domingo, 12 de abril de 2020

Declaração de Mandetta sobre tráfico e milícia pode ser atribuída à síndrome do holofote, Elio Gaspari, FSP

O ministro Luiz Henrique Mandetta perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia, porque eles também são seres humanos e também precisam colaborar, ajudar, participar”.
Para um ministro da Saúde que construiu sua reputação falando no valor do conhecimento, só se pode atribuir essa declaração à síndrome do holofote. Dialogar com as milícias e com o tráfico é coisa que o poder público do Rio de Janeiro pratica há décadas. O próprio Mandetta já viu a promiscuidade suprapartidária que dialoga com a contravenção em Mato Grosso do Sul.
A essência da fala do ministro é um truísmo. Em diversas áreas o poder público precisa dialogar com a bandidagem para trabalhar em paz. O que ela não precisa é legitimá-lo, coisa que Mandetta fez. Essa legitimação não funciona apenas como um gesto simbólico. Ela ampara organizações criminosas. Além disso, tanto os traficantes quanto as milícias dividem-se em facções. Como se faria esse diálogo: numa assembleia?
O ministro da Saúde poderia se informar sobre as consequências de sua fala com o ministro da Justiça, mas faz tempo que o doutor Sergio Moro entrou numa quarentena. Além dele, poderia também recorrer ao acervo de conhecimentos da família Bolsonaro com milicianos. Ninguém deve se meter com decisões profissionais dos médicos, mas eles também não devem ir além delas, atropelando as leis.
Numa guerra, o poder público pode precisar de algum tipo de entendimento com o crime organizado, mas não pode legitimá-lo. Em 1941, o governo americano entendeu-se com a máfia do porto de Nova York para que ela não atrapalhasse seus embarques militares. Mais: em 1943, quando a tropa do general George Patton desembarcou na Sicília, cultivou a simpatia da máfia. O “capo” Don Calogero Vizzini tornou-se prefeito da cidade de Villalba e coronel honorário da exército americano. O preço desse diálogo seria um problema dos italianos.
O general Patton nunca assumiu publicamente a ajuda da máfia.

SEGUNDA-FEIRA

Está entendido que, pelos piores motivos, Jair Bolsonaro quer demitir o ministro Luiz Henrique Mandetta. Também está entendido que Mandetta tem seus limites e se dispõe a ir embora para não ser avacalhado.
Mesmo assim, não se pode dizer que Bolsonaro estivesse disposto a demiti-lo na segunda-feira.
Ficou a impressão de que o presidente foi dissuadido por conselheiros militares (abracadabra). Admita-se, contudo, que a demissão iminente de Mandetta foi divulgada por gente que, sabendo-a incerta, queriam que, ao fim, Bolsonaro ficasse mal na fotografia, como se tivesse sido obrigado a engoli-lo.
médico e o paciente querem se livrar um do outro. Ambos esperam o melhor momento.

O ITAÚ UNIBANCO DÁ O EXEMPLO

O Itaú Unibanco anunciará nesta segunda (13) uma doação de R$ 1 bilhão para o combate à Covid-19. O dinheiro irá para a fundação do banco e será administrado exclusivamente por um conselho de profissionais da saúde, onde estarão diretores de hospitais públicos e privados. Dinheiro na veia.
Essa será a maior iniciativa filantrópica já ocorrida no Brasil, e sua lembrança ficará gravada na história da pandemia. Para se ter uma ideia do tamanho da doação, estima-se que em 2016 todas as iniciativas filantrópicas de corporações brasileiras somaram R$ 2,4 bilhões. (Nessa cifra entraram ações relacionadas com cultura, meio ambiente e educação, por exemplo.)
De onde eles estão, Olavo Setubal (1923-2008) e Walther Moreira Salles (1912-2001), criadores dos dois bancos, terão um momento de orgulho.

ANDREW CARNEGIE

Não custa relembrar Andrew Carnegie. Ele foi um pobre imigrante escocês que se tornou o homem mais rico dos Estados Unidos. Em 1901, aos 65 anos, vendeu seu império siderúrgico e passou o resto da vida distribuindo dinheiro. Carnegie ensinou: “Morrer rico é uma desgraça”. Ele se foi em 1919, depois de ter doado US$ 350 milhões. (Algo como US$ 10,5 bilhões em dinheiro de hoje.)
Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
  • 35

OPINIÃO JOSÉ ROBERTO AGUILAR O pêndulo da história - FSP

José Roberto Aguilar
A pele que eu habito me machuca. Como se tivesse espinhos dentro. Nós, brasileiros, nunca estivemos dentro de uma guerra. Agora estamos. A peste chegou com o nome de novo coronavírus.
Eliminou o conforto, a normalidade, a razão e, inclusive, o tempo. Em uma parte do dia sentimos este pânico momentâneo e depois ele some, e a razão volta a sussurrar nos ouvidos: “Tudo isso vai passar”. Sim, vai passar, mas vai deixar rastros que vão conduzir a um caminho de uma nova pele.
O artista José Roberto Aguilar na abertura da exposição "Olhar Sobre Mulher", na Thomas Baccaro Art Gallery - Mathilde Missioneiro - 15.out.19/Folhapress
A epidemia traz consigo uma cruzada tenebrosa: o humanismo contra a barbárie. Junto com a banalização do mal (teoria criada pela alemã Hannah Arendt) caminha a banalização da morte. A eliminação pura e simples dos menos aptos: os idosos.
Aqueles que não têm a capacidade do desempenho e do consumo em uma sociedade capitalista. São, portanto, descartáveis.
Outra epidemia conveniente foi há três décadas: a da Aids.
Eliminou as sociedades alternativas e o amor livre, altamente perigoso para o consumo e a família. A epidemia mais tenebrosa foi a gripe espanhola. Ceifou 40 milhões de vidas. Esta banalização da morte levou ao surgimento do fascismo e do nazismo, ao genocídio de raças “impuras” e à Segunda Guerra Mundial.
O pêndulo da história está sempre em movimento, acompanhando a consciência coletiva, e ele só tem duas direções: para a esquerda, paz. Para a direita, guerra. Esquerda significa o humanismo. O olhar para si próprio e olhar o outro. Cuidar! O outro é você. Saber que a sua pele foi feita de consciência. E de lutas pela igualdade humana. Filósofos, cientistas, artistas, libertários e pessoas comuns ajudaram a costurar essa pele com enorme sacrifício, como demonstra a história. A sua pele é a sua casa, é a sua vida. Esquerda não é só uma posição política. É, antes de tudo, uma consciência humanitária.
A direita é a ordem imperando sobre a razão. A ordem do consumismo, da ganância e do poder. O domínio da mesmice e da sobrevivência do mais apto ao conformismo. A anticultura, a antipele. O guizo da cascavel. Mais do que uma posição política, é a vingança da ignorância.
O maior salto que poderemos dar é reconhecer a nossa barbárie. Todos nós somos as duas coisas. Amor e ódio. Não devemos combater o ódio (a barbárie) em nós mesmos pela luta. Na luta ele se fortalece. Aceitação. Ao aceitar o seu (meu, nosso) ódio, ele perde a força. Isso é mutação, ou a costura de uma nova pele, sempre em transformação. O fim do dualismo e do confronto.
Estarmos preparados para o desconhecido é que vai gerar uma nova economia. Não baseada no supérfluo e na moda, mas focada nas necessidades de uma vida mais despojada. Uma nova sociabilidade, que não se guia na competição individual, mas no abraço social. Os paradigmas do passado se esvaneceram. Traduzir o momento vai ser o maior desafio e para isso vamos ter que cair no aqui e no agora. Vai ser angustiante porque as canções de ninar também desapareceram, assim como o conforto de uma liderança política paternal. É angustiante, mas é a única forma de se ter uma identidade pessoal; isto é, uma nova pele.
A batalha de Armagedon não está na sobrevivência da epidemia do novo coronavírus. Mas em como vamos nos comportar depois dela. Devir e cair dentro do humanismo.
José Roberto Aguilar
Artista plástico, é pintor, performer, videomaker e escritor