quinta-feira, 11 de junho de 2020

Fernando Schüler O que realmente queremos com a renda básica?, FSP

O foco do 'welfare state' contemporâneo é reduzir o peso das burocracias públicas e dar poder aos cidadãos

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O tema da exclusão racial tomou o centro do debate e é bom que isso tenha acontecido. Pedro Fernando Nery sintetizou em um dado o drama brasileiro: 60% dos meninos negros como o Miguel, abandonado no elevador daquele apartamento bacana no Recife, vivem abaixo da linha da pobreza.

O país precisa avançar em políticas sociais inteligentes e esta pode ser uma das principais lições da crise. O primeiro tema diz respeito à renda básica. O governo anunciou que irá apresentar a Renda Brasil. E o faz do seu jeito estranho, com pouco amor ao detalhe sobre como vai funcionar e de onde sairá o dinheiro.

Mas OK, a pauta é boa. O Brasil vem experimentando um modelo bastante amplo de transferência de renda emergencial. Seu desenho é precário, e o custo proibitivo. O modelo custaria em torno de 7% do PIB e implicaria um completo redesenho de nosso pacto social.

O que parece viável é avançar com moderação. Estudo apresentado por Sergei Soares, Letícia Bartholo e Rafael Osorio, do Ipea, sugere a unificação do Bolsa Família, abono salarial, salario-família e as deduções-criança do Imposto de Renda.

Haveria ganhos de focalização e coordenação. 77% dos recursos do Bolsa Família vão para o terço mais pobre da população, enquanto as deduções-criança vão direto para o terço mais rico. Não parece haver muita dúvida sobre o que fazer.

Há duplicações de benefícios e uma ampla parcela de famílias pobres que não recebem benefício algum. O simples ganho de eficiência na aplicação dos recursos duplicaria seu efeito, com impacto fiscal zero, na redução da pobreza e da desigualdade.

A economista Monica de Bolle sugere algo distinto (e correto, na minha visão): o foco em uma renda básica infantil. Famílias com crianças de 0 a 6 anos receberiam um complemento de até meio salário mínimo, com impacto fiscal esperado entre 1% e 1,5% do PIB.

No fundo, estamos diante de uma discussão que envolve elementos normativos e funcionais. O país quer priorizar a proteção da infância? A ideia é simplesmente não deixar que ninguém viva abaixo de um certo padrão de dignidade? Ou o objetivo é mais arrojado e envolve a redução e, por fim, a eliminação da miséria?

Não acho que exista clareza alguma sobre estas coisas, e acho curioso que o país (a começar pelo governo) se dedique a desenhar programas sem explicitar sua visão normativa de longo prazo. Seria como ir levantando paredes sem antes perguntar em que tipo de casa se quer morar.

Definido o sentido normativo do programa, seu desenho fica mais fácil de fazer, e os economistas, como observou provocativamente Samuel Pessoa, podem calcular quanto tudo irá custar.

De minha parte, digo que a renda básica brasileira deveria atender a quatro pontos normativos: ter um foco claro nos mais pobres e definir condicionalidades (além das hoje existentes no Bolsa Família, envolvendo formação profissional, por exemplo).

Deveria integrar programas a partir do Bolsa Família, que pode ser corrigido em seu alcance e valor, hoje irrisório. Integrar, aqui, tem um sentido amplo: substituir programas menos eficientes pela oferta direta de renda às pessoas.

Esta a reconversão de longo prazo que assistimos no “welfare state” contemporâneo: menos intermediação das burocracias públicas e mais poder para que as pessoas façam suas escolhas, com liberdade.

Por fim, o caráter emancipatório. Se o objetivo de um programa de renda básica é superar a pobreza, seu foco civilizatório deve ser a autonomia das pessoas frente ao Estado, de modo que elas possam viver do seu trabalho e senso empreendedor.

A transferência de renda é apenas um dos elementos que podem nos ajudar a superar a pobreza. Pouco adianta garantir uma renda básica se a escola não funciona e 56% dos lares mais pobres não têm acesso à coleta de esgoto.

É por isso que a repactuação do país precisa ser muito mais ampla do que costumamos reconhecer. Oxalá a crise nos ajude a esquecer um pouco a querela política e pensar nas coisas que de fato importam.

Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

SAMUEL MAC DOWELL DE FIGUEIREDO E MARCO ANTÔNIO RODRIGUES BARBOSA Adeus às armas, FSP

Se obtiver o registro de advogado, Moro poderá entrar no lado claro da cena

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Samuel Mac Dowell de Figueiredo e Marco Antônio Rodrigues Barbosa

Há quem não entenda por que muitos não querem partilhar manifestos pela democracia com Sergio Moro. Propomo-nos a explicar.

Enquanto juiz, o ex-ministro comprometeu parte dos processos da Lava Jato com ilegalidades que os reduziram ao arbítrio e à perseguição política: selecionar alvos, grampear advogados, abusar das prisões temporárias, usá-las para arrancar confissões, articular acusações e provas em conluio com procuradores, acusar e julgar, proferir sentenças sem conectar fundamentos lógicos, manipular a imprensa e a opinião pública e influenciar a eleição presidencial em benefício do grupo ao qual se integrou. É o que mostram os registros dos processos, da imprensa, do site The Intercept e de recursos em andamento no Supremo.

O ex-ministro da Justiça Sergio Moro - Pedro Ladeira - 24.abr.20/Folhapress

Cabe ao juiz julgar e valer-se do poder coercitivo do Estado para garantir a execução do que decide. Esse poder é exercido pela força física e uso das armas, um monopólio oficial que está na base da organização da sociedade. Por sua gravidade, à coerção se contrapõe ao sistema de garantias constitucionais que configuram o devido processo legal. Ao desrespeitar esse sistema, na sua dimensão política e funcional o juiz corrompe a ordem jurídica; como indivíduo, é um algoz que age com covardia frente a quem não possui as mesmas armas. Um não juiz, que impõe condenações baseadas em fraudes processuais, imputações falsas e atos tão socialmente danosos quanto os crimes que declara combater.

Se atendeu a claras exigências da sociedade, a Lava Jato, como uma “deep web”, mergulhou em um lado escuro onde as deformações do processo, o comércio de delações e as ações ocultas de autoridades criaram um espaço sem controles e conhecimento público. Isso não é outra coisa que não um ataque às bases essenciais da organização social.

A experiência dos advogados com o processo judicial mostra o quanto é necessário para o equilíbrio das instituições e o quanto depende da conduta do juiz. Nos processos em que a União foi condenada por crimes da repressão do regime de 1964, nos casos Herzog e Fiel Filho, juízes federais operaram de modo correto esse sistema frente a um Estado onipotente, com o objetivo de garantir a ordem constitucional. Seria extraordinário que os processos de combate à corrupção correspondessem a esse ideal e não contivessem aquelas máculas —e a Lava Jato não deixasse como legado a ilusão de que, frente à corrupção, só há eficácia no despotismo de juízes e procuradores em processos sem regras.

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Em confronto com o governo ao qual se associou, Moro exige respeito a princípios que, como juiz, ocultou no lado escuro do arbítrio e da prepotência. Esse respeito é devido, mas na defesa da democracia não há espaço a compartilhar com quem a devasta. Ainda assim, o ex-juiz, se desejar obter seu registro legal como advogado, será protegido pelas garantias constitucionais que negou a quem antes julgou. Poderá entrar no lado claro da cena, mas deixando na porta e esquecendo no passado as armas que não poderá usar mais.

Samuel Mac Dowell de Figueiredo e Marco Antônio Rodrigues Barbosa

Advogados, são fundadores do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian – Advogados

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