quarta-feira, 10 de junho de 2020

Os mortos de cada um, Ruy Castro, FSP

Mentiras sobre o número de casos da Covid não trarão nossos amigos de volta

Matemática, nem pensar. Em sua incompatibilidade com o conhecimento, Jair Bolsonaro mete as patas traseiras pelas dianteiras até na mais elementar aritmética. Basta ver seu uso das quatro operações: somar, diminuir, multiplicar e dividir.

Começou por dividir o povo brasileiro em “nós” contra “eles”, imaginando que sua facção —“nós”, digo, eles— fosse majoritária em relação aos que se oporiam aos seus desmandos —“eles”, digo, nós. Um ano e meio depois de sua posse, o resultado está nas ruas. Além dos 30 jecas que vão ao Alvorada para cacarejar aos seus palavrões, os que ainda saem para defendê-lo só podem redobrar em violência, já que estão minguando em número.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro vê multiplicarem-se os que repelem sua política de negação da pandemia, agressão às instituições, destruição da Amazônia, extermínio do povo indígena, racismo explícito, desmantelamento da educação, da cultura e do patrimônio e suas agora declaradas ligações com corruptos. A aversão a ele já não se limita aos brasileiros de várias cores políticas e partidárias. Vem também de importantes instituições internacionais com quem o Brasil mantém —ou mantinha— relações. Quem vai querer negociar com um país nas mãos de um desequilibrado?

E, ao maquiar o número de vítimas diárias da Covid, para fazer parecer que elas estão diminuindo, Bolsonaro pensa que ninguém aqui sabe somar. Mas não é uma questão de tabuada. Por trás de cada número, há alguém que seguiu conosco pela vida, que nunca mais veremos e em cujo sofrimento final não suportamos nem pensar.

Cada um de nós já tem mais de uma pessoa por quem chorar nesta pandemia. Alguns dos meus mortos são Aldir Blanc, o desenhista Daniel Azulay, o economista Carlos Lessa, a cantora Dulce Nunes e o fotógrafo Pedro Oswaldo Cruz. Eu os estimava e admirava. As mentiras de Bolsonaro não os trarão de volta.

A cantora Dulce Nunes, vítima da Covid-19
A cantora Dulce Nunes, que morreu em 4.jun.2020, vítima da Covid-19 - Reprodução
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Hélio Schwartsman Existe uma imunidade oculta?, FSP


Há pesquisadores com currículos respeitáveis que ousam desafiar a ortodoxia científica. Um deles é Sunetra Gupta, professora de epidemiologia teórica da Universidade Oxford.

Talvez para contrastar com o modelo do Imperial College, que pintava cenários sombrios para o mundo (que estão se confirmando em muitos casos), Gupta e seu grupo apresentaram em março um estudo rival que apontava um quadro bem mais róseo. No modelo da professora oxfordiana, a letalidade real da Covid-19 seria da ordem de 0,1%, ou menor —pelas estimativas mais ortodoxas fica entre 0,5% e 1%.

A diferença se explica porque Gupta acredita que o vírus é muito mais prevalente do que se imagina. Em seus cálculos, em março, cerca de 50% da população britânica já teria tido contato com ele. Era uma hipótese exuberante, mas não impossível.

De lá para cá, saíram os resultados de inúmeros inquéritos sorológicos, que apontam proporções bem mais modestas de portadores de anticorpos. Elas ficariam quase sempre abaixo dos 10% da população, chegando a 20% só em lugares duramente atingidos, como Nova York. Seria uma excelente oportunidade para Gupta se corrigir.

A pesquisadora, porém, insiste em seus cálculos iniciais. Critica a qualidade dos testes e diz que há uma espécie de imunidade oculta, que seria resultado de características genéticas e da exposição a outros coronaviridae e por isso não aparece nos exames que buscam por anticorpos específicos.

Penso que devemos desconfiar das posições desses dissidentes, mas sem nunca deixar de ouvi-los. Mesmo que estejam errados no atacado, como Gupta parece estar, não é impossível que estejam em melhor posição do que outros para enxergar coisas que o consenso negligencia. Há uma imunidade epidemiologicamente relevante que não conseguimos detectar? É algo que vale investigar. A ciência aprende com erros, mesmo quando os cientistas não os admitem.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".