrás da criação artística em imagens/vídeos, áudio, movimento e texto. E deu inúmeros exemplos do mundo que está sendo preparado no seu laboratório. Segundo ele, a intenção não é criar uma máquina que passe o Teste de Turing da arte. Mas que seja muito melhor do que um humano artista. Nos anos 1950, o cientista da computação britânico Alan Turing (1912-1954) propôs um teste para determinar se um computador pode pensar ou não. Se uma pessoa, ao obter respostas de um humano e de uma máquina, não conseguir distingui-las, poder-se-á concluir que a máquina é inteligente. Mas Guo não quer que as suas máquinas criem arte indistinguível da dos seres humanos. Imitar o talento humano não é a sua meta. O objetivo é criar uma nova experiência de criação artística. "As máquinas são melhores do que artistas humanos", remata.

Mas, em termos práticos, o que estão desenvolvendo Yike Guo e a sua equipe?

O pesquisador de Hong Kong Yike Guo
O pesquisador de Hong Kong Yike Guo - Reprodução

A plataforma criou o primeiro sistema duplo de canto digital do mundo. Após modelar a estética, emoções e técnica de um número muito extenso de cantores (incluindo de alguns célebres, como Céline Dion), o sistema permite que qualquer pessoa possa atingir o mesmo nível de qualidade no canto.

Funciona assim: com uma mera gravação de 100 segundos da minha voz, eu posso cantar com a mesma qualidade estética, emotiva e técnica da Céline Dion, atingindo o mesmo impacto sensorial no público que me escuta, mas usando a minha própria língua e com os meus próprios marcadores linguísticos (timbre, extensão vocal, estilo de canto etc.). Qualquer um pode tornar-se um cantor profissional.

Essa fusão entre máquina e humano cria uma identidade artística própria que pode ser legalmente protegida e monetizada ("my voice, my IP"). Como a voz de entrada é diferente, o canto de saída também é distinto e personalizado. Essa experiência pode também ganhar uma dimensão visual, porque as minhas características físicas e expressões faciais, exclusivamente minhas, podem também ser registradas e manipuladas para criar uma representação física única.

A partir de mim próprio, eu posso ser quem eu quiser, ainda que numa versão artificial. A partir de mim próprio, eu posso ser melhor do que eu próprio. O sistema representa um avanço significativo relativamente a softwares de imitação de voz geradas por inteligência artificial, como os que surgiram recentemente nos EUA com as vozes de Travis Scott, 21 Savage ou Drake.

A plataforma apresenta também a primeira e maior base de dados de trajetória de labanotação 3D do mundo. Rudolf Laban (1879-1958) criou um sistema de anotação do movimento (Labanotação) propondo a observação de quatro pontos constituintes do movimento: Corpo, Esforço, Planos e Espaço. Com isso, a máquina utiliza os inputs que recebe –texto, vídeo ou imagens, música ou sinais fisiológicos– para produzir movimentos em 3D. Qualquer um pode tornar-se um coreógrafo profissional. A máquina criará bailarinos e movimentos que expressam 100% a sensibilidade física e emocional dos coreógrafos. Yike Guo cunhou essa frente como "MotionGPT" e exemplificou-a à audiência com Bach: os bailarinos dançaram automaticamente de acordo com as expetativas técnicas, as expressões fisiológicas e a sensibilidade do criador humano. Nenhum bailarino humano seria capaz de reproduzir tal exatidão.

Ao juntar as capacidades de geração de texto literário, música e movimento, Yike Guo tem também como objetivo criar filmes, ou o que chama de AI Movie (AIM) –"um projeto altamente ambicioso". A plataforma criará roteiros (enredo, gráfico de personagens, diálogo, ação, emoção), geração de cenas (imagens estáticas, cenas dinâmicas, iluminação dinâmica, movimento de câmera), geração de objetos (texturas, estruturas e interações) e geração de personagens (face, corpo, roupa). Como resultado, a IA gerará diálogos, movimentos de representação, emoções e trilha sonora. Qualquer um pode tornar-se um cineasta ou ator profissional. Para criar o AIM, o poder computacional necessário é cerca de 5% do da OpenAI, a criadora do ChatGPT. "Nada de mais", diz Guo. Quando concluídas as primeiras modelagens com algoritmos, criar um filme "levará pouco tempo".

Em 2024, as máquinas da HKSTU irão fazer uma turnê na China, Áustria e no Reino Unido com uma reinvenção das "Quatro Estações" de Vivaldi. Bailarinos de IA e bailarinos humanos irão dançar ao mesmo tempo ao vivo, um cineasta de IA irá criar, em tempo real, um filme imersivo para a performance ao vivo, cantores de IA irão cantar letras de música geradas automaticamente a partir dos desejos do público e um maestro de IA irá apresentar novos arranjos para adaptar a peça barroca ao século 21 através de uma criação simbiótica entre a máquina e a Orquestra Sinfônica do Conservatório Central de Música da China. Tudo isso será criado através da leitura emocional e fisiológica do público para que o resultado final possa ser uma representação artística das mais altas expectativas e do perfil individual médio de quem está sentado no auditório. Ou seja, todos os espetáculos serão únicos.

Os livros que leremos escrever-se-ão automaticamente a partir da coleta em tempo real das sensações, emoções e expectativas do leitor e/ou do escritor. Se assim o desejarmos, todas as obras literárias poderão ser obras supremas de arte, uma mescla do melhor nível de Machado, Tolstói e Camus. Todas elas serão integralmente customizadas de acordo com os nossos interesses e sensibilidade. Não haverá dois livros iguais. O mesmo acontecerá nos domínios da música, pintura, cinema, ópera. Essas experiências únicas serão a nova definição de obra de arte –individual e comercializável. Como consumidor, eu poderei comprar um livro feito especificamente para/com a Taylor Swift e uma música feita para/com a Margaret Atwood. Será uma forma única de conhecer ao máximo detalhe a sensibilidade de ambas.

Ao ser questionado sobre as fronteiras éticas do seu trabalho e sobre as motivações em querer invadir a única área em que, potencialmente, só humanos conseguem ser humanos –as artes–, Guo argumenta que a sua pesquisa representa uma revolução que transformará radicalmente as indústrias criativas e culturais. "Eu não quero matar os artistas, eu quero que toda a gente se torne um artista", diz eufemisticamente. Reforça: "Eu não quero que a ciência entre no domínio da arte e a destrua, não quero que os cientistas se tornem artistas, mas quero que os artistas abracem a ciência e a tecnologia. Quando unirmos cientistas e artistas potenciaremos ao máximo a condição humana".

No seu entendimento, a tecnologia é um ativador da criatividade humana, empurrando-a para patamares inalcançáveis por seres humanos em nível individual ou coletivo. A aplicação concreta do seu trabalho já foi batizada como "Super Artista de IA", "Mente Compartilhada Empática de IA" e "Ópera Simbiótica". Nessas três dimensões, a produção artística é feita por artistas, audiência e máquinas de uma forma harmoniosa, integrada e em tempo real.

A história é pródiga em tecnologias que tanto podem ser usadas de forma benéfica quanto destrutiva, como a energia nuclear, engenharia genética, drones ou reconhecimento facial. Para Guo poder levar a arte a novos patamares de criatividade, as atuais indústrias de cinema e entretenimento (mercado de US$ 95 bilhões), música (US$ 28 bilhões) ou artes (US$ 68 bilhões) terão que ser desfeitas e refeitas, com impactos dolorosos para os profissionais envolvidos. Consciente dessas ambivalências e dilemas, o professor chinês citou o físico J. Robert Oppenheimer três vezes em sua palestra.

Ainda que o seu trabalho tenha como objetivo criar livros, sinfonias, pinturas, coreografias ou filmes, todos esses conceitos antropomórficos, históricos e materiais precisariam ser redefinidos para serem utilizados num contexto de autoria compartilhada entre humanos e máquinas. Um livro co-escrito por uma máquina continua a ser um livro na versão original da palavra? A palavra "livro", do latim "líber", designa a matéria-prima para a fabricação do papel. A arte, como a definimos hoje, é a expressão da subjetividade exclusivamente humana. A pesquisa da HKUST também não diferencia quantidade de qualidade. Aumenta-se a potencialidade da criação à medida que oferece mais recursos. Mas entregar arte, arte de qualidade, é outra história.

A sua pesquisa em arte simbiótica já recebeu linhas de financiamento de 120 milhões de euros. A sua equipe inclui cientistas cognitivos, cientistas de IA e de dados, cientistas de mídia, especialistas em ética e em política artística, tanto chineses quanto pesquisadores afiliados a universidades ocidentais como Yale, Cambridge, Imperial College London e Kent. A Microsoft, Huawei e a Ópera de Hong Kong são parceiros. Yike Guo é reconhecido como um dos mais talentosos cientistas computacionais chineses.

Intuitivamente, esperaríamos que a IA só poderá criar arte se se apropriar de quantidades ilimitadas de obras artísticas já criadas por humanos para encontrar novos padrões e abordagens. É o que faz o ChatGPT ou Claude com texto ou o DALL-E-2, MidJourney, e Stable Diffusion com imagens. A um nível superficial, é isso que já está acontecendo no domínio das artes visuais e literárias. Milhões de imagens e milhares de livros estão sendo escritos por intermédio de IA, mesmo que alguns tribunais comecem a decidir que essas obras não poderão ser protegidas por direitos autorais porque não foram feitas por humanos. Necessariamente, essa apropriação feita pela IA leva a inúmeros questionamentos éticos e legais.

No dia seguinte à apresentação de Yike Guo, o criador de "Game of Thrones" e outros 16 autores processaram a OpenAI por "roubo sistemático e em larga escala" de direitos autorais. A empresa americana apoia-se, sem autorização legal, em um número ilimitado de obras autorais para produzir novas abordagens. Vários artistas têm manifestado as suas ansiedades relativamente à apropriação do seu espaço feita por inteligência artificial.

Se o casamento entre a arte e a IA só fosse possível dessa forma, então as máquinas só poderiam criar algo novo tendo como base um repositório de tudo aquilo que já foi criado. Não haveria espaço para a máquina ser uma futurista, uma pioneira, uma verdadeira experimentalista. O poder da criação estaria limitado às experiências do passado destacou a revista Science, comprometendo a própria definição de arte, como salientaram professores de Harvard.

Eventualmente, poderíamos também pensar imageticamente que as máquinas poderão, um dia, ser integralmente independentes dos seres humanos, alcançando capacidade artística própria. A um nível superficial é também isso que já está acontecendo. E já há muito tempo. Em 1952, o cientista computacional britânico Christopher Strachey criou um programa no computador Manchester Mark 1 que gera automaticamente poesia e cartas de amor.

Mas a pesquisa da Hong Kong University of Science and Technology reflete um nível mais avançado dos que as duas hipóteses anteriores: seres humanos e máquinas se fundirão para produzir arte. E o resultado dessa simbiose poderá ser melhor do que aquilo que algum artista já criou. A tecnologia permitirá que os artistas acedam a mais e melhores instrumentos de criatividade.

"Os humanos criam máquinas inteligentes e as máquinas inteligentes criam humanos ainda mais inteligentes. Os humanos estão sempre um passo à frente", concluiu Yike Guo.

Elio Gaspari - Moro poderia ter Zanin como seu advogado, FSP

 Se Cristiano Zanin não estivesse no Supremo, o senador Sergio Moro poderia tê-lo contratado para cuidar da sua defesa na investigação que a corregedoria do Conselho Nacional de Justiça lhe move.

Diante do aparecimento de relatórios que arrolam malfeitos ocorridos na Vara de Curitiba, ele argumentou:

"A corregedoria do CNJ abriu uma investigação contra um senador da República. Quando o CNJ tem competência para investigar um senador? Tem sob o Judiciário. Não sou mais juiz. Deixei a toga".

Um criminalista jamais permitiria que usasse esse argumento. Ele pressupõe que o ex-juiz foi para o Senado em busca de proteção.

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Cristiano Zanin em sessão da corte para julgamento dos réus dos ataques golpistas de 8 de janeiro, em Brasília
O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Cristiano Zanin em sessão da corte para julgamento dos réus dos ataques golpistas de 8 de janeiro, em Brasília - Pedro Ladeira - 14.set.23/Folhapress

BALA NA AGULHA

A senadora Tereza Cristina (PP-MS) fala pouco, mas vai se tornando um nome fácil para qualquer composição de chapa para a sucessão presidencial de 2026.

Ela conseguiu sobreviver no Ministério da Agricultura de Jair Bolsonaro sem se confundir com os agrotrogloditas nem com a retórica malcriada do governo.

OUTUBRO DE 1963

Há 60 anos, o presidente americano John Kennedy fez uma reunião na Casa Branca para discutir a situação do Brasil e do presidente João Goulart. Discutiu-se a possibilidade de um golpe militar, e Kennedy quis saber se haveria possibilidade de os EUA decidirem intervir. Seu embaixador, Lincoln Gordon, desestimulou a ideia de uma ação direta.

Cinco dias depois, Lee Oswald viu na televisão o filme de um atentado contra o presidente dos Estados Unidos. O assassino (representado por Frank Sinatra) usaria um rifle com mira telescópica. Oswald tinha um e já o havia usado, sem sucesso, para balear um general.

No próximo sábado, completam-se 60 anos do dia em que Lee Oswald soube que poderia arrumar seu terceiro emprego em dez meses, no prédio de um depósito de livros de Dallas.

(A essa altura, estava decidido que Kennedy estaria em Dallas no dia 22 de novembro, mas estava indefinido o percurso de sua caravana pela cidade.)