domingo, 5 de abril de 2020

Longe do centro do universo, Ruy Castro, FSP (definitivo)

O planeta pode passar sem a 'Divina Comédia', 'Hamlet' e 'O Pato Donald'

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Em meio às estatísticas macabras do coronavírus, leem-se notícias que fazem pensar. Pela primeira vez em séculos, os golfinhos voltaram aos canais de Veneza. Alguém fotografou pavões nas ruas desertas de Madri. Os gatos de Roma passeiam fagueiros pela Via Veneto. Numa Nova York em silêncio, ouvem-se rouxinóis na Quinta Avenida. E, no Rio, veem-se raias no Arpoador e gaivotas explorando as areias do Leblon.
Com a quebra do consumo, a produção de lixo plástico diminuiu, para alívio dos rios e mares que o recebem, com o que os peixes, aves e tartarugas ganharam uma chance. Com fábricas inativas e chaminés apagadas, a qualidade do ar também melhorou, inclusive para quem o empesteia. Sem a presença do homem, era inevitável que nossos companheiros de planeta se sentissem seguros para deixar suas tocas e vir dar uma olhada aqui fora. Mas tolos serão se acharem que isso durará para sempre. Tudo ficará sem efeito assim que a vida entrar de novo em ação, de mãos dadas com sua velha parceira —a morte.
O que estamos aprendendo hoje é que, com ou sem a Covid-19, o mundo não acabará, mesmo porque o coronavírus, por mais recém-chegado, faz parte dele. Quem pode acabar um dia é o homem, e, se isso acontecer, o planeta seguirá em frente, com um quorum mais do que suficiente de espécies para continuar vivo e pulsante.

Isso nos fere a vaidade e põe em xeque a antiga ideia-feita, herdada dos gregos e nunca bastante desmoralizada, que entroniza o homem no centro do universo. A atual crise demonstra que, longe de ser o centro, não somos nem periféricos.

O planeta pode passar sem a "Divina Comédia", "Hamlet", a "9ª Sinfonia", "O Pato Donald" e outras criações do espírito humano. Nós é que não podemos passar nem três minutos sem uma função que sempre demos de barato e o vírus está nos ensinando como é cara: respirar.
Pavões caminham por rua de Madri durante quarentena - Jorge Guerrero/AFP
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

As regras do contágio, FSP


A essa altura, muitos leitores já não devem aguentar mais ouvir falar em curvas de contágio, R (número de reprodução), imunidade de rebanho e outros termos da epidemiologia. Ainda assim, ouso recomendar "The Rules of Contagion" (as regras do contágio), de Adam Kucharski, ao qual já fiz alusão aqui.

O livro foi finalizado antes da pandemia de Covid-19, então não trata da ameaça que enfrentamos. Mas Kucharski, que é matemático por formação, conta a história da epidemiologia, que surgiu com o teorema do mosquito de Donald Ross no início do século 20, e consegue explicar com didatismo e sabor literário os princípios sobre os quais ela se assenta.

O resultado é uma fascinante combinação de matemática com biologia, psicologia e várias outras ciências. Até arquitetura entra, quando se avaliam condições de moradia que podem fazer muita diferença numa epidemia.
O mais interessante, porém, é que Kucharski não se limita a tratar de doenças. Ele vai bem além e mostra como os princípios da epidemiologia ajudam a entender fenômenos tão diversos como crises financeiras, violência, fake news e até o marketing.

O autor não esconde as limitações de seu ramo de saber. Diz que, como a epidemiologia se calca muito mais em análises observacionais do que em experimentos —é quase sempre antiético contaminar pessoas com um patógeno para ver o que acontece—, já se sugeriu que ela está mais próxima do jornalismo que da ciência: descreve os acontecimentos enquanto eles se desenrolam, em vez de tirar conclusões de situações controladas.

Pode ser, mas não devemos ignorar os enormes ganhos que estudos observacionais já nos proporcionaram. Foi graças a eles que descobrimos que cigarros causam câncer e que não era uma boa ideia usar raios-X em lojas de sapatos para ver como o pé ficava dentro do calçado, entre vários outros achados que tornaram nossas vidas mais longas e seguras.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".