sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Rodrigo Toniol - Por que Porta dos Fundos é inocente e Claudia Leitte, intolerante?, FSP

 

Rodrigo Toniol

Professor de antropologia da UFRJ, é membro da Academia Brasileira de Ciências

Os argumentos jurídicos utilizados pela organização católica Centro Dom Bosco contra o canal Porta dos Fundos foram próximos àqueles agora empregados contra a cantora Claudia Leitte, acusada de intolerância religiosa. Se o vídeo do Porta dos Fundos que satiriza Cristo não foi considerado intolerância religiosa, por que Cláudia Leitte deveria ser condenada?

Em janeiro de 2018, o Centro Cultural Dom Bosco, organização católica ultraconservadora, processou a produtora Porta dos Fundos por um vídeo satírico. Nele, Jesus aparece como voyeur em uma cena de sexo e depois se junta ao casal. O STF julgou o caso em 2021, e a associação católica perdeu.

Olhar para o processo envolvendo o grupo católico e o Porta dos Fundos apresenta um bom jogo de espelhos para pensarmos sobre a controvérsia envolvendo a cantora baiana e a acusação que recebeu.

Duas mulheres estão em uma piscina. Uma mulher, com cabelo loiro e molhado, está segurando o rosto da outra mulher, que tem cabelo preso e está com os olhos fechados. Ambas estão vestidas com camisetas brancas. A água da piscina é azul e reflete a luz.
Claudia Leitte durante seu batismo; evangélica há mais de uma década, ela é acusada de racismo religioso - Reprodução Instagram @claudialeitte

O Idafro (Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afrobrasileiras) e a yalorixá Jaciara Ribeiro acusam Cláudia Leitte, evangélica há mais de uma década, de racismo religioso. A cantora trocou o verso "saudando a rainha Iemanjá" por "eu canto meu rei Yeshua" (termo para se referir a Jesus) na música "Caranguejo".

O Centro Dom Bosco alegou que o vídeo era um atentado ao sentimento religioso dos cristãos, ultrapassando os limites da expressão. O objetivo da sátira seria diminuir, achincalhar e ridicularizar a fé alheia. Para os católicos, o vídeo era um ultraje às suas divindades e um ataque direto aos cristãos, configurando intolerância religiosa explícita.

A defesa do grupo de humor apresentou três argumentos principais. Primeiro, a criação e divulgação do vídeo estão protegidas pelo princípio da liberdade de expressão e de criação artística, que é um direito fundamental. Segundo, o vídeo não causou prejuízo à reputação da religião católica. Por fim, o vídeo não impede ninguém de praticar sua fé, e o conteúdo é de acesso voluntário.

A decisão do STF foi favorável ao grupo humorístico. Na peça decisória, o tribunal enfatizou que o Estado não pode fixar condicionamentos ou restrições ao exercício da liberdade de expressão. Alegações de ofensa ou desconforto não são suficientes para justificar censura ou restringir liberdade. As exceções ocorrem em casos de abuso comprovado, como incitação à violência ou discurso de ódio.

No caso contra a Claudia Leitte, a Idafro argumentou que a cantora de axé feriu os sentimentos dos religiosos, promoveu intolerância religiosa e que, por isso, não deveria mais ser contratada para shows na Bahia.

Músicos cujas relações com religiões de matriz africana são inquestionáveis saíram em defesa de Leitte, entre eles Carlinhos Brown. Daniela Mercury, embora não a tenha defendido explicitamente, tampouco endossou a denúncia, dizendo que caberia a Leitte se expressar como quisesse.

Quanto ao direito de a cantora alterar as palavras da música, dois dos autores da letra, Luciano Pinto e Alan Moraes, afirmaram que foram consultados e autorizaram a mudança feita pela intérprete.

O Brasil é um país radicalmente intolerante. Ano a ano, o volume de crimes dessa categoria cresce. Entre 2023 e 2024, por exemplo, o salto foi de 80%. As religiões de matriz africana são alvos constantes de ataques físicos contra seus espaços de culto e a maior parte das denúncias aos órgãos competentes é relativa a crimes contra afro-religiosos. Isso não deve e não pode ser negado. Lutar contra crimes dessa natureza é um imperativo civilizacional.

Tanto o vídeo do Porta dos Fundos quanto a atitude de Cláudia Leitte são moralmente questionáveis. Mas nem um nem o outro incitou a violência explícita ou impediu a prática da fé. Censurá-los seria autorizar o Judiciário a seguir por um caminho perigoso, capaz de abrir precedentes que, noutro momento, podem se voltar contra aqueles que agora denunciam.

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