quinta-feira, 2 de abril de 2020

Renda básica lança luz sobre o desafio ético do nosso tempo, Fernando Schüler, FSP (definitivo)

Eliminação da miséria é fronteira civilizatória, assim como foi, no século 19, o fim da escravidão

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Thomas Paine foi o dos primeiros a propor, com algum detalhe, uma renda básica universal. Seu desejo não era nada simples: preservar os benefícios da civilização, sendo o maior deles a prosperidade, e corrigir seu maior erro: a miséria.
Em “Agrarian Justice”, escrito na França no anoitecer da revolução, ele defendeu ser um “direito de herança” que cada indivíduo recebesse um bônus, no início da vida adulta, e uma renda incondicionada, aos 50 anos.
Ideias como esta correram o mundo, muito depois de Paine. Nos anos 1990, Philippe Van Parijs (“Real Freedom for All”) popularizou a tese fundamental do movimento em favor da renda básica universal: livrando as pessoas da urgência econômica, elas poderão dizer “não” às múltiplas formas de humilhação social e darão um novo significado à ideia de liberdade individual.
Com argumentos distintos, a tese foi também cultivada pela tradição liberal. Hayek sugeriu uma renda mínima não universal e Milton Friedman é amplamente conhecido pela defesa de seu “imposto de renda negativo” para substituir os programas do “welfare state” convencional.
O tema ganhou relevo com a pandemia. Mais de 50 países já anunciaram modelos variados de transferência de renda, incluindo o Brasil, com o auxílio emergencial aprovado por unanimidade no Congresso.
Que isso migre de programas provisórios a políticas permanentes é um tema em aberto. O país que chegou mais perto de instituir a renda universal foi a Suíça. No plebiscito de 2016 a proposta perdeu por ampla margem, sob muitos argumentos.
Um deles dizia simplesmente que desvincular a remuneração do trabalho não é algo que faria bem à nossa sociedade. A mensagem subjacente: OK para muitas formas de proteção social, desde que se preserve um saudável equilíbrio entre responsabilidade social e responsabilidade individual.
O Brasil é um país com larga experiência em transferência de renda e talvez seja um bom momento para imaginar que sua lógica possa evoluir e cumprir um novo papel civilizatório.
Uma possibilidade é a conversão de um programa de renda mínima, como o Bolsa Família, em um programa de renda básica. Na prática, a ampliação de sua abrangência, valores e condicionantes.
Em caráter substitutivo, isto é, eliminando gasto público não prioritário, incluindo-se subvenções empresariais e programas sociais menos eficientes, com o foco exclusivo na melhora da posição dos mais pobres.
O próprio Bolsa Família foi, historicamente, um avanço em relação a velhas políticas assistencialistas, como a rotineira distribuição de cestas básicas. A renda distribuída em um cartão magnético incorpora o direito de escolha e gera efeitos na economia (multiplicador de 1,78 no PIB, segundo Marcelo Neri).
E mais importante: elimina burocracia. Boa parte dos recursos públicos, em programas assistenciais, se perde na máquina requerida para prestar serviços e distribuir coisas. O conhecido tema da “captura pelos provedores”.
O que a crise do coronavírus fez foi colocar nossas tripas de fora. 43% de nossas crianças vivem em famílias abaixo da linha de pobreza. É um escárnio dar, em média, R$ 190 para os mais pobres dentre essas famílias enquanto continuamos pagando conhecidos privilégios para o andar de cima do setor público. E este é apenas um exemplo.
A renda básica é uma discussão real e crescente no mundo atual. Não acho que ela seja apenas um delírio de engenharia social ou uma panaceia capaz de equacionar o problema social.
Ela apenas lança luz sobre aquele que é o desafio ético do nosso tempo: a eliminação da miséria. É esta a nossa fronteira civilizatória, assim como foi, no século 19, o fim da escravidão.
Quem sabe as placas mais profundas de nossa sociedade, que parecem se mover nessa crise, ajudem a colocar em pauta um tema para o qual não há uma resposta clara, mas que merece ser discutido com informação e racionalidade.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Governo Bolsonaro é lento nas medidas de socorro, diz Meirelles, FSP

Nos últimos dias, o governo de São Paulo tem ouvido clientes de bancos reclamarem de juros em alta e da redução da oferta de crédito —da dificuldade crescente de conseguir empréstimos a taxas e prazos suportáveis, enfim.
O governador do estado, João Doria, e seu secretário da Fazenda, Henrique Meirelles, conversaram com os bancos a respeito, segundo o próprio Meirelles, ex-ministro da Fazenda, ex-presidente do Banco Central e ex-banqueiro.
O que os bancos disseram? Meirelles não se estende sobre o assunto. Em resumo, disseram um “não é bem assim”.
“Levamos a preocupação, as queixas sobre cortes de linha de crédito etc. Não temos os dados, claro. O Banco Central tem, em tempo real, pode saber o spread, a oferta de crédito. Mas deve haver uma contração de crédito com uma crise deste tamanho”, diz Meirelles.
O secretário de Fazenda de São Paulo, Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda, ex-presidente do Banco Central e ex-banqueiro - REUTERS
Na sexta-feira passada, o governo federal anunciou que pretende criar uma linha de crédito de R$ 40 bilhões para pequenas e médias empresas, dos quais R$ 34 bilhões sairiam do Tesouro, da conta do governo federal (que vai fazer dívida para emprestar esse dinheiro, por meio de bancos comerciais, que entrariam com os outros R$ 6 bilhões). A taxa de juros seria de 3,75% ao ano, com carência de 6 meses e prazo de pagamento de 36 meses.
Meirelles diz que “a direção geral [dos planos federais] me parece correta, para ajudar informais, mais pobres, empresas. Mas não adianta ter ideias, é preciso implementação. O governo está lento”.
O pacote de crédito é suficiente? “Não deve ser suficiente, mas isso se deve avaliar mais adiante. Reitero: o problema agora é antes de mais nada de implementação, de regulação imediata das medidas, de fazer o dinheiro chegar aos bancos, às empresas. É uma questão de dias, de dois dias, não se pode esperar uma semana, muito tempo. Com o programa em andamento, vamos descobrir o que mais tem de ser feito”.
O tamanho das necessidades de crédito barato, bancado pelo Tesouro, depende também da duração das restrições decorrentes da epidemia, diz o secretário paulista.
“Como saber se é suficiente sem saber quanto isso vai durar, por exemplo? O que está claro é que precisamos ajudar as empresas a atravessar a crise, manter os empregos, e criar condições para a retomada. Se houver muito desemprego e um número muito grande de empresas em recuperação judicial [sob risco iminente de quebrar], a economia vai se recuperar muito lentamente. A crise se estende”, diz.
O que mais é possível fazer?
Meirelles repete que, primeiro, é preciso normatizar e implementar as ideias novas que têm sido levantadas para aumentar a oferta de crédito (linhas com dinheiro do Tesouro, compras de dívida privada pelo Banco Central etc.). Isso desafogaria um pouco as empresas e “faria pressão” sobre os bancos.
Segundo, talvez seja o caso de acionar os bancos federais (Banco do Brasil, Caixa). “O Brasil tem grandes bancos públicos. Outras economias importantes não têm. O governo pode recorrer a eles para aumentar a pressão competitiva, ofertando [mais] crédito. Como foi feito em 2008 [Meirelles era então presidente do BC, cargo que ocupou durante o governo Lula, de 2003-2010]”.
Mas os bancos públicos não vão correr os mesmos riscos que os bancos privados tentariam evitar, a grande inadimplência? Meirelles diz que há risco, mas que foram contornados na crise de 2008-2009 no Brasil, no que diz respeito à inadimplência.​