sexta-feira, 3 de abril de 2020

Merecendo o capitão, Ruy Castro, FSP, (definitivo)

O neto do general obrigava os outros garotos do prédio a lhe baterem continência

  • 19
Uma amiga minha, filha de um major do Exército, morou em Brasília em 1970, apogeu da ditadura. O apartamento de seus pais ficava numa superquadra reservada a militares, de frente para o Eixo Monumental. E, como a vida militar se regula pela hierarquia, seus prédios na cidade seguiam essa hierarquia. Mesmo que com diferença de um andar, um general sempre morava mais alto que um coronel e este idem que os majores e capitães. Aos tenentes, só devia restar o térreo e de fundos.
Como os militares se mudavam para Brasília com a família, a hierarquia se transferia automaticamente para esta —donde um filho ou neto de general tinha preferência, digamos, no elevador, sobre o neto ou filho do de outra patente. Segundo minha amiga, alguns desses meninos, já adestrados no espírito da categoria, exigiam que seus coleguinhas de prédio, filhos de oficiais subordinados, lhes batessem continência, como os pais destes faziam quando cruzavam nos corredores com o generalão.
Foi esse rigor hierárquico que impediu que certos pesos-pesados da ditadura atingissem os postos a que se julgavam destinados --suas patentes os levavam a bater a cabeça no teto e dali não passar. Um deles o general-de-divisão Albuquerque Lima, candidato à sucessão de Costa e Silva, mas que nunca chegaria lá por não ser general-de-Exército —como Médici. Se um general com uma estrela a menos não podia ser presidente, imagine um coronel como Mario Andreazza, que, naquela mesma sucessão, também delirou com a Presidência.
Mas os tempos mudam. Hoje, generais batem continência para um ex-capitão expulso do Exército por indisciplina e que depois se entregou a uma longa e bem paga sinecura de político profissional. Se isso diz algo sobre a nossa pobreza política, diz ainda mais sobre a militar.
Queiram ou não, os generais estão merecendo esse capitão.
(Resende - RJ, 29/11/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro recebe honras militares ao desembarcar na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN).Foto: Marcos Corrêa/PR
Bolsonaro recebe honras militares ao desembarcar na Academia Militar das Agulhas Negras - Marcos Corrêa - 29.nov.2019/Divulgação Presidência

Covid-19 vai vencendo a primeira batalha, FSP

Profissionais de saúde estão se contaminando aos borbotões

  • 19
Eu, por ora, escapei da Covid-19, mas minha mulher não. Médica intensivista e cardiologista, Josiane começou a experimentar os sintomas da doença na semana passada. Ela está se recuperando e, em breve, deverá voltar para a linha de frente. Embora seu quadro tenha sido moderado, não foi nenhum "resfriadinho".
Ciente dos riscos que corria, Josiane já me banira, com os meninos e os cachorros, para o sítio, onde estamos há duas semanas —e ela só me deixou voltar uma vez para levá-la para fazer exames. Nosso isolamento ocorre em condições bucolicamente privilegiadas, mas devo confessar que é angustiante acompanhar a evolução dos sintomas à distância.
Escrevo isso para dizer que estamos perdendo a primeira batalha para a Covid-19. Profissionais de saúde estão se contaminando aos borbotões. No Brasil estamos apenas no início da epidemia, mas, em lugares em que ela está mais madura, os números impressionam.
Na Espanha, quando o total de casos confirmados somava 40 mil, o pessoal de saúde correspondia a 14% dos infectados. No Reino Unido, 25% dos médicos que trabalham para o NHS, o SUS local, tiveram de ser afastados por estar doentes ou para cumprir isolamento. Obviamente, esse tipo de baixa afeta a capacidade do sistema de responder à crise, tanto pela ausência física da mão de obra como pelos efeitos sobre o moral dos profissionais que seguem atuando.
Substituições são necessárias, mas subótimas. A intubação é um procedimento crítico para salvar a vida do paciente grave, mas também uma das situações que expõe as equipes ao maior perigo de contágio. Quando é feita por um médico menos experiente no procedimento, o risco aumenta. Pior, é provável que a dose de vírus a que a pessoa é submetida no episódio da contaminação afete a severidade do quadro que desenvolverá, o que explicaria casos de profissionais de saúde jovens que ficam gravissimamente doentes.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".