quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

O apelo do vitalismo afirmativo, Wilson Gomes, MEIO

 

12 de fevereiro de 2025

O apelo do vitalismo afirmativo

O que torna tão atraente, como opção eleitoral, uma persona política aparentemente tão repulsiva quanto Trump?

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Por Wilson Gomes

Em seu discurso de posse, em 20 de janeiro de 2025, o presidente Donald Trump delineou uma agenda prioritária para seu segundo mandato, destacando objetivos como restaurar a soberania e a segurança nacional, priorizar os interesses americanos, a prosperidade e a liberdade, reformar o sistema educacional, combater a inflação e a dependência energética, além de promover a unidade e o orgulho nacional. Nada mais distante do discurso de posse de Joe Biden, quatro anos antes, que falava em reconciliação nacional e na reinserção dos Estados Unidos como líder global em pautas como meio ambiente, paz, democracia e cooperação.

Pelo tom de seu discurso, Biden se dirigia a uma nação exausta de tanto conflito e divisão, que havia se afastado da liderança das pautas progressistas no mundo. Já Trump falava a um público ressentido e ávido por recuperar o orgulho de pertencer à maior, mais forte e mais excepcional nação do planeta. Ressentido porque acredita que todos tiram vantagem dos Estados Unidos — migrantes, organismos multilaterais, acordos ambientais — ao mesmo tempo em que desprezam o país. Biden ofereceu um basta à divisão interna que comprometia o sonho americano; Trump, um basta à ideia de que os interesses dos americanos devem ser sacrificados em nome dos interesses alheios.

O nacionalismo soberanista, o hiperliberalismo econômico e a retórica anti-woke formam um conjunto ideológico que atraiu pouco mais da metade do eleitorado americano. Onde a esquerda vê fascismo, imperialismo e um ódio visceral às minorias, os eleitores de Trump enxergam um chamado ao orgulho nacional, um elogio à competência, uma recusa em continuar arcando com os custos de agendas globalistas sem benefícios diretos para os cidadãos americanos, um basta à imigração descontrolada e uma reação às políticas identitárias que consideram opressivas. A perspectiva de libertação da “opressão” identitária é, portanto, um componente central na agenda de Trump, perfeitamente alinhada ao vitalismo afirmativo que orienta toda a sua campanha — agora materializada no bombardeio de ordens executivas.

Já na campanha, Trump prometeu remover os programas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) do governo federal e das forças armadas. Esses programas, como se sabe, estabelecem metas e políticas de assimilação de minorias nas instituições, funcionando de maneira semelhante aos órgãos responsáveis pelas cotas no Brasil. Também prometeu cortar financiamento público para escolas e programas de ajuda internacional que promovam “teoria crítica da raça” ou “ideologia de gênero”, vistos como incubadoras da ideologia identitária. Tudo isso, e mais, ganhou materialidade nas ordens executivas expedidas ainda em janeiro, com a revogação de programas DEI, a suspensão de proteções a comunidades LGBTQIA+, o restabelecimento da proibição de pessoas transgênero nas Forças Armadas, a determinação de que órgãos federais utilizem “sexo” em vez de “gênero” em documentos oficiais e a transferência de detentas trans para prisões masculinas.

A questão central que me interessa é: o que faz com que pelo menos metade dos eleitores americanos tenha votado nele em três eleições consecutivas?

Para além das acusações de fascismo, insanidade ou desumanidade — termos mais recorrentes quando se fala de Trump fora dos círculos da direita radical —, a questão central que me interessa é: o que faz com que pelo menos metade dos eleitores americanos tenha votado nele em três eleições consecutivas? Se descartarmos as hipóteses simplistas de um surto coletivo ou de que os eleitores americanos são estúpidos ou perversos, a pergunta que merece atenção é: o que torna tão atraente, como opção eleitoral, uma persona política aparentemente tão repulsiva?

Opressão do politicamente correto

Gostaria de examinar uma hipótese que combina comunicação política e psicologia social: não seria plausível que parte do apelo do trumpismo consista justamente em oferecer a amplos segmentos da população um vitalismo afirmativo diante do que percebem como opressão do politicamente correto? Diante do cansaço acumulado com a inculcação de culpas, a obrigação de ceder direitos (chamados de privilégios) para compensar injustiças que o indivíduo não sente ter cometido, a imposição de uma nova linguagem e um novo vocabulário, não seria natural que a extrema direita surgisse como uma força de libertação?

O vitalismo, em termos filosóficos, enfatiza a primazia dos impulsos vitais sobre tudo o mais: razão, matéria, valores. A vontade ou impulso de vida é o fundamento da existência. O que chamo de vitalismo afirmativo é a formulação nietzschiana da vontade de poder, entendida como um impulso de criação e superação dos próprios limites — o “sim à vida”, a crítica ao ascetismo como forma de decadência, a transcendência da “moral do rebanho” e a criação de novos valores.

Não vou cair na armadilha de associar Nietzsche ao fascismo e à autocracia. Embora o fascismo traga consigo um certo vitalismo — na glorificação da força, no desprezo pela fraqueza, na exaltação da vontade férrea, na desconfiança das instituições tradicionais e no mito da regeneração e superação da decadência —, ele falharia em um teste nietzschiano rigoroso. Isso por conta de noções como a de sacrifício do indivíduo ao coletivo, a massificação dos valores e adoção de uma moral do rebanho, pelo antissemitismo e nacionalismo (desprezados por Nietzsche), mas, sobretudo, porque se baseia em uma moral do ressentimento e do revanchismo. O ressentimento é, por excelência, uma posição reativa e decadente para o vitalismo afirmativo.

Ainda assim, há muito de vitalismo positivo na retórica e nas narrativas fundamentais que forjam o trumpismo em particular e a extrema direita contemporânea em geral. Essa exaltação da masculinidade agressiva, o uso da competitividade darwinista como marcador de sucesso, o elogio do mais forte e o desprezo pelos vulneráveis, a afirmação da superioridade da ação sobre o pensamento, a ideia de que a intuição e a força de vontade superam o conhecimento racional, o desprezo pelo politicamente correto — tudo isso remete a um ethos vitalista, volitivo, afrontoso, irracional e impermeável à compaixão.

Falta à extrema direita a essência libertadora e criativa do vitalismo, enquanto sobra disposição para se juntar a rebanhos de ressentidos prontos para seguir líderes autoritários que prometem restaurar uma grandeza perdida.

Por outro lado, há que se registrar, contudo, que a extrema direita também responde a um chamado para voltar atrás (reacionarismo), e isso é o oposto do vitalismo. Em vez de mover-se para a superação e criação de novos valores, há uma dimensão conservadora, restauradora, nacionalista e religiosa que resgata justamente a moral do rebanho, que o vitalismo despreza. Falta à extrema direita a essência libertadora e criativa do vitalismo, enquanto sobra disposição para se juntar a rebanhos de ressentidos prontos para seguir líderes autoritários que prometem restaurar uma grandeza perdida (“a América será grande de novo”). O “vitalismo” da extrema direita é, paradoxalmente, ressentido e restauracionista.

Contraste com o identitarismo

E, ainda assim, o vitalismo da extrema direita brilha em contraste com o wokeísmo ou identitarismo. Nada é mais sedutor do que posar como a força libertária e afirmativa diante de uma visão de mundo punitivista, castradora, ressentida e vingativa. O identitarismo representa uma nova versão da moral do rebanho: em vez de afirmar novos valores e criar uma nova cultura, baseia-se no desejo de humilhar, expor, cancelar e destruir aqueles que simbolizam a dominação do passado. Ele não propõe uma sociedade mais livre e afirmativa, mas uma sociedade em que os papéis hierárquicos sejam revertidos e onde os “privilegiados” sejam agora forçados a expiar seus pecados históricos.

Como a culpa é sempre coletiva e histórica (por exemplo, a ideia de que homens brancos devam se sentir culpados por serem beneficiários do racismo estrutural), os indivíduos, singularmente, não importa quem sejam ou o que façam, estão acorrentados a um passado onde se inscrevem por cor, raça, sexo, gênero, orientação sexual e religião. É um ajuste de contas permanente, um movimento de ressentimento e vingança.

Diante disso, o trumpismo brilha com uma estética da força, da afronta, do cinismo, da audácia. Despreza a vitimização e faz dela motivo de zombaria. Ele se vende como um movimento de vencedores, de insubmissos, que enfrentam o “politicamente correto” e se recusam a ser cancelados. Seu discurso performático exalta o impulso, o desejo, a espontaneidade e o desprezo pelo conformismo social e moral.

Como disse acima, o trumpismo é isso, mas também o contrário disso. O identitarismo carrega o ressentimento contra os opressores históricos, enquanto o trumpismo encarna o ressentimento da massa branca e conservadora contra a elite progressista, contra a nova hegemonia cultural e contra aqueles que os acusam de serem os vilões do mundo. O bolsonarismo, por exemplo, sempre oscilou entre o modo “killer” — impetuoso e afrontoso — e o modo “mimimi” — vitimista e ressentido —, cercado por todos os lados pela mídia esquerdista, por intelectuais doutrinadores e por ditadores de toga.

O que torna esses dois movimentos tão poderosos é que um precisa do outro. Há um duelo de ressentimentos. O wokeísmo punitivo precisa de inimigos como Trump e Bolsonaro para justificar sua cruzada moral e sua caça às bruxas contra tudo o que considera “opressivo” e “estruturalmente violento”. Por outro lado, o trumpismo precisa do wokeísmo para vender a ideia de que os homens brancos, os cristãos, os conservadores, os “trabalhadores comuns” estão sob ataque de uma elite progressista autoritária que quer censurá-los, ridicularizá-los e excluí-los da vida pública. Essa dinâmica cria um ciclo infinito de ressentimento e polarização, no qual cada lado vê o outro como um inimigo absoluto, justificando assim suas próprias práticas extremas.

Mas é no contraste entre os dois que a extrema-direita se sobressai, pois o identitarismo tem apenas vitimismo, vigilantismo e punitivismo a oferecer, o que permite ao trumpismo exibir-se como redentor, insubmisso, afirmativo. Um “sim” à vida e à liberdade.

Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".


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