Todos que vivemos de escrever e lutamos pela objetividade, clareza e verdade dos textos estamos sujeitos a lapsos em que, em vez da palavra exata, sai das sombras um clichê. Para quem não sabe, o clichê, na escrita, é uma palavra que se segue automaticamente a outra pelo hábito de as ouvirmos juntas. É a frase feita, gasta pelo uso. O clichê é formado quase sempre de um substantivo e um adjetivo. Lidos com atenção, descobre-se que o substantivo sem o dito adjetivo poderia dizer a mesma coisa.
O problema é que muitos de nós sofremos do que Nelson Rodrigues chamava de "a tara estilística do adjetivo" (ele próprio se dizia portador dela) e o sapecamos sem pensar. Não que o adjetivo seja sempre inútil. Muitos são lindos, plásticos, sonoros, e o que os corrompe é o casamento com certos substantivos. Esse casamento é uma armadilha verbal e, como ninguém está a salvo dela, compilei para mim mesmo uma coleção de clichês e a espetei na parede à minha frente. Aí vão:
Festejado autor. Espaçoso apartamento. Café da manhã reforçado. Lauta refeição. Dúvida cruel. Barbaramente torturado. Sol inclemente. Calor senegalesco. Frio sepulcral. Sono profundo. Elogio rasgado. Prova robusta. Verde abundante. Fraterno abraço. Pureza angelical. Beleza estonteante. Respeitável público. Coragem suicida. Equilíbrio instável. Alegria contagiante. Intenção diabólica. Trabalho insano. Ruído infernal. Merecido prêmio. Choro convulso. Dor lancinante. Fé inquebrantável. E muitos mais (inclusive "muitos mais").
Há quem se refira a um "jantar pantagruélico" sem saber quem foi Pantagruel, o glutão de François Rabelais (c. 1490-1553). Ou ao "olho de lince" —mas já li em algum lugar que os linces nem enxergam bem. E o que dizer de "trocadilho infame"? Haverá um que não seja? Como se vê, o clichê é redundante —só serve para ocupar espaço.
Mas veja o caso de "amor eterno". Para muito de nós, esse amor não existe. Mas, para o mesmo Nelson Rodrigues, sim: "Todo amor é eterno. Se não é eterno, não era amor".
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