Em 1938, o premiê britânico Neville Chamberlain voou até Munique, na Alemanha, para se encontrar com Adolf Hitler, em nome da paz. Em nome da paz, ignorou as informações secretas que recebeu sobre a verdadeira natureza do Führer alemão. Em nome da paz, entregou uma parte da Tchecoslováquia, sem pedir opinião aos tchecoslovacos. Em nome da paz, prescindiu da honra. Acabou por ficar —como viria a dizer Winston Churchill, seu sucessor— com a desonra e com a guerra.
Em 2007, na Conferência de Segurança de Munique, Vladimir Putin proferiu um rancoroso discurso contra a ordem internacional herdada do pós-guerra e da queda do muro. Os presentes escolheram ignorar aquilo que os seus ouvidos ouviram e que os seus olhos viram, suplantado pela vontade de acreditar que a história tinha mesmo acabado ou, talvez mais ainda, pelo interesse em fechar negócios vantajosos com Putin.
No ano seguinte, Putin mandou invadir a Geórgia, e o mundo achou que era uma exceção. Seis anos depois dessa invasão, Putin anexou a Crimeia. Mais seis anos decorridos, Putin tentou engolir a Ucrânia inteira e chegar a Kiev em três dias.
Eu sei, eu bem sei, que não faltam pretextos e tentativas de justificação para o que Putin fez. Mas que pensaria o leitor se quem quer que fosse invadisse a Amazônia, sob qualquer pretexto, com qualquer justificativa, qualquer que fosse?
A história poderá vir a dizer muita coisa, mas não dirá certamente que foi a Ucrânia que invadiu a Rússia.
E de novo em Munique, há poucos dias, ficou claro que o plano de Donald Trump para a Ucrânia é entregar —em nome dos ucranianos, mas sem a participação deles— tudo aquilo que Putin tiver conseguido conquistar. E ainda exigir, por cima, que os ucranianos paguem US$ 500 bilhões pelo favor, deixem os Estados Unidos ficarem com metade dos seus minérios raros, mais uma parte da atividade portuária e agrícola do país, pelo menos. Em termos proporcionais, são condições mais duras do que as que foram impostas à Alemanha por ter sido considerada culpada pela Primeira Guerra Mundial.
Para juntar a injúria ao insulto, o vice-presidente americano, J. D. Vance decidiu deixar claro todo o seu desamor pela União Europeia, culpada de nem sequer cogitar em regular as redes sociais americanas, e terminou apoiando o partido extremista AfD a poucos dias das eleições na Alemanha.
Este estado de coisas, de tão indigno, é salutar em pelo menos uma coisa: só engana a si mesmo quem quiser. Para quem quiser enfrentar a realidade, o cenário é bastante claro: a União Europeia e os EUA já não são aliados, a Otan é uma construção meramente teórica, e os europeus terão de recuperar a velha ideia —derrotada em 1954 no Parlamento francês— de construir a sua própria Comunidade Europeia de Defesa.
É bom que o façam rápido, porque a contagem decrescente para a próxima guerra na Europa começa no dia em que Putin não estiver atolado na Ucrânia. Ainda parece incrível, mas é assim a história do meu continente.
Como dizia Rick a Ilsa, em "Casablanca", sonhando com os tempos bons de antes da guerra, "teremos sempre Paris" —para a paixão. Mas para a traição à Europa e seus ideais, nada como Munique.
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