"Até quando teremos que pisar em ovos ao defender nossas pautas para não provocar os eleitores de direita?"
Essa foi uma das objeções mais interessantes que me foram apresentadas nas últimas semanas. "Pisar em ovos", vocês sabem, significa agir com cautela e delicadeza para evitar conflitos, problemas ou consequências negativas.
Não foi propriamente uma pergunta, mas sim o protesto de alguém já exausto da sensação de que os progressistas deixaram de ser a maioria política e de ocupar a posição dominante na esfera pública.
A resposta óbvia seria: "Até quando este país for uma democracia, um regime em que a maioria governa".
Claro, pode-se argumentar que, sendo o Brasil governado por um presidente de esquerda, a maioria eleitoral já escolheu um lado. Mas não é bem assim. Em 2022, o eleitor brasileiro deu a Presidência a Lula, mas entregou o Legislativo à oposição, justamente em um momento em que o poder do presidente da República é minguante, enquanto o dos presidentes das casas legislativas federais é crescente.
Se isso já é grave o bastante para a esquerda, há ainda outro fator: a opinião pública brasileira não é mais aquele ambiente onde ideias progressistas, mesmo as mais radicais, predominavam. Opinião pública, nos ensinou Elisabeth Noelle-Neumann, é aquilo que se pode expressar em público sem medo de sanções.
Durante algumas décadas, as posições conservadoras e as ideias da direita radical penavam na esfera pública, mas agora o jogo virou. Não vou detalhar aqui os efeitos da transformação digital no debate público, mas o fato é que, hoje, nenhuma posição goza de imunidade –muito menos as progressistas. Sobretudo aquelas que se tornaram bandeiras da guerra política, como as pautas identitárias da esquerda ou as posições morais ultraconservadoras.
A irritação expressa na pergunta indica que a ficha dos progressistas está demorando a cair. O Brasil de hoje é um país muito mais conservador, antipetista, de direita e intolerante à retórica identitária do que era há dez anos. E os progressistas não deveriam se iludir confundindo a cumplicidade que recebem das Redações da grande mídia, da universidade, do mundo editorial e da cultura com a opinião pública predominante. Por mais relevantes que essas instituições sejam, elas têm cada vez menos influência na formação da opinião e da vontade políticas da maioria dos cidadãos. Não passam de bolhas minoritárias, que criam a falsa impressão de refletir a realidade, quando, na verdade, expressam a visão dominante de uma elite cada vez mais restrita e menos influente.
Achei que isso tivesse ficado evidente quando o jornalismo de referência e o governo uniram esforços para tentar modificar a percepção pública sobre o Pix propagada pelas redes da direita –e fracassaram. Aparentemente, não.
Enquanto isso, no mundo real, temos um presidente governando precariamente com uma minoria parlamentar, acossado por uma inflação de alimentos que, semana após semana, relembra aos brasileiros que sua vida está ruim. Lula chegou à metade do mandato com queda de apoio popular e sob ameaça de dissidências no Congresso. E, como o José da poesia de Drummond, está sem discurso, embora fale demais.
Um presidente que não consegue oferecer respostas convincentes para problemas como a carestia ("Se estiver caro, não compre" chega a ser ofensivo), o crescimento assombroso da criminalidade, a falta de perspectivas que nos tornou um país que exporta cidadãos e os recebe, humilhados, em correntes, pode realmente alimentar expectativas de reeleição?
Além disso, Lula sabe que continua em estágio probatório para parte do eleitorado que votou nele apenas para evitar o outro lado, e que a extrema direita espera na tocaia que o governo sangre, ainda mais agora, energizada com a vitória de Trump.
Se ao menos a esquerda e os progressistas entendessem que são minoria e que o governo já tem problemas demais, perceberiam que precisam construir pontes, honrar alianças, negociar pautas e aplainar arestas, como prometeram na campanha de 2022. Talvez assim houvesse alguma esperança para 2026. Qual o quê? Dedicam-se a dobrar as apostas, radicalizar pautas, abandonar aliados e pisar nos calos de todos, de modo que o caminho, que já era árduo, se torna impossível.
Ah, sim, as belas almas garantem que eleição não é tudo, que o importante é ter os valores certos. Pois bem, perguntem aos progressistas americanos se a convicção da própria superioridade moral oferece algum consolo diante do que Trump anda aprontando por lá.
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