sábado, 6 de junho de 2020

Como seria uma quarentena na internet dos anos 2000?, Bruno Romani, OESP



    Sérgio Augusto Só o ódio não é fake, OESP

    Livro reconstitui a evolução da ideia fixa de que comunistas planejam dominar o Brasil

    Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo

    06 de junho de 2020 | 03h00

    A editora Todavia acaba de entrar em alto estilo no mercado de livros eletrônicos, com uma coleção de ensaios meditados e produzidos durante a pandemia por intelectuais do calibre da economista Laura Carvalho e dos cientistas políticos Marcos Nobre e Conrado Hubner. São e-books com, em média, 100 páginas (ou telas), todos fulcrados no inacreditável governo Bolsonaro e à venda em plataformas como Amazon e Apple. O primeiro da série, Ponto-Final, de Nobre, está na rede desde o último dia 29. 

    No fim deste mês, a editora Caminhos lança Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas do Brasil, de João Cezar Castro Rocha, em formato tradicional. Castro Rocha é professor de literatura comparada da Unerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e um obstinado estudioso do iracundo obscurantismo bolsonarista desde quando todo mundo só tinha olhos para a Lava Jato e a agenda econômica do Posto Ipiranga.

    Os dois livros, inteligentes, bem argumentados e sem ressaibo acadêmico, nos ajudam a compreender com consistência e sutileza o pesadelo que passamos a viver depois da eleição do mais ignorante, grosseiro e nefasto presidente da história da República. São duas análises complementares, sem ordem preferencial de leitura, embora por enquanto apenas Ponto-Final, por sorte o de maior amplitude, esteja disponível. 

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    Marcos Nobre trata da guerra de Bolsonaro contra a democracia em suas várias instâncias, o que inclui, evidentemente, sua guerra contra a cultura. Ainda durante as eleições de 2018, Nobre rotulou o futuro presidente de “o candidato do colapso”, labéu paulatinamente justificado nos primeiros 14 meses de seu mandato. A pandemia pode apressar a derrocada. 

    O capitão não governa, só sabe hostilizar, ameaçar, agredir, cortar verbas, destruir. “Ele transformou a devastação em estilo de governo”, diz Nobre. Em seu governo, só o ódio não é fake. Cercado de ministros civis e militares de inauditas incompetência e sabujice, ele não preside, ele comanda uma guerra. Civil. Prometida reiteradas vezes. E é por isso que se empenha em armar a população, como se dela, armada, precisasse para se proteger dos 70% que não o apoiam. Mas as milícias precisam renovar seu arsenal, certo? 

    Por acreditar que “o xingamento despolitiza”, não ajuda em nada a entender o que estamos vivendo e nos desobriga de pensar, Nobre é contra tratar Bolsonaro como burro e demente. Desobrigar de pensar é, a seu ver, um dos grandes objetivos do projeto autoritário do capitão. Para ele, a disputa política segue uma lógica belicista e a cultura de morte que a acompanha. 

    “É uma política de morte que considera conversa fiada a ideia de que a disputa política se faz sobre um terreno comum compartilhado e compartilhável”, acrescenta Nobre. Por inviabilizar a convivência democrática, só a necropolítica serve ao objetivo principal do presidente, que sempre foi destruir a democracia e, consequentemente, impor uma ditadura. 

    Ponto-Final, que não deveria ter esse hífen, é uma das expressões prediletas de Bolsonaro, principalmente ao lidar com a imprensa, expediente típico de quem exige ter a última palavra e impor o silêncio numa discussão. Coincidência ou não, ganhou esse nome a lei que em 1986 paralisou os processos contra agentes da ditadura militar argentina, mas acabou declarada inconstitucional em 2005, levando à prisão diversos de seus verdugos. Nobre alerta: “É uma expressão traiçoeira, volta-se sempre contra quem faz uso dela”. 

    Como é sabido e lamentado, não impusemos sequer um ponto e vírgula à ditadura de 64, o que por certo viabilizou a ascensão, para não falar da mera existência do bolsonarismo e seu culto ao torturador Ustra e dos zumbis da linha dura frotista que presentemente vagam pelo Planalto. 

    Em suas crônicas do Brasil intoxicado pela retórica do ódio, o prof. Castro Rocha passa pela blitzkrieg orientada em escala mundial por Steve Bannon, o Dr. Mabuse das fake news, para logo chegar à nossa jabuticaba digital, com seus influenciadores de aluguel e seu vasto exército de robôs, ora investigados pela PF e sitiados por uma CPMI. 

    No DNA do “gabinete do ódio” misturam-se a velha Doutrina de Segurança Nacional e suas paranoias sobre “inimigo interno”, o discurso revanchista e revisionista sobre o golpe de 64 fermentado no projeto Orvil (o anagramático Livro Secreto do Exército com que o general Leônidas Pires Gonçalves tentou em vão abafar e desautorizar os documentos e relatos irrefutáveis sobre as arbitrariedades, torturas e desaparecimentos de corpos na ditadura, denunciados no livro Brasil: Nunca Mais) e as alucinações pornofascistas daquele astrólogo da Virginia, o Svengali ideológico de várias Trilbis que (de)compõem o governo Bolsonaro. 

    O prof. Castro Rocha reconstitui, nas necessárias minúcias, a evolução dessa lavagem cerebral marcada pelo ressentimento e a ideia fixa de que comunistas planejam dominar e destruir o Brasil infiltrados nas universidades, na mídia, nas artes – em toda cultura, enfim. Essa ladainha expiatória, cediça e em descrédito desde a Guerra Fria, já lastreou um bocado de ditaduras de extrema direita, inclusive aqui, e continua sendo o cantochão dos bolsonaristas, com eco na cúpula do governo, que enquanto alardeia não pretender um golpe (ou autogolpe), esmera-se em instrumentalizar todas as instituições do Estado a seu favor. 

    A função precípua da guerra cultural bolsonarista poderia ser, mas não é, a imposição dos valores de sua grei, que inexistem ou são anulados por falas e atos de seu líder, cujo único desígnio, vale insistir, é a destruição sistemática das instituições. Para o professor, “chegou a hora de dizermos com todas as letras que é um governo de extrema direita, apenas interessado num projeto autoritário de poder cuja finalidade última é eliminar todo aquele que pense de forma diversa”.

    Livro retrata cidade que resistiu ao fascismo e foi inundada por uma represa, OESP

    Bruna Meneguetti*, Especial para o Estado

    06 de junho de 2020 | 16h00

    Há uma comuna no Norte da Itália chamada Curon Venosta, na província de Bolzano, uma região montanhosa quase na divisa com a Áustria que se tornou local turístico. Sua maior atração é um campanário semissubmerso, a única edificação que sobrou após uma represa construída na região engolir todo um vilarejo. A paisagem bonita e as particularidades do local podem fazer com que esse detalhe passe apenas como uma curiosidade para a maioria das pessoas, que tendem a assimilar a história com o olhar frio de quem está no futuro. Porém, não é isso que Marco Balzano propõe no romance histórico Daqui Não Saio

    Marco Balzano
    O campanário de Curon Venosta, na região de Bolzano, na Itália Foto: Glavo/Pixabay/Bertrand Brasil

    “Se a história daquela terra e da represa não me tivesse parecido desde logo capaz de abrigar uma história mais íntima e pessoal (...), se ela não me parecesse de imediato ter um valor mais geral para falar de descaso, fronteiras, violência do poder, importância e impotência da palavra, eu não teria encontrado interesse suficiente para estudar aqueles acontecimentos e escrever um romance”, explica o escritor no posfácio do livro. Assim, a partir de visitas e pesquisas na região, Marco Balzano criou a personagem Trina, que, no romance, narra a própria história para Márica, sua filha desaparecida. 

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    É por meio da narrativa de Trina que vamos entendendo os pormenores que coligiram na represa e como esses detalhes fizeram com que sua construção fosse inevitável. O relato começa em 1923, quando Mussolini obriga a população da cidade a usar somente o idioma italiano e envia pessoas do sul da Itália para ocupar cargos na região, tomando empregos dos cidadãos de Curon. Apesar de o local fazer parte da Itália, a maior parte de seus habitantes falava – e ainda fala – alemão, porque a província de Bolzano era da Áustria até a 1ª Guerra Mundial, quando o território foi anexado à Itália. 

    Dessa forma, as mudanças de idioma fizeram com que a cidade fosse uma das primeiras a sentir o peso do fascismo. Segundo Trina, “Mussolini mandou renomear estradas, rios, montanhas”, além de ‘italianizar’ os nomes de todos da região. Nesse cenário, a narradora, que estudava para ser professora, começa a sua relação com as palavras. Esse tema percorrerá todo o livro de modo a mostrar que a leitura e escrita podem ser dádivas e dar poder às pessoas.

    Após aprender italiano, Trina começa sua resistência contra o fascismo ao aceitar o convite de um padre para dar aulas de alemão às crianças. Também é esse o momento em que a religião começa a aparecer com força na narrativa. “Disse que, se quiséssemos de fato lecionar, que fôssemos às catacumbas. Ir às catacumbas significava dar aulas clandestinamente. Era ilegal e significava multas, espancamentos, óleo de rícino”, explica a personagem à filha em seu discurso em segunda pessoa.

    O primeiro ponto alto de tensão do livro é justamente relacionado às aulas. A amiga de Trina, que ela convence a se tornar professora, é exilada no dia do casamento da narradora. “Teve tratamento pior que o de uma p (...), foi obrigada a desfilar pelas ruas com algemas nos pulsos”, conta ela, que quase não conseguiu subir ao altar devido ao abalo emocional que sentia. A partir de então, o livro se intensifica e os problemas se agravam, mudando a vida pacata no campo. 

    Até esse momento, a represa era apenas uma ameaça antiga ao povo. Ela havia sido anunciada pela primeira vez em 1911, porém o marido de Trina, Erich, sabe que voltará a ser lembrada a partir do momento em que a guerra estourar, em 1939. Isso porque Mussolini mandou construir um polo industrial em Bolzano, de forma que a província e sua demanda de energia crescem. Para Erich, os fascistas sabiam que logo os homens de Curon iriam combater na guerra, achavam que eles não passavam de camponeses e que era “a hora certa para aproveitar”. 

    Em 1940, as palavras em italiano que Trina é capaz de ler trazem outra má notícia: é expedida a licença para a construção da represa. Esse, assim como outros avisos, são sempre colocados em italiano, impedindo que a maioria das pessoas os pudesse ler. “As línguas tinham se tornado marcas raciais. Os ditadores as tinham transformado em armas e declarações de guerra”, reflete a personagem. 

    Enquanto a ascensão de Hitler acontece, a cidade, assim como a casa de Trina, vai se esvaziando. A primeira a ir embora é Márica, na época com apenas dez anos. “Você não merece conhecer aqueles dias de escuridão. Não merece saber quanto gritamos seu nome”, narra Trina após toda a família se mobilizar e desistir das buscas pela caçula. A decisão da filha vira um sofrimento que, claramente, a mãe jamais será capaz de superar. Já durante a guerra, Erich é obrigado a lutar no front e Trina também sente o distanciamento do filho, que tornou-se nazista. Em dado momento, recebe mulheres que batiam em sua porta com as cartas dos maridos escritas em italiano.

    “Não havia muito para ler, porque a censura cortava quase tudo. (...). Então, para me livrar delas, inventava (...) Encerrava com frases de amor idiotas, assim as esposas voltavam para casa animadas. Uma delas, chamada Cláudia, abria uns olhos deste tamanho e exclamava: ‘o front o tornou romântico’”.

    Além de trazer um alívio na narrativa e mostrar novamente a importância de entender as palavras, o trecho pode trazer outro detalhe: a oralidade usada indica que talvez a obra esteja sendo narrada em voz alta e que a filha de Trina tenha retornado após a velhice da mãe para ouvir a história da família. Essa hipótese é reforçada ao longo do livro, primeiro pelo fato de o relato ser dirigido a Márica e segundo porque Trina sempre cai na tentação de queimar suas recordações e escritos de tempos em tempos. No entanto, esses detalhes serão sempre hipóteses impossíveis de ser confirmadas pelo leitor. 

    Mesmo quando todo o perigo da guerra parece ter passado e o filho de Trina deixa de cultuar Hitler, a narradora ainda se sente vivendo sobre as rédeas do fascismo, porque, em 1946, as escavações da represa são retomadas, ignorando a população de Curon, que tanto sofreu para garantir o seu pedaço de chão durante a guerra. Naquele período, Trina e outras tantas pessoas tiveram que abandonar suas casas, torcendo para que o próprio lar ainda estivesse lá quando retornassem. Depois de acompanharmos todas as dificuldades que Trina e sua família enfrentam é que nos tornamos capazes de entender verdadeiramente porque a construção da represa no local é de uma violência brutal. 

    Apesar de ressaltar a ajuda de padres na defesa de seu povo, como nos vários momentos em que são fundamentais durante a resistência contra o fascismo, o nazismo e a represa, Trina não deixa de tecer críticas à fé, que provocava imobilidade nas pessoas da cidade. De acordo com a personagem, o trabalho do responsável pelas obras “nunca sofria com crises, porque crescia onde houvesse confiança inerte no destino, fé absolutória em Deus, descaso daqueles que só têm sede de tranquilidade”. No entanto, é possível entender quem Trina critica: após encarar uma guerra, o povo da cidade quer apenas acreditar que terá um longo momento de paz. Por isso, as pessoas demoram a entender que a represa as deixará sem casa se não agirem logo. Esse entendimento da natureza humana que o livro propõe pode ser uma resposta para tantos momentos históricos em que a população preferiu simplesmente fechar os olhos a admitir algo que estava óbvio. 

    Na narrativa, esse é o momento em que o poder das palavras volta com carga total. Trina ajuda a escrever para diversas autoridades, até mesmo ao papa, com o intuito de impedir a represa. “Naqueles dias parecia que as palavras podiam mover montanhas. Que o erro mais grosseiro tinha sido não as interrogar, não as procurar, não as fazer falar antes”, narra ela. No entanto, os esforços se mostram inúteis, mostrando que as palavras também têm um limite até onde podem chegar. As pessoas apenas parecem perceber que precisam agir em peso quando a construtora fecha as comportas da represa sem avisar ninguém e, no dia seguinte, a população acorda com meio metro de água nas casas. No entanto, é tarde. Resta apenas exigir casas novas para aqueles que serão desabrigados e sustento ao governo durante o tempo em que não puderem ter outra propriedade. 

    No fim, como muitas vezes acontece, as autoridades vencem, mas a represa produz pouco. “É muito mais barato comprar energia das centrais nucleares francesas”, explica Trina, contando que até a raiva amaina, rendendo-se “a alguma coisa maior cujo nome não conheço”. Ironicamente, a única edificação que sobra da cidade é o campanário citado no começo do texto, um resquício da resistência da fé, pois o pedido ao papa apenas resultou na ordem de poupar a torre.

    *BRUNA MENEGUETTI É JORNALISTA E ESCRITORA, AUTORA DO ROMANCE HISTÓRICO ‘O ÚLTIMO TIRO DA GUANABARA’ (ED. REFORMATÓRIO, 2019)’, ENTRE OUTROS LIVROS