Descriminalização
do aborto
Nos
últimos anos alguns países da América Latina – Uruguai, Guiana, Cuba, Porto
Rico, Argentina, Colômbia e agora o México, até então considerados
conservadores a respeito do tema – passaram a romper as estruturas sólidas que
os amarravam a um conservadorismo fincado em tradições e, graças aos movimentos
feministas, conseguiram aprovar a descriminalização do aborto. Paradoxalmente,
nos Estados Unidos, alguns estados firmaram posição em insistir na proibição. Na
realidade, já existia tal possibilidade quando o ato fosse praticado para
salvar a vida da gestante, proveniente de estupro ou de má-formação do feto.
O Senado da Argentina aprovou lei que foi
regulamentada pelo Executivo (Lei 27.610/2020) estabelecendo a interrupção da
gravidez até a 14ª semana de gestação. Após esse período, prevalece a regra
anterior consistente em salvar a vida da gestante ou quando a concepção for proveniente
de estupro. A proposta fazia parte dos compromissos eleitorais do presidente
Alberto Fernández.
Na
regulamentação legal ficou disciplinado que toda gestante poderá ter acesso ao
aborto, que será realizado pelo sistema de saúde, de forma gratuita e segura. As
gestantes menores de 13 anos terão acesso ao programa desde que acompanhadas
por um dos pais ou do representante legal. Adolescentes entre 13 e 16 anos
necessitarão da autorização se o procedimento comprometer sua saúde. Já as
maiores de 16 anos terão autonomia plena e decidirão por sua própria conta.
No
Uruguai a lei existe há mais tempo (Lei 18.987/2012). É permitido o aborto, em
qualquer circunstância, até a 12ª semana de gestação. Em caso de estupro ou se
for para salvar a vida da gestante ou até mesmo de má-formação do feto, pode
ocorrer em qualquer período. A gestante será entrevistada por uma equipe multidisciplinar
que, dentre outras ponderações, sugerirá a ela a possibilidade de levar adiante
a gravidez para entregar posteriormente a criança para adoção.
A
Colômbia, em recente decisão apertada proferida pela Corte Constitucional
(cinco votos a favor e quatro contra), descriminalizou a modalidade e permitiu
a realização do aborto até a 24ª semana de gestação e, acima desse período, em
qualquer tempo, quando se tratar das hipóteses de estupro, má-formação do feto
ou risco de morte da gestante. Por se tratar de uma decisão judicial, há
necessidade da intervenção do Congresso para a regulamentação da matéria, mas é
certo que nenhuma colombiana poderá ser julgada pela prática do crime abolido.
No
México, recentemente, a Suprema Corte descriminalizou o aborto até 12 semanas
de gestação, declarando inconstitucional a proibição existente, desde que a
interrupção seja feita em instituição de saúde credenciada pelo governo
federal.
No Brasil, aborto é o
Essa
mesma Corte de Justiça, cumprindo sua missão constitucional, palco de
relevantes decisões que repercutem sobremaneira na vida brasileira, abriu suas
portas para o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF 442), intentada pelo PSOL, pleiteando a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de
gestação. A fundamentação do pedido apega-se aos direitos da dignidade,
da liberdade e da procriação da mulher, conflitantes que são com o regramento
penal proibitivo.
A
primeira indagação que se faz, até mesmo como preliminar para o debate, reside
na discutida competência da Corte Suprema para analisar a questão.
Questionou-se, ainda no âmbito das audiências públicas, a respeito do ativismo
judiciário que, no caso, estaria invadindo a competência do Legislativo,
retirando do Congresso o conhecimento da matéria, locus apropriado para expressar a soberania do povo. O Judiciário,
por este prisma, não está jungido da legitimidade para fazer nascer um novo
direito positivo.
A
manifestação originária, de pura índole constitucional, fonte que emana todo
poder conferido pelo povo, deve ser exercida pelo Congresso Nacional,
legitimado que é para discutir e estabelecer regras a respeito de tema tão
abrangente, com ampla participação da sociedade, inclusive com a coleta de
consulta pública. A restrita área do Judiciário, por onde caminha a pretensão
deduzida, figurando como manifestação derivada, irá culminar em uma decisão
interpretativa de princípios, de veio nitidamente hermenêutico, sem a chancela
popular a respeito da penalização ou não do aborto.
É
nítido que o tema vem frequentando com certa assiduidade as discussões travadas
a seu respeito, fazendo recrudescer cada vez mais a polêmica já instalada.
Justamente por não ser um assunto voltado para uma área específica e sim regido
pela interdisciplinaridade, em que várias vozes da saúde, psicologia,
sociologia, religião, direito, ética e outras tantas populares falam ao mesmo
tempo trazendo suas colaborações
Não
se pode olvidar e nem mesmo deixar de citar parte do memorável voto do então
Ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 54, em 2012, que
despenalizou o abortamento de fetos anencéfalos, em tão curto, mas bem postado
parágrafo:
"Essa
tarefa é própria de outra instância, não desta Corte, que já as tem outras e
gravíssimas, porque o foro adequado da questão é do Legislativo, que deve
ser o intérprete dos valores culturais da sociedade e decidir quais possam ser
as diretrizes determinantes da edição de normas jurídicas. É no Congresso
Nacional que se deve debater se a chamada 'antecipação do parto', neste caso,
deve ser, ou não, considerada excludente de ilicitude." [1]
Neste caminhar alguns passos já foram dados visando patrocinar a
descriminalização do aborto. A 1ª Turma do Supremo Tribunal
Federal,[2] analisando pedido de
revogação de prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica
clandestina de aborto, com votos dos Ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Luís
Roberto Barroso, entendeu que o aborto praticado nos três primeiros meses de
gestação não é crime. É certo que a decisão não foi proferida pelo Plenário da
mais alta Corte de Justiça do país, mas, de qualquer forma, abre um precedente
para que outros juízes, invocando o mesmo entendimento, venham a
descriminalizar o aborto.
A
fundamentação legal teve como base de sustentação a autonomia da vontade da
gestante, a proteção da sua integridade física e psíquica, seus direitos
sexuais e reprodutivos, além da igualdade de gênero. São direitos de última
geração na avaliação de Bobbio e que, inegavelmente, tutelam a mulher na sua
função procriativa, observando que, no caso presente, trata-se de gravidez
proveniente de prática sexual consentida. Por outro lado, evita-se a
criminalização exclusivamente contra as mulheres pobres que não podem se
socorrer a um procedimento que seja seguro e patrocinado pelo Estado.
A
evolução dos costumes traz consigo novas realidades que muitas vezes desmontam
a estrutura de valores até então solidamente fincados no universo social e
determina uma profunda mudança comportamental.
Eudes
Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/SP, mestre em
direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, sócio fundador
do escritório Eudes Quintino Sociedade de Advogados.
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