Pela primeira vez, a cidade de São Paulo terá um plano para orientar a maneira como seus rios, córregos e represas são usados. Deve levar ao menos 30 anos para que seja totalmente implementado e custar mais de R$ 8 bilhões para viabilizar o que hoje é raridade na capital: o transporte, o lazer, os esportes e atividades econômicas ligados à água.
A ambição por trás do plano é mudar a relação entre os paulistanos e os rios. Há décadas eles são canais de esgoto a céu aberto e usados de forma utilitária, para abastecimento de água ou de energia elétrica. A intenção é transformá-los em vias de tráfego, inclusive de lixo reciclável, e multiplicar os tipos de ocupação das orlas.
A versão final deve ser apresentada até o meio do ano. Ainda não está definido se ele virá na forma de um decreto e de um projeto de lei, ou apenas um decreto. Ela já vinha sendo debatida formalmente desde 2023 e, em dezembro passado, encerrou-se a fase de audiências públicas.
Já estão praticamente alinhados, porém, os locais onde serão construídos parques, estações fluviais, pontos de recolhimento de carga, atracadouros de barcos e equipamentos educacionais na maior parte do território onde se pretende intervir.
"Navegação urbana no Brasil, do modo que a gente está defendendo aqui hoje, não existe", diz o arquiteto e urbanista Pedro Fernandes, presidente da SP Urbanismo, empresa municipal responsável pela elaboração do plano. "A navegação em canais estreitos e rasos [como os de SP] é mais parecida com as cidades europeias que têm canais artificiais."
O plano prevê a construção de 33 pontos de embarque de passageiros, 16 novas pontes, 4 estaleiros e 6 marinas. A frota municipal teria até 154 embarcações. A extensão de hidrovias —hoje com quatro barcos e uma linha de 17,5 quilômetros— seria expandida para 180 quilômetros.
Se o cronograma for cumprido, a maior parte das intervenções será vista até 2035.
Em seguida, começariam os estudos para a fase mais desafiadora, que prevê duas partes: a adaptação do rio Tamanduateí para que volte a ser navegável e as obras no extremo leste do Tietê. A meta é que esses últimos trechos sejam entregues para o aniversário de 500 anos da cidade, em 2054.
A cada ano, o equivalente a 1.120 piscinas olímpicas de sedimentos se depositam naturalmente no fundo dos corpos d’água na cidade, fazendo com que a dragagem seja uma tarefa contínua. Ela é um dos pontos mais importantes para viabilizar o transporte de passageiros e cargas, e por isso um dos mais delicados.
A prefeitura pretende escavar o Tietê e o Pinheiros, que hoje têm laminas d’água de espessuras variadas, para que eles cheguem à profundidade média de 1,20 metro. Isso significa dragar 1,8 milhão de metros cúbicos, sem contar o serviço sob responsabilidade da SP Águas, para chegar a um resultado pior do que o desejado.
O ideal seria cavar ainda mais para chegar a 2,30 metros, permitindo embarcações maiores, mas essa opção elevaria o valor —o custo da dragagem pode passar de R$ 1 bilhão.
Como mostrou a Folha, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) descumpriu a meta de limpeza do rio Tietê no ano passado. De 1,6 milhões de metros cúbicos previstos, foram retirados 1,4 milhões de resíduos, 12,5% abaixo do prometido, segundo dados da SP Águas.
O serviço é importante não só para garantir navegação: ele afeta os alagamentos na cidade, especialmente quando há construções no mesmo nível do rio —como é o caso do Jardim Pantanal, na zona leste, que passou vários dias com as ruas alagadas na última semana.
Tarcísio tem um plano de R$ 5,6 bilhões até 2026 em ações para despoluir o Tietê, principalmente com obras de saneamento. No entanto, a última medição mostrou que a mancha de poluição no maior rio paulista cresceu pelo terceiro ano consecutivo em 2024.
A espinha dorsal do plano hidroviário está nos chamados ecoportos, equivalentes às estações do transporte metroviário. Servem de atracadouros para embarque e desembarque de passageiros, recolhimento de cargas e pontos de entrega de lixo reciclável —a prefeitura prevê créditos a quem levar seu lixo.
O recolhido nesses locais seria levado a quatro ecoparques, que apesar do nome funcionariam como usinas de triagem, tratamento e reciclagem de resíduos sólidos, nas bordas da cidade e conectados às principais rodovias.
Dentro da cidade, a intenção é que o estímulo ao transporte de cargas hidroviário tome o lugar de caminhões, reduzindo o trânsito e a emissão de poluentes. O plano só prevê barcos elétricos.
Está prevista também uma série de reformas em equipamentos públicos nas orlas dos Tietê e do Pinheiros. Novas pontes só para pedestres ligariam parques fluviais nas duas margens, e aquelas que já existem seriam reformadas para melhorar o acesso da população aos rios. Prédios que construírem acessos às margens teriam incentivos fiscais.
Implementar o plano também requer formar profissionais e fomentar uma economia quase inexistente na cidade. São pilotos de barco, tripulantes, operários para estaleiros, engenheiros náuticos e toda a estrutura industrial que vêm junto com eles.
A SP Urbanismo deve fazer estudos de viabilidade econômica ao longo do ano e prevê um plano para usar recursos da Operação Urbana Faria Lima. Pedro Fernandes sugere fazer o mesmo com operações urbanas Água Branca e Águas Espraiadas, além do PIU (Projeto de Intervenção Urbana) Central —dinheiro que é pago pelas construtoras para construir na cidade. Outra fonte poderia ser o Fundo Municipal de Saneamento.
Parte das ações previstas no plano hidroviário já começaram a ser implementadas, segundo a prefeitura. O serviço Aquático da SPTrans (empresa municipal que gerencia o transporte de ônibus) na represa Billings é o protótipo do projeto. A SP Urbanismo diz que a construção de três ecoportos, um ecoparque, uma marina e um estaleiro já foram viabilizados.
Apesar de não faltarem exemplos de políticas públicas que foram abandonadas com o passar dos anos na cidade, Fernandes diz que o processo de participação pública na elaboração do plano garantirá que ele será seguido pelos sucessores do prefeito Ricardo Nunes (MDB). "A retomada da relação das cidades com as águas é um movimento global, e o PlanHidro posiciona São Paulo como referência para o Brasil, com uma agenda de futuro sem retorno", diz o presidente da SP Urbanismo.
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