sexta-feira, 5 de junho de 2020

Queda na poluição inspira busca por soluções sustentáveis pós-pandemia, FSP

Grupos em São Paulo e outras cidades pedem que benefícios ambientais no isolamento sejam priorizados em políticas

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SÃO PAULO

No ano em que "a Terra parou", o dia mundial do meio ambiente, celebrado nesta sexta (5), passou a contar com um ar mais limpo, cidades menos ruidosas, flagrantes de animais circulando mais próximos das ocupações humanas, e dados fora da curva da emissão de gases-estufa, causadores do aquecimento global.

A diferença nos níveis de poluição durante a quarentena adotada em todo o mundo para combater o coronavírus é atestada por satélite e também ao vivo, pelos moradores das grandes cidades. Nos últimos dois meses, eles passaram a compartilhar nas redes sociais fotos de um céu mais limpo, depoimentos sobre o ar mais leve e vizinhanças mais silenciosas.

A poluição do ar está ligada à morte de cerca de 7 milhões de pessoas por ano, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), e também pode agravar as crises respiratórias causadas pelo coronavírus.

Imagem feita pela Agência Espacial Europeia mostra queda na concentração de dióxido de nitrogênio na Europa durante medidas de isolamento social
Imagem feita pela Agência Espacial Europeia mostra queda na concentração de dióxido de nitrogênio na Europa durante medidas de isolamento social - 16.abr.20/Agência Espacial Europeia/AFP

Um estudo da Universidade Harvard (EUA) mostrou que a letalidade da Covid-19 é 8% maior em regiões onde a concentração de material particulado inalável (MP 2,5) é maior que um micrograma por metro cúbico (1 μg/m3).

Desde que a quarentena começou na região metropolitana de São Paulo, em 24 de março, até o fim de maio, a Cetesb registrou 48 dias com qualidade do ar classificada como "boa" em todas as estações de monitoramento. Apenas três dias marcaram qualidade do ar ruim em uma ou mais estações.

No início de abril, a concentração de monóxido de carbono e também de poluentes de veículos pesados, como óxidos de nitrogênio e material particulado, chegaram a cair aproximadamente pela metade. Em maio, a diferença em relação aos índices do ano passado foi menor, o que a Cetesb atribui à falta de chuvas nesse mês em relação a 2019, quando houve maior dispersão de poluentes.

A experiência de viver em uma cidade com menos poluição tem inspirado movimentos da sociedade que buscam formas de manter o benefício ambiental após o período de quarentena.

Nesta sexta, 24 ONGs reunidas na Coalizão Respirar lançam o manifesto "Queremos respirar no ‘novo agora'", pedindo ao poder público que a retomada econômica inclua condicionantes ambientais, principalmente nos pacotes de ajuda ao setor privado.

O manifesto sugere seis medidas: veículos mais limpos; incentivo ao transporte individual ativo, como planejamento de vias urbanas para pedestres e ciclistas; frota de ônibus não-poluente e de qualidade; atualização dos padrões de monitoramento da qualidade do ar; aprovação da Política Nacional de Qualidade do Ar (PL 10.521/2018); e, por fim, combate ao desmatamento e a queimadas.

As queimadas na Amazônia aumentam a poluição em cidades da região Norte. Diante de um recorde em agosto do ano passado, a fumaça chegou ao Sudeste e escureceu o céu em uma tarde em São Paulo.

Como a pandemia não inibe o desmatamento no país, o ciclo de desmate e queimadas na Amazônia também deve contribuir para o aumento das emissões de carbono do Brasil, que neste ano devem crescer de 10% a 20% em relação às emissões de 2018, segundo estimativa do Observatório do Clima.

Imagem de satélite mostra redução da movimentação náutica em Veneza entre abril de 2019 e abril de 2020
Imagem de satélite mostra redução da movimentação náutica em Veneza entre abril de 2019 e abril de 2020 - Agência Espacial Europeia/Divulgação

No mundo, de acordo com o Global Carbon Project, as emissões de carbono devem cair entre 4% e 7%, principalmente devido à queda de 50% nas emissões de transportes superficiais ao redor do globo.

Ao contrário do Brasil, que tem no desmatamento a principal causa das emissões de gases-estufa, o restante do mundo tem no setor de energia e combustíveis o principal desafio para reduzir emissões.

Se a taxa for mantida anualmente, por meio de políticas de retomada econômica verde, o mundo poderia cumprir o Acordo de Paris e evitar as consequências mais trágicas do aquecimento global, como o desaparecimento de países-ilha.

Outra fonte poluente em queda durante a quarentena é a sonora. Embora seja menos perceptível, ela também é letal. Um estudo da OMS em cidades europeias calculou que o barulho do trânsito nas cidades influencia a pressão sanguínea e ataques cardíacos, reduzindo os anos de expectativa de vida das pessoas.

Segundo medição da associação ProAcústica, que mantém um mapa do ruído da cidade de São Paulo, a percepção de ruído chegou a cair 50% na região da av. Nove de Julho, próximo ao Masp.

Além da redução no trânsito, o desligamento de aparelhos de ar-condicionado em prédios comerciais contribuiu, segundo Marcos Holtz, vice-presidente de atividades técnicas da ProAcústica.

“Como o mascaramento dos ruídos dos veículos diminui, você consegue perceber outros sons, de obras, de animais e pássaros que estavam ali, como as maritacas aqui no meu bairro”, diz Holtz.

Para os moradores vizinhos do Minhocão, no centro de São Paulo, a quarentena não representou um alívio. “Com a cidade silenciosa, o som dos carros passando pelo Minhocão fica ampliado para nós”, diz Felipe Rodrigues, morador da região e diretor da Associação Parque Minhocão, que defende a construção de um parque urbano no lugar da via. A associação pediu que o atalho fosse fechado durante a quarentena, mas não teve retorno da prefeitura.

“Uma das etapas de retorno da quarentena poderia testar o fechamento do Minhocão”, sugere o arquiteto Pedro Lira, sócio do escritório Natureza Urbana.

Para ele, é preciso combinar soluções estruturais de longo prazo com outras medidas mais rápidas e baratas, como a restrição do espaço para automóveis e incentivos a calçadões e bicicletas. “É preciso ter coragem para intervir no espaço urbano. A solução do veículo elétrico vai eliminar a poluição, mas não o trânsito.”

Imagens mostram menor poluição na China após epidemia do novo coronavírus
Imagens mostram menor poluição na China após epidemia do novo coronavírus - Nasa

Na China, que já experimenta a retomada das atividades econômicas, as emissões de poluentes também voltaram a crescer em maio e atingiram os níveis pré-pandemia, movidas principalmente por fontes industriais, após uma queda de mais de 40% em fevereiro e março.

Apesar dos discursos de líderes políticos e empresários em favor de uma retomada econômica sustentável em todo o mundo, ainda há poucos sinais de elaboração de políticas que garantam um novo rumo.

Evitar o abre-e-fecha, Fernando Reinach*, O Estado de S.Paulo, OESP


05 de junho de 2020 | 05h00

Para o bem e para o mal, o Brasil se encaminha para um relaxamento gradual do distanciamento social. Nesse cenário, empresas e escolas terão de combinar o distanciamento parcial com um programa de testagem capaz de evitar que repetidos surtos de novos casos de coronavírus provoquem o efeito abre-e-fecha. Isso ocorre quando, após a abertura, uma nova onda de infecções força o fechamento, que é seguido por outra tentativa de abertura, e assim sucessivamente até que tenhamos vacina ou a imunidade do rebanho.

Para implementar sistemas de testagem que evitem repetidos surtos em uma comunidade é preciso entender a cronologia das etapas iniciais da infecção e como os testes se relacionam com essas etapas. O objetivo da testagem é muito simples: identificar e isolar rapidamente as pessoas que estão transmitindo o vírus e as pessoas que podem ter sido infectadas pelo indivíduo inicial, antes que elas também passem a disseminar o vírus. É para isso que são usados os testes.

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São Paulo está em quarentena há mais de dois meses Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

Quando o SARS-CoV-2 infecta uma pessoa podem ocorrer duas situações: ou a pessoa vai desenvolver sintomas ou os sintomas não vão aparecer (são os tais casos assintomáticos). Vamos primeiro analisar o que acontece com pessoas que apresentam sintomas. Depois de a pessoa ser infectada existe um período de incubação (em média 5,2 dias) antes do aparecimento dos primeiros sintomas. Uma das grandes dificuldades em conter a pandemia é que as pessoas infectadas começam a contaminar outras pessoas antes de os sintomas aparecerem. Os estudos indicam que uma pessoa infectada passa a infectar outras pessoas 2,3 dias antes de os sintomas aparecerem e o pico de transmissão ocorre 0,7 dia antes dos sintomas. 

Se estima que 44% das chances de uma pessoa contaminar outra ocorrem antes do aparecimento dos sintomas. Esse período de alta transmissão dura de 7 a 10 dias. Ou seja, aproximadamente uma semana depois do aparecimento dos sintomas a pessoa deixa de infectar outra pessoa com facilidade. Os exames de RT-PCR, que detectam a presença do vírus nas cavidades nasal e bucal, são eficientes para identificar a infecção exatamente nesse período: a partir de 2 dias antes do aparecimento dos sintomas e até 10 dias depois. À medida que o sistema imune começa a combater o vírus, sua quantidade na boca e nariz diminui, e o RT-PCR começa a dar resultados negativos. Essa cronologia demonstra que o RT-PCR é um exame que possibilita identificar pessoas durante o tempo em que elas têm maior possibilidade de infectar outras. Por este motivo o RT-PCR é a principal arma para descobrir pessoas que podem estar transmitindo o vírus. O RT-PCR não serve para detectar as pessoas que já tiveram a doença e se curaram. 

E os testes sorológicos, para que servem? Eles detectam a presença de anticorpos contra o vírus (do tipo IgG e IgM) no sangue. Esses anticorpos fazem parte da resposta imune que leva as pessoas a se curarem. Quando os anticorpos aparecem, sua presença indica que o vírus já está sendo combatido e sua quantidade no nariz e na boca está diminuindo. Os anticorpos começam a ser detectados (se o método for bom) 7 dias depois do aparecimento dos sintomas (IgM) ou até 10 dias depois do aparecimento dos sintomas (IgG). A quantidade de anticorpos vai aumentando com o tempo e chega a níveis facilmente detectáveis 20 dias depois do aparecimento dos sintomas. Quando os anticorpos aparecem, a maioria das pessoas já não transmite a doença ou tem maior dificuldade de transmitir. Isso demonstra que os anticorpos servem para sabermos se uma pessoa já teve a doença (no passado) ou está em processo de cura. Os exames de anticorpos não servem para identificar pessoas que estão transmitindo a doença.

Dito isso, como esses testes são usados para conter o espalhamento da doença? A receita usada em todos os países consiste em primeiro isolar imediatamente em casa qualquer pessoa que apresente os sintomas iniciais de infecção. Além disso é preciso identificar as pessoas que tiveram contato com essa pessoa nos últimos 3 a 5 dias (lembre que quando aparecem os sintomas a pessoa já espalhava o vírus por 2,3 dias) e também pedir a elas que se isolem. Feito isso, a pessoa com sintoma é testada com RT-PCR. Se o resultado for positivo ela deve ficar em casa até se curar e, nos dias seguintes, todos os seus contatos que estão isolados também devem ser testados. Se o resultado da pessoa inicial for negativo, ela é liberada do isolamento juntamente com todos os seus contatos. Se algum dos contatos for positivo, é necessário que ele permaneça isolado e os contatos dessa pessoa também devem ser identificados e isolados. E assim por diante até que a cadeia de contágio seja interrompida (quanto todos os testes, em todas as pessoas isoladas, forem negativos). Como é fácil perceber, isso exige um nível de organização, colaboração e controle enorme, além de necessitar de testes de RT-PCR, cujos resultados sejam oferecidos rapidamente para não manter em isolamento por muito tempo os negativos.

Esse sistema só não é perfeito pois existem os casos de pessoas assintomáticas. Essas, apesar de sabermos que existem, ainda não sabemos quantas são e com que eficiência transmitem o vírus. Para identificar pessoas assintomáticas infectadas na população, a única maneira conhecida é testar semanalmente toda a população de uma escola ou empresa com RT-PCR, uma proposta que só é viável para grupos muito pequenos.

Bom, e qual o papel dos testes que detectam anticorpos em um programa para evitar o efeito abre-e-fecha? Eles só tem duas funções: saber se uma pessoa já foi infectada no passado, ou, em levantamentos no ambiente escolar ou de trabalho saber em um dado momento que porcentagem das pessoas já teve contato com o coronavírus (nesses estudos eles podem ajudar a identificar pessoas assintomáticas depois que elas tiveram a doença).

Os epidemiologistas acreditam que em pequenas cidades, com poucos casos, em escolas e em empresas, esse sistema é capaz de evitar o efeito abre-e-fecha, mantendo as atividades em funcionamento de maneira ininterrupta, impedindo que um número grande da casos surja de maneira inesperada. Dada a incapacidade organizacional dos governos, esses esquemas de testagem e isolamento terão de ser implementados, gerenciados e custeados pelas escolas e empresas. Feliz ou infelizmente no Brasil vai caber a cada organização adotar sistemas desse tipo para garantir a continuidade das atividades na presença do vírus. 

MAIS INFORMAÇÕES: TEMPORAL DYNAMICS IN VIRAL SHEDDING AND TRANSMISSIBILITY OF COVID-19. NATURE MEDICINE HTTPS://DOI.ORG/10.1038/S41591-020-0869-5 ANTIBODY RESPONSES TO SARS-COV-2 IN PATIENTS WITH COVID-19. NATURE MEDICINE HTTPS://DOI.ORG/10.1038/S41591-020-0897-1 

*É BIÓLOGO

'Generais viram que proposta de Bolsonaro é a guerra civil', afirma Gabeira, OESP

Fernando Gabeira, jornalista

Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo

05 de junho de 2020 | 10h25

RIO - Um ano atrás, o jornalista Fernando Gabeira tinha críticas ao presidente Jair Bolsonaro, mas avaliava que as instituições eram suficientes para contê-lo, como expressou em junho de 2019 em entrevista ao Estadão, onde é colunista. Não pensa mais da mesma forma. A pregação em favor de armar a população,  que o mandatário fez na reunião de 22 de abril com ministros, seus movimentos para atrair as Forças Armadas com verbas e cargos e sua aproximação das Polícias Militares foram decisivos para o jornalista mudar de ideia. Agora, Gabeira defende a mobilização dos brasileiros para neutralizar Bolsonaro até 2022 ou para afastá-lo do cargo definitivamente. Para ele, a ação do presidente sugere o espectro de uma guerra civil ou um golpe de Estado, sem, necessariamente, participação direta das Forças Armadas.

"Muito possivelmente ele pode estar articulando um golpe usando Polícias Militares e neutralizando as Forças Armadas", diz Gabeira, em nova conversa com o Estadão, nesta quinta-feira, 4. "Ele pode estar até em um ponto em que não precise usar as Forças Armadas. Basta que elas fiquem neutras e deixem a Polícia Militar atuar."

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O jornalista Fernando Gabeira, em sua residencia na zona sul do Rio de Janeiro Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Gabeira critica a postura dos generais que ocupam cargos no ministério porque na reunião do dia 22 de abril ouviram calados o que considerou a defesa explícita da constituição de milícias com fins políticos. "Para mim é absolutamente novo na história do Brasil: os generais ouvindo a ideia de armamento, armar a população para a sua expressão política, sem terem algum tipo de reação", afirma. 

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Há quase um ano, em entrevista ao Estadão, o senhor fez algumas críticas ao governo Bolsonaro, mas se mostrou confiante nas instituições para contê-lo. Recentemente, o senhor passou a defender que os brasileiros, no Brasil e no exterior, se mobilizem para barrar um possível golpe do presidente. O que aconteceu?

O primeiro aspecto da minha confiança eram os contrapesos democráticos, que estavam baseados no Congresso e no Supremo. Esses contrapesos não foram alterados, continuam tentando fazer frente a esse processo. Mas há sobre eles, hoje, uma carga muito intensa, a partir do bolsonarismo e dos seus aliados. As manifestações foram claramente dirigidas ao fechamento do Congresso e do Supremo. Então, o que alterou bastante é que o Bolsonaro não está aceitando muito bem a presença desses contrapesos, pelo contrário, está tentando neutralizar alguns deles. Esse é um fato. Outro é a relação com as Forças Armadas, que sempre (desde a redemocratização) tiveram, aparentemente, um papel democrático, e funcionaram, ao longo desses anos, recuperando a sua imagem. E as Forças Armadas foram muito envolvidas pelo Bolsonaro. Não só através do trabalho orçamentário, mas também pela visão da reforma da Previdência dos militares, pela entrada de 3 mil militares no governo, entende? E sobretudo agora pela aliança que fizeram na Saúde. Praticamente, (as Forças Armadas) estão atraindo, participando ou partilhando uma política que pode trazer para elas uma repercussão nefasta. Então, isso tudo alterou muito o quadro.

Recentemente, houve algum fato que acelerou a sua mudança de opinião sobre o governo Bolsonaro? Por exemplo, a saída do Sérgio Moro?

Não, a saída do Sérgio Moro, não. Mas aquela reunião do (dia) 22 (de abril), que foi divulgada (por vídeo, liberado por ordem do ministro Celso de Mello, do STF) apresentou alguns fatos alarmantes. O primeiro deles, o mais importante para mim, foi a defesa pelo Bolsonaro do uso de armas. Se você lembrar da campanha eleitoral, o Bolsonaro tinha como (base da) proposta de armamento da população a necessidade de se defender do caos urbano, da violência urbana. Cada pessoa poderia ter uma arma para se defender, eventualmente, de um assalto, de uma invasão da sua propriedade. Mas naquela reunião ficou evidente que ele tem uma visão de armas para a expressão da sua visão política. A pessoa armada teria condições de se expressar politicamente através das armas. Inclusive, sugeriu que isso fosse feito contra a quarentena. Quatro generais do Exército estavam presentes e não moveram uma palha, nem houve um expressão de surpresa. Isso para mim é absolutamente novo na história do Brasil: os generais ouvindo a ideia de armamento, armar a população para a sua expressão política, sem terem algum tipo de reação.

Na campanha de 2018, muita gente dizia "Bolsonaro só fala essas coisas horríveis para ganhar voto, isso não é a sério". Ou então diziam: "Ele já pensou assim, não pensa mais." De certa forma, não ocorreu com ele o mesmo erro que houve com (Donald) Trump (presidente dos EUA), o de achar que ele tinha um discurso para campanha, mas governaria de outra forma?

Bolsonaro, na Câmara dos Deputados, tinha um tática de popularização. Ele utilizava vários temas, como direitos humanos, como a questão das mulheres, da homossexualidade... Ele usava isso para poder se popularizar. A tática dele era pegar algumas pessoas conhecidas, por exemplo Maria do RosárioJean Wyllys, e fazer diante das câmeras alguns debates que sustentariam o seu público. Mas ele não tinha muito ideia de uma proposta para o Brasil. Tinha um saudosismo do governo militar, mas que não tinha correspondência naquele momento com a própria situação das Forças Armadas. Ao chegar ao governo, ele faz uma política de sedução das Forças Armadas. Com uma política de sedução que, em alguns aspectos, é muito certa. Em primeiro lugar, através do Orçamento, da reforma da Previdência, da inclusão de 3 mil militares no governo, da parceria em uma política temerária em relação à covid-19, na utilização do ministro da Defesa em manifestações propondo o fechamento do Congresso e o fechamento o STF... Ele está usando as Forças Armadas, de uma forma bem clara, como um elemento de intimidação. E as Forças Armadas, pura e simplesmente, estão se deixando usar. E isso não é o único perigo dele. Ele tem uma boa penetração nas Polícias Militares. Então, muito possivelmente, ele pode estar articulando um golpe usando Polícias Militares e neutralizando as Forças Armadas. Ele pode estar até em um ponto em que não precise usar as Forças Armadas. Basta que elas fiquem neutras e deixem a Polícia Militar atuar.

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RIO DE JANEIRO RJ 04/06/2020 EXCLUSIVO POLITICA Jornalista e autor Fernando Gabeira em sua residencia de Ipanema na zona sul do Rio de Janeiro FOTO WILTON JUNIOR/ESTADAO

O senhor falou em projeto; quando era deputado, na sua opinião, Bolsonaro não tinha um projeto, era apenas uma coisa de agitação, digamos assim. Pode-se dizer que Bolsonaro tem um projeto hoje? 

Ele não tinha um projeto, nunca teve. Mas ele andou se relacionando com pessoas que tentaram trazer um recheio teórico para o projeto dele. É o caso do Olavo de Carvalho, é o caso do ministro Ernesto Araújo, que tentam dar assim a visão de um projeto cristão, em primeiro lugar um projeto cristão. Em segundo lugar, um projeto nacionalista, contra organismos globais, quer dizer, contra o que eles chamam de marxismo global. Então, isso foi acontecendo. E mais ainda: foi dada a ele, através do Olavo de Carvalho, a necessidade de uma guerra cultural, contra todos os setores da cultura que eles consideram adversários e ligados de alguma forma à esquerda.

Voltando aos militares, quando começou o governo, havia uma expectativa de que seriam um fator moderador dos impulsos do Bolsonaro. Isso ficou para trás?

Olha, aconteceu o seguinte: ao invés de os militares se tornarem moderadores do Bolsonaro, ele se tornou um fator de radicalização dos militares. O general Augusto Heleno, por exemplo, tem se tornado um radical, cada vez maior, dentro do governo. É claro que, no caso do general Heleno, pesou também aquela prisão, lá na Espanha, de um oficial (na verdade, o sargento Manoel Silva Rodrigues) da Aeronáutica com grande quantidade de cocaína. E ele, como o homem do GSI, foi considerado responsável pelo furo de segurança pelo Carlos Bolsonaro. Depois disso ele ficou um pouco assustado e começou a tomar posições mais radicais e se unir a este chamado grupo ideológico. Outros generais, por exemplo, o general Braga Netto (chefe da Casa Civil), que esteve no Rio de Janeiro, na intervenção (na Segurança do Estado em 2018), tem até uma capacidade de organização boa. Ele é um homem que entende de organização, gosta de organizar. Eu vi, ele me mostrou o trabalho dele de organização, mas ele não tem condições de segurar o Bolsonaro. Da mesma maneira, o (vice-presidente Hamilton) Mourão não tem esse papel. O Mourão sempre foi considerado pelos próximos ao Bolsonaro como um adversário em potencial. Então, ele se recolheu também. O general (Luiz Eduardo) Ramos (chefe da Secretaria de Governo), que deu entrevista dizendo que é um democrata, que são todos democratas e que é uma ofensa às Forças Armadas pensar que elas podem estar sendo cúmplices de um golpe, ele também é o cara que está fazendo a política do Bolsonaro. Por exemplo, ele estava presente naquele dia em que Bolsonaro falou que ia armar todo mundo, que era necessário armar todo mundo. Então, esses generais viram que a proposta do Bolsonaro é a guerra civil. Eles sabem muito bem que Bolsonaro é um homem que ganha as eleições e denuncia as eleições como fraudadas. Então, com as armas na mão, o que vai querer fazer? Vai querer se rebelar. Eles sabem disso. Então, não adianta o general Ramos dizer é uma ofensa às Forças Armadas pensar que elas podem (dar um golpe). Mas diante desse silêncio de cumplicidade ali, o que você pode pensar? Se você não ofende as Forças Armadas pensando nisso, você ofende a sua própria inteligência tendo que escolher entre uma coisa e outra

O que explica a reação do Bolsonaro à pandemia, chamando de gripezinha, pregando contra o isolamento, saindo às ruas e provocando aglomerações?

Olha, Bolsonaro pensa muito curto. Ele pensou o seguinte: "O que isso pode fazer comigo? O que isso pode representar para o meu governo? Então, uma crise econômica, o desemprego, vão atrapalhar minha gestão. Então, vou negar essa epidemia." Ele negou a epidemia porque achava que era contrária a ele. O mesmo lance que o Trump fez nos Estados Unidos, até certo ponto. Eles intrepretaram a epidemia como uma coisa que era destinada a enfraquecer o governo deles. Eles não viram a neutralidade da epidemia. Tanto que aqui no Brasil o próprio ministro das Relações Exteriores chamou de vírus comunista. O vírus era um produto do comunismo, destinado a enfraquecer os governos democráticos ocidentais. Então, ele (Bolsonaro) pode ter tido essa visão, de que era um vírus comunista, destinado a enfraquecer o governo dele. Então, ele precisava negar o vírus. Qual foi o processo de negação? Primeiro, dizer que não era importante, que era apenas uma gripezinha. Quando começaram a surgir as mortes, eles disseram que o número de mortos era inflacionado, que estavam dizendo que morreu mais gente de coronavírus que de fato morreu — quando, na realidade, tudo indica que essas mortes são subnotificadas. Quando começaram a enterrar as pessoas, eles começaram a negar que os corpos estivessem dentro dos caixões, que eram pedras, que estavam enterrando caixão vazio...

É uma visão de política como guerra, não?

Exatamente. "Não existe vírus, existem eles contra mim. Se eles estão do lado que acha que o vírus é importante, é porque é alguma coisa contra mim..."

Inicialmente, o governo avaliou que a divulgação do vídeo do dia 22 foi boa, porque reforçou o entusiasmo do bolsonarismo, fortaleceu a narrativa do governo nas redes. Mas depois o presidente viu sua rejeição aumentar nas pesquisas, com redução na proporção dos que consideravam o seu governo regular. A exibição do Bolsonaro raiz em horário nobre assustou as pessoas?

O que aconteceu foi o seguinte: a divulgação do vídeo mostrou que Bolsonaro não tem condição de ser presidente da República. Mostrou que ele é um presidente incensado por aquelas pessoas que veem nele um mito. Acho que o Bolsonaro está cada vez mais reduzido àquela fração de pessoas despolitizadas ou os polititizados que estão muito agrupados na extrema direita. Isso é um processo que está avançando e não terminou, o isolamento dele não terminou.

Como explicar o apoio de neofascistas? De onde veio essa turma?

Olha, essa crise mundial, que repercutiu, que acabou avançando na eleição de presidentes como Trump, como Bolsonaro, só se agrava. Então, nesses momentos de crise, esses movimentos surgem, tanto à direita como à esquerda. Neste momento, os mais visíveis estão à direita. Então, eles encontaram no Bolsonaro uma espécie de possibilidade de projeção política. As manifestações estão cada vez mais claramente demonstrando os símbolos. Aquela manifestação feita diante do Supremo Tribunal Federal, você vendo a imagem, diz: é a Ku Klux Klan. Ou é uma imagem do nazismo, daquele momento, quer dizer, tem todas as características simbólicas. E tem outros símbolos de supremacia branca, os caras tomando copo de leite, curiosamente, para passar mensagem subliminar (em uma live nas redes sociais em 1º de junho Bolsonaro aparece tomando um copo de leite puro; naquele dia era comemorado o Dia Internacional do Leite, porém, nas redes sociais, o gesto foi associado com um costume dos supremacistas brancos dos Estados Unidos de usar leite como um símbolo). Essas coisas que a gente está vendo.

Uma hora é um secretário que se fantasia de Goebbels para praticamente lhe repetir as palavras. Outra são apoiadores de tocha e máscaras na porta do STF, lembrando caminhadas nazistas. O próprio presidente citou uma frase que foi usada por Mussolini. É tudo coincidência?

Eles negam, mas se você olhar... O livro do Umberto EcoO Fascismo Eterno, lista as 14 características essenciais, que ele considera do fascismo eterno. E quase todas estão presentes no Brasil. O ultracionalismo, a admiração pelas armas... Quer dizer, todas as características principais do fascismo estão presentes, o pavor da modernidade... Isso está presente, são características do fascismo eterno. O machismo, o culto das armas, o namoro com a morte, tudo isso é caracteristica do fascismo. Está lá no livro do Umberto Eco, que acho uma pessoa insuspeita para falar disso. Escrevia composições, pariticipava de concursos de composições, sob o fascismo, viu chegarem os americanos, estudou a vida inteira isso. Agora, estamos caminhando para o fascismo tabajara, com características próprias, não tem a consistência teórica necessária para isso, mas tem caracteristicas.

Como o senhor avalia a participação de Bolsonaro nas manifestações que pedem o fechamento do Supremo e do Congresso?

Evidentemente, qualquer democrata, diante de uma manifestação desse tipo, passa longe. Ele (Bolsonaro) vai lá saudar os manifestantes. Meio que demonstra, com isso, que tem uma simpatia pela causa deles. Ele tem alguma simpatia pela causa do fechamento do Congresso e do fechamento do Supremo. Agora, no último domingo, ele agravou isso mais. Trouxe com ele no mesmo helicóptero, para participar ou para descer na manifestação, o ministro da Defesa (Fernando Azevedo e Silva). Deu um passo além, simbolicamente. Não significa que trouxe as Forças Armadas para o lado dele. Então, simbolicamente, o ministro da Defesa desceu com ele em uma manifestação. Agora, o ministro da Defesa, depois, foi pedir desculpas, pedir desculpas não, foi se justificar junto à Camara dos Deputados, depois foi se justificar ao Alexandre de Moraes, dizer que não foi bem assim, que pegou uma carona, que não sabia... Afinal, o ministro da Defesa não é o ministro da Defesa da Suécia. Ele sabe que todo domingo tem manifestação ali. Por que ia pegar uma carona? Se ele é tão inocente, não pode ser ministro da Defesa.

Bolsonaro pode ser apaziguado, pode ser levado a respeitar as leis?

Acho que é evidente agora, depois de tudo que ele mostrou, quem viu aquela reunião, que Bolsonaro está querendo armar o povo para uma expressão política, para que o povo tome uma posição politica que eles querem. Está querendo criar milícias armadas. Aquilo ele falou com toda a sinceridade. E não voltou atrás nisso, pelo contrário. Continuou disposto a isso. E um homem que quer armar uma parte da população está preparando uma guerra civil. Naquele momento, ficou bastante claro para mim qual é o desígnio dele, qual é a posição. Então, acho que tem que trabalhar para ou neutralizá-lo visando ir até 2022, ou afastá-lo antes disso.