terça-feira, 7 de abril de 2020

Nizan Guanaes Vamos brigar em outubro, FSP

A morte, minha cara leitora, meu caro leitor, é suprapartidária

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Saí da quarentena. Tive o vírus, mas não tive sintomas. Teoricamente, estou imune. Mas te digo: não é uma gripezinha. Foram 14 dias de insônia. Como será que eu vou acordar amanhã?
Quero mudar radicalmente a minha vida quando tudo voltar ao normal. Porque tudo não vai voltar ao normal. Posso estar imune ao vírus, mas meu filho mora em Nova York. Não estou imune ao vírus.
O mundo vai mudar depois dessa pandemia, como mudou nas antecedentes. As mudanças de comportamento e de consumo serão duradouras. Será que vamos frequentar lugares públicos e eventos da mesma forma? Acho que não.
Os dados são tão novos e não param de mudar. Ainda não temos software para decifrá-los, mas eles já estão rodando no sistema. Se fosse uma empresa, chamaria antropólogos, filósofos, cientistas sociais, engenheiros de comportamento para entender o que aconteceu e acontecerá.
Depois que fiquei doente, decidi mudar o padrão de consumo. Vou doar ou descartar metade das minhas coisas. Quero comprar saúde, conhecimento.
Já estou perdendo dois amigos para o vírus. E sei que vou perder mais. Meus três médicos foram infectados. Não tem mimimi. Estamos em guerra. Chega de divisão. Vamos deixar pra brigar em outubro. Tá marcado?
Mas, agora, eu torço pelo ministro Mandetta, eu torço pelo Paulo Guedes, eu torço pelo João Doria. E acho importante o bumbo que eles estão tocando: fique em casa!
Já estou perdendo dois amigos, ou será que a esta altura do texto serão três? A Covid-19 fica cada vez mais dramática no Brasil porque ela está ganhando rostos e números, que crescem rapidamente.
Brigar ideologicamente neste momento é um crime contra a humanidade. O Brasil nunca passou por uma guerra como esta. Eu não vou torcer contra. Eu torço para dar certo.
Quando você está com o vírus, a perspectiva é pragmática: cura. Eu posso estar imune ao vírus. Mas meu filho mora em Nova York. Eu não estou imune. Você acha que eu assisto ao jornal como? Com o coração na mão.
Não tive sintomas, mas tive insônia, medo, costas travadas. É óbvio que a preocupação de as empresas quebrarem é muito legítima. Não existe essa dicotomia. Estamos vivendo uma pandemia econômica também. Vamos tratar das duas.
O medo será um bom conselheiro. Ele vai dizer aos homens: chega! Chega de querer ter razão. As UTIs estão cheias, os médicos começam a ficar doentes como seus pacientes, as ruas estão vazias, pessoas e empresas estão quebrando. Isso não é hora de fazer política.
Na Primeira Guerra Mundial, numa noite de Natal, alemães e ingleses pararam a luta insana e jogaram bola para celebrar a data. O medo, as mortes e as falências vão chamar a gente à razão. Você acha que Churchill e Roosevelt eram amigos de Stálin? Não. Mas foram aliados contra um inimigo comum e devastador para estarmos aqui hoje.
Perdi dois amigos, ou à altura deste texto serão quatro? Esta hora pede de nós grandeza, compaixão. Reze pelo meu filho. Eu rezo pelo seu.
Falar de política virou terreno pantanoso. Este texto não é sobre política. Ele é sobre doença, dor, morte, desespero —uma Guernica viral.
Então o que eu proponho é trégua ideológica e união nesta luta. Este é o único desejo da filha de um senhor de 75 anos sentindo muita falta de ar, mas que não consegue quarto para interná-lo.
Porque, enquanto você lia este texto, eu e você já perdemos amigos. E a morte, minha cara leitora, meu caro leitor, é suprapartidária.
Nizan Guanaes
Empreendedor, fundador do Grupo ABC.

Uso de máscaras na emergência do coronavírus pode levar a mudança cultural nos EUA, FSP

Sociedades no leste asiático têm histórico mais longo de cobrir rosto

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WASHINGTON
Há alguns dias, era raro ver pessoas cobrindo o rosto nas ruas de Washington. Bastou que o presidente Donald Trump fosse a público na sexta-feira (3) sugerir que americanos utilizassem máscaras, no entanto, para o costume começar a se difundir na capital.
A expectativa é de que mais e mais pessoas adotem o hábito, enquanto tentam conter a pandemia do coronavírus.
Alguns usam máscaras médicas compradas na farmácia, quando por milagre há estoque. Outros amarram lenços no rosto ou cobrem a boca atrás da gola do casaco. Já circulam pela internet diversos tutoriais em vídeo para quem quiser, por exemplo, transformar uma canga ou uma bandana em máscara.
Com isso, os Estados Unidos podem estar à beira de uma brusca mudança cultural, ainda que dure apenas enquanto a pandemia estiver fora do controle.
Pessoas usam máscaras contra a pandemia de coronavírus em Nova York
Pessoas usam máscaras contra a pandemia de coronavírus em Nova York - Kena Betancur/Getty Images/AFP
Até recentemente, afinal, máscaras eram associadas apenas a países do leste asiático como a China e o Japão, onde esse hábito é bastante comum —ele é inclusive considerado boa educação.
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Nos Estados Unidos, é corrente a ideia, de base racista, de que cobrir o rosto é um costume de outras pessoas, em países distantes, mas jamais algo americano.
A Europa passa por um processo semelhante. A Áustria exige desde a semana passada que a população utilize máscaras para ir ao mercado. Ao fazer tal anúncio, o premiê Sebastian Kurz disse que esse hábito é “alienígena” à cultura de seu país. “Isso vai necessitar um grande ajuste.”
A gravidade desta pandemia pode dar um empurrão ao tal ajuste. O coronavírus já infectou mais de 1,2 milhão de pessoas no mundo e deixou 70 mil mortos.
“Mesmo com a escalada global no número de casos, é surpreendente ver como pessoas fora da Ásia têm tido reticência no uso da máscara”, diz Ria Sinha, especialista em doenças infecciosas na Universidade de Hong Kong.
“Esse pode ser um ponto de inflexão para convencer aqueles que não têm familiaridade com máscaras a vesti-las.”
Há um debate entre cientistas sobre quão eficazes as máscaras são de fato. A ideia é que, cobrindo o rosto em lugares públicos, uma pessoa pode evitar espalhar o vírus. Nesse sentido, o objetivo principal da máscara não é proteger quem veste —e sim as demais pessoas ao seu redor.
Foi com isso em mente que Trump e o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças, na sigla em inglês) recomendaram na sexta-feira que os americanos usassem máscara nas ruas.
Mesmo quem não tem sintomas deveria seguir a medida, porque ainda assim pode transmitir o vírus a outras pessoas. Essa é, por ora, apenas uma sugestão. O próprio presidente disse que não vai segui-la.
Para o sociólogo japonês Mitsutoshi Horii, autor do livro “Masuku to Nihonjin” (as máscaras e os japoneses), de 2012, a decisão de cobrir o rosto não depende apenas de evidências científicas.
“Em epidemias como esta, há uma sensação enorme de incerteza, de vulnerabilidade”, diz. “As pessoas querem fazer algo para se proteger. Qualquer coisa para sentir que estão no controle.”
No caso japonês e no de outros países do leste asiático, a decisão de usar máscaras está relacionada também a um dever perante à sociedade.
“Cobrir o rosto é uma maneira de mostrar às outras pessoas que você está fazendo um esforço”, afirma. “Você não vê quando alguém lava a mão. Não tem certeza de que lavou. Já as máscaras são muito visíveis.”
A popularidade das máscaras no leste asiático está, ao menos em parte, relacionada a sua história. A máscara de proteção a epidemias foi inventada na China durante um episódio altamente letal em 1910.
O médico Wu Lien-teh, que havia estudado na Universidade de Cambridge, adaptou as máscaras cirúrgicas e chegou a um modelo resistente e fácil de usar —o precursor das que são utilizadas hoje.
A máscara virou, naquele contexto, um dos símbolos da medicina moderna na China, conta o antropólogo Christo Lynteris, da Universidade Saint Andrews.
“Wu Lien-teh foi venerado no país. O regime comunista usou ele em sua propaganda. Alguns ainda chamam o item de ‘Máscara Wu’. Há documentários sobre ele. Museus. É uma figura nacional”, afirma Lynteris.
A máscara de Wu foi utilizada em 1918 no restante do mundo durante a gripe espanhola, mas caiu em desuso. No início dos anos 2000, no entanto, com a epidemia respiratória conhecida como Sars, o costume de cobrir o rosto recobrou força no leste asiático.
“Mesmo depois da epidemia as pessoas continuaram a usar a máscara. Virou algo normal, rotineiro naquela região.”
A dúvida, agora, é se sociedades em outras regiões do mundo vão continuar a usar máscaras mesmo depois de a pandemia do coronavírus ter sido controlada. Segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, essa é uma possibilidade, mas não há como saber a resposta por enquanto.
Sinha, por exemplo, diz que um dos fatores decisivos é a pressão da sociedade. Quanto maior o número de pessoas vestindo máscaras na rua, maior a chance de outros seguirem o exemplo. Pode ser que deixar de usar máscaras vire um sinal de desrespeito, como aconteceu em alguns países do leste asiático.
É necessário, também, que a população adote um comportamento voltado ao bem coletivo.
Em sociedades individualistas como a americana, afirma Sinha, as pessoas vão provavelmente se perguntar primeiro o quanto essas máscaras vão protegê-las —para só depois pensar nos demais cidadãos.
Respondendo a quem diz que as populações nos Estados Unidos e na Europa nunca vão usar máscara porque não têm o costume histórico de cobrir o rosto, Lynteris lembra que há poucas décadas a situação era bastante diferente nessas regiões.
“Mulheres costumavam usavam véus embaixo do chapéu, descendo em cima do rosto", diz. "Eu nasci na Grécia e não consigo imaginar minha avó sem cobrir o rosto dela com um lenço.”
Ou seja, Lynteris afirma, não existe nenhum valor fundamental em sociedades ocidentais impedindo o uso máscara. Costumes podem mudar.
Uma última pergunta importante, diz ele, é se as máscaras vão virar um item de moda como aconteceu no leste asiático —onde existem modelos coloridos, estilosos, com ilustrações.
“Se as máscaras continuarem a ser essa coisa azul aborrecida por aqui, elas certamente vão desaparecer depois do coronavírus.”